O Sábado nos Evangelhos e em Atos

Lição 8/15

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Modo noturno

Introdução 

Após havermos analisado o quarto mandamento sob a ótica do Antigo Testamento, o que fizemos na lição anterior, voltamo-nos a ver o que os Evangelhos e o livro de Atos dos Apóstolos nos ensinam a respeito. 

O sábado nos Evangelhos 

Para compreendermos a atitude de Jesus e seus debates com os grupos religiosos do primeiro século da era cristã, faz-se imperioso pontuar que no período intertestamentário, sobretudo por causa do declínio da profecia, os judeus sentiram cada vez mais necessidade de orientação para os mais variados incidentes da vida cotidiana. 

Surgiram, naquele contexto, os mestres que tentavam esmiuçar como cada mandamento deveria ser observado. Essa tradição oral chegou a ser codificada com o nome de Halaká, hoje conhecida como Mishná. Em especial, dois tratados do Halaká, o Shabbath e o ‘erub, são dedicados a explicar em minúcias como o sábado deveria ser observado. 

Noutro giro, não se pode perder de vista a atitude de Jesus para com a lei. Por um lado, Ele “nasceu sob a lei” (Gl 4.4) e, em decorrência disso, foi circuncidado (Lc 2.21), resgatado (Lc 2.22-24), honrou o Templo (Mt 21.12,13), reconheceu a legitimidade do sacerdócio levítico e ordenou o cumprimento dos sacrifícios (Mt 8.4; Mt 5.23,24). Por outro, apesar de ter vivido sob a antiga aliança, Ele a cumpre e realiza a nova aliança na sua morte, ressurreição e ascensão. Assim, se Ele honrou o Templo, também advertiu que o Templo estava prestes a ser destruído e afirmou ser Ele próprio o verdadeiro Templo (Jo 2.19-21), tanto quanto anunciou o fim do Templo como lugar de adoração (Jo 4.21).

O sábado em Atos 

Em seus primórdios, a Igreja cristã se manteve em uma posição ambígua em relação à lei cerimonial judaica. Algo novo e esplêndido havia ocorrido e, de fato, uma nova era havia raiado. Os cristãos estavam cheios do Espírito e sentiam prazer contagiante em viver a fé cristã “diariamente” (At 2.46). Ao mesmo tempo, os cristãos, em geral, além das reuniões nos lares uns dos outros, onde faziam refeições comunais e o “partir do pão”, mantinham-se apegados ao Templo (At 2.46; 3.1). 

No livro de Atos, há dez referências ao “sábado” (1.12; 13.14,27,42,44; 15.21; 16.13; 17.2; 18.4). A partir de Atos 1.12, não se pode deduzir nada sobre a prática da observância do sábado pelos apóstolos. A “jornada de um sábado” era uma expressão judaica correspondente a 1,2 km, e nada diz sobre se o evento ascensão ocorreu em dia de sábado.

Das menções seguintes, Atos 15.21 é a única ocorrência não relacionada com o ministério paulino. O versículo é parte do discurso inflamado de Tiago (At 15.13-21) na assembleia de Jerusalém. A conclusão de Tiago, sobretudo em face do episódio que envolveu Pedro na casa de Cornélio (v. 14), foi no sentido de que já não se aplicam as regras antigas da religião judaica. Há, entretanto, uma recomendação para que quatro coisas especialmente aviltantes para os judeus fossem evitadas – “contaminações dos ídolos”, “relações sexuais ilícitas”, “carne de animais sufocados” e “sangue” (v. 20) -, pela seguinte razão: “Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados” (v. 21, com grifo).

Explique-se. “As contaminações dos ídolos” são a carne de animais sacrificados a ídolos, que era posteriormente comercializada nos açougues. As “relações sexuais ilícitas” são os casamentos entre parentes próximos (Lv 16.6-18). A “carne de animais sufocados” refere-se ao método de abate pelo qual o sague permanecia na carne. A quarta abstinência recomendada foi quanto ao próprio sangue. Temos aqui exatamente as proibições impostas pela lei mosaica aos gentios que viviam em Israel (Lv 17.8-18.26). Portanto, Tiago não está impondo regras para que os gentios adentrem à igreja cristã, mas estabelecendo-lhes normas que permitiriam boa convivência com os cristãos judeus.

Noutras palavras, o texto parece sugerir que as recomendações pretendem manter intactas as relações entre os cristãos gentios e judeus, em um momento em que a Igreja ainda está estreitamente relacionada com a sinagoga, onde se lê Moisés todos os sábados. De todo modo, a presença de cristãos nas sinagogas para o culto nos sábados, nesse estágio do cristianismo, não parece estar fora de cogitação, sobretudo quando analisada a lentidão da Igreja em apreender a novidade ensinada no Novo Testamento.

As demais referências a “sábado” em Atos estão no contexto do ministério paulino (13.14,27,42,44; 16.13; 17.2; 18.4). À exceção de Atos 13.27, onde Paulo afirma em seu discurso na sinagoga de Antioquia da Pisídia que os profetas são lidos todos os sábados, as ocorrências se referem à presença do apóstolo nas sinagogas dos judeus, aos sábados, onde e quando encontrava oportunidade de pregar.

O “primeiro dia da semana” em Atos

Lucas não registra casos de conflitos entre a Igreja e os judeus em torno do shabbath, fato coerente com o que já temos observado quanto à acomodação dos cristãos com as instituições judaicas, nos primórdios do cristianismo. Por outro lado, Atos 2.46, como já pontuamos, revela-nos a existência de encontros cristãos diários, o que não significa que todos estavam juntos todos os dias, mas que havia reuniões todos os dias.

Entretanto, a passagem de Paulo por Trôade (At 20.7-12) faz referência ao encontro para o culto que ocorreu “no primeiro dia da semana” (v. 7), ao final de uma estada de uma semana (At 20.6). As seguintes observações são relevantes ao nosso estudo, a propósito desse culto em Trôade:

Primeiro, a reunião em comento parece ter ocorrido no domingo à noite. Com efeito, Lucas pode ter usado o método romano, em que o novo dia se inicia na aurora, o que nos faria concluir que o culto em Trôade ocorreu no domingo à noite. In casu, parece que Lucas está mesclando o calendário judaico, em que o primeiro dia da semana é o domingo (cf. Jo 20.19), com o cálculo romano do dia, contando as horas do dia a partir da manhã (At 3.1). Portanto, a reunião em Trôade teria ocorrido no domingo à noite e Paulo teria seguido viagem na manhã da segunda-feira.

Segundo, tratava-se a reunião do culto da igreja de Trôade, onde se celebrava a Santa Ceia e se ouvia a exposição da Escritura. O “partir do pão” é o termo empregado por Lucas para a Ceia do Senhor, que em geral ocorria em meio a uma refeição comunal da igreja (cf. At 2.42; 1Co 10.16; 11.17-34). 

Terceiro, que era uma reunião regular da igreja, e não um encontro oportuno levado a efeito pela presença do apóstolo Paulo, o texto deixa evidente: “estando nós reunidos com o fim de partir o pão”. O infinitivo do verbo “klao” (“klasia”: quebrar, partir) é usado para expressar o propósito da reunião, o que aponta ao que pode ter sido o costume dos cristãos na região de Éfeso de se encontrarem para a Ceia do Senhor no primeiro dia da semana. 

Conclusão

Essas linhas iniciais nos fazem chegar às seguintes conclusões, à luz dos textos relevantes sobre o quarto mandamento dos Evangelhos (Mt 12.1-8; 12.9-14; 13.54-58; Lc 13.10-17; 14.1-6; Mt 24.20; Jo 5.1-18; 7.19-24; 9.1-41) e das passagens em Atos anteriormente analisadas:

Primeiro, que Jesus não transgrediu nenhuma regra da Torá com relação ao shabbath. O que fica evidente é que as adições rabínicas cristalizadas nos tratados da Halaká foram constante e incisivamente confrontadas, mas não o shabbath conforme estabelecido no Antigo Testamento. 

Segundo, até aqui, não é possível concluir pela permanência da observância do shabbath como obrigatória aos cristãos, sob pena de que nas mesmas bases permaneçam as obrigações relacionadas ao sacerdócio levítico, aos sacrifícios no templo e à circuncisão. 

Terceiro, é perceptível que o ensino do Senhor Jesus sobre o shabbath mantém intactos os propósitos humanitários temporários e os teológicos, tais quais encontrados no Antigo Testamento. Por um lado, as curas e libertações eram altamente adequadas aos fins humanísticos pretendidos nos sábados semanais e anuais. Por outro, a missão messiânica é claramente retratada em correlação com o shabbath, em termos de tipo e antítipo. É Cristo, em sua obra redentora, o descanso e a libertação prefigurados no shabbath e no jubileu. 

Quarto, a presença de Paulo e de cristãos nas sinagogas, em dia de shabbath, não implica em mais que apontar ao fato de que todos os judeus e os primeiros cristãos, dentre judeus e prosélitos, se encontravam nesses lugares aos sábados. E nada mais. É dizer, não é possível concluir daí que os apóstolos estivessem ratificando para os cristãos a guarda do shabbath no sétimo dia, senão que – em parte pelo conservadorismo e em parte pelas oportunidades missionárias – os cristãos mantiveram-se apegados à sinagoga nos primórdios do cristianismo.

Quinto, não é possível encontrar em Atos uma teologia de transferência da observância do quarto mandamento do sétimo para o primeiro dia da semana, o que teria causado certamente um conflito simplesmente inexistente em toda a narrativa de Lucas, sobretudo nos debates com os judaizantes que desembocaram na assembleia de Jerusalém (cf. At 15).

Sexto, Atos 20.7-12 é especialmente importante para informar os primórdios do culto cristão congregacional aos domingos e da consideração desse dia como o “dia do Senhor” – o dia da semana para a celebração do principal culto da Igreja. 

Finalmente, por ora, nada se diz (ou se prevê) sobre uma transferência do sétimo para o primeiro dia da semana.

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