É com grande entusiasmo que inicio esta série de três estudos, nos quais me dedico à análise do propósito e sentido das "bem-aventuranças", aquelas maviosas declarações de Jesus que abrem o "Sermão do Monte". Nesta primeira parte, registro algumas notas introdutórias e já comento as três primeiras bem-aventuranças. Sigamos juntos.
Mateus 5-7 consiste do chamado “Sermão do Monte”. Discurso semelhante, embora mais resumido, ocorre em Lucas 6.20-49, denominado “Sermão da Planície”. Esses sermões de Jesus Cristo encontram ressonância em várias cartas apostólicas, com destaque para a Carta de Tiago (ver o nosso “Praticando a verdadeira Religião: Um Guia Prático Baseado na Epístola de Tiago”).
Ambos os discursos iniciam com as “bem-aventuranças”. Todavia, em Lucas (6.20-26), há 4 bem-aventuranças seguidas de 4 “ais” correspondentes e na mesma ordem. Em Mateus, por sua vez, há 8 bem-aventuranças (sem registro de “ais”), dentre as quais 4 ocorrem em Lucas e 4 são exclusivas do primeiro evangelista, como se pode verificar no quadro abaixo:
Ocorrem em Mateus e em Lucas | Ocorrem em Mateus apenas |
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Os pobres em espírito (NVI)/humildes de espírito (ARA) (Mt 5.3; Lc 6.20) | Os humildes (NVI)/mansos (ARA) (Mt 5.5) |
Os famintos (Mt 5.6; Lc 6.21a) | Os misericordiosos (Mt 5.7) |
Os que choram (Mt 5.4; Lc 6.21b) | Os puros de coração (Mt 7.8) |
Os odiados (Mt 5.10; Lc 6.22) | Os pacificadores (Mt 5.9) |
O propósito das bem-aventuranças
Para entendermos as palavras de Jesus, é vital atentarmos ao que significa ser um bem-aventurado. Qual o sentido da expressão e o propósito dessas bem-aventuranças?
Duas palavras gregas poderiam ser traduzidas por “abençoado/bem-aventurado”. Uma delas é eulogêtos, correlata do verbo eulogeo, não usada aqui nas bem-aventuranças. Esse vocábulo é apropriado para o momento em que se pede uma bênção, aquilo que o pedinte deseja receber porque, por óbvio, ainda não tem, ou que outrem o receba. Repito: essa palavra não é a usada aqui, nas bem-aventuranças.
A palavra usada por Mateus é makarios, vocábulo que não expressa um desejo, nem a invocação de uma benção. Também não exprime a condição de um sentimento interior, nem como nos sentimos ou nos avaliamos. Makarios é simplesmente a constatação de um estado abençoado, bem-aventurado, favorecido, do ponto de vista do julgamento do Senhor Jesus Cristo. Makarios é uma declaração a respeito de uma qualidade já presente, objetivamente atestada por Deus.
Com efeito, a ênfase das sentenças das bem-aventuranças nem são exortativas, como na frase: “sejam assim e terão isso”. O ponto realmente em relevo é a descrição de um estado/condição/qualidade. É quase uma interjeição: “Oh, como são abençoadas as pessoas que são assim e têm/terão isso!”.
Por todo o exposto, expressões como “alegres”, “felizes” ou “mais que felizes” são pouco úteis para nos fazer entender as bem-aventuranças. A razão é óbvia: do modo como as usamos vulgarmente, tais expressões querem descrever como nos sentimos, segundo o nosso (falível e momentâneo) julgamento, e não quem/como realmente somos/estamos aos olhos de Deus. E nem precisaríamos explicar o quanto nossas autoavaliações nem sempre correspondem às divinas a nosso respeito (cf. 1Co 4.4; Mt 7.21-23; Ap 2.9; 3.17, etc.).
As três primeiras bem-aventuranças
Ditas as palavras introdutórias, nos dedicaremos à compreensão das três primeiras bem-aventuranças. Se não, vejamos:
“Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o reino dos céus”
Lucas traz somente “pobres”; Mateus, “pobres em espírito”. Isso tem levado alguns estudiosos a dizer que Mateus espiritualizou o dito de Jesus que Lucas pretendeu preservar.
Entretanto, o “pobre” na tradição profética (cf. Is 66.2) não é necessariamente o materialmente pobre, mas o quebrantado de coração, o piedoso, aquele que aprendeu a depender somente de Deus. Assim, tem-se que Mateus, quando acrescentou “em espírito”, apenas esclareceu o sentido já pressuposto em Lucas.
Portanto, o “pobre em espírito” é aquele que reconhece sua falência espiritual, aquele que sabe não poder conquistar o favor de Deus e não possuir méritos a apresentar perante ele. O pobre é o que se entende desesperada e convictamente necessitado da graça de Deus!
Pois bem, nosso Senhor está a dizer que o reino é dos pobres. O “reino dos céus” ou “reino de Deus” – que foi tipificado no antigo reino de Israel – é o governo benevolente e gracioso de Deus na vida de homens e sociedades, que já foi inaugurado (cf. Lc 11.20) na primeira vinda de Jesus e aguarda plenificação na consumação dos séculos.
Ter o (ou, conforme João 3.3,5, “ver” ou “entrar” no) reino significa já ser parte desse relacionamento eterno com o Soberano, estado/condição que não se conquista por mérito, nem por bravura militar ou pertencimento à determinada raça, mas por pura graça – e os pobres em espírito sabem disso. O reino é daqueles que são conscientes que jamais poderiam conquistá-lo.
“Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados”
A segunda bem-aventurança avança o pensamento da primeira. Não basta o reconhecimento da pobreza espiritual, mas por um coração indiferente. Não basta dizer: “É verdade que não sou capaz de amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a mim mesmo. Mas, e daí? Essa não é a condição de todos os homens? Ser humano no presente estado não é ser assim, pecador?” Observemos que mesmo um cínico pode reconhecer a própria pecaminosidade.
No entanto, a bem-aventurança em comento nos lembra que os abençoados, de acordo com o julgamento divino, sofrem de tristeza, choram, em face da sua incapacidade de agradar a Deus perfeitamente e em todas as coisas.
Na segunda cláusula desta bem-aventurança, Jesus assevera a certeza de uma medida toda suficiente de consolo. Não nos desesperemos com o verbo no futuro (“serão”). Aqui, o tempo verbal exprime certeza, e não futuridade. Parte do consolo já é experimentada agora, quando fruímos as bênçãos da justificação e da adoção, quando temos em nós o testemunho do Espírito e a certeza do acesso a Deus. Mas as bênçãos já realizadas parcialmente se plenificarão somente quando consumado estiver o reino, na vinda gloriosa do Redentor (cf. Is 61.1-3).
“Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança”
A primeira bem-aventurança traduz reconhecimento da pobreza espiritual; a segunda expressa o lamento pela pobreza reconhecida; a terceira aprofunda o pensamento das anteriores, fazendo-nos enxergar a sua real dimensão. Na terceira bem-aventurança o que é enfatizado é como o reconhecimento da pobreza espiritual e o lamento por ela se manifestam na vida dos “abençoados” em seu relacionamento para com Deus e para com o próximo.
No tocante a Deus, humildade/mansidão é a disposição para receber a orientação divina para o curso da vida (a palavra hebraica/aramaica que pode ter sido dita por Jesus exprime esse sentido). Não basta reconhecer o pecado, ainda que com lamento. É necessário submeter-se à vontade de Deus, tal qual Ele a revelou em Sua Palavra. Eis o sentido de humildade para com Deus (cf. Mq 6.8).
Quanto ao relacionamento com o próximo, a humildade/mansidão aqui referida é a disposição para reagir gentilmente quando a nossa pobreza espiritual (reconhecida na primeira bem-aventurança e lamentada na segunda) é denunciada pelo próximo. Assim, não basta reconhecer os próprios pecados, nem pranteá-los, e nem mesmo reconhecê-los perante Deus em orações regadas a lágrimas. O ponto aqui é se somos capazes de reagir com mansidão quando os outros nos falam sobre eles.
Nosso Senhor afirmou que os humildes/mansos (não os judeus, os tiranos ou os fortes e poderosos) herdarão a terra (não a Palestina), isto é, o novo céu e a nova terra quando da grande regeneração (Mt 19.28).
Conclusão
Em síntese, recapitulemos as três primeiras bem-aventuranças a partir das seguintes proposições:
- “Bem-aventurança” não é termo que indica o modo como nos sentimos, mas como Deus nos vê. Traduz a noção de estabilidade, de uma realidade objetiva, que não está submetida às intempéries das nossas experiências e emoções.
- “Pobres em espírito” são aqueles que reconhecem a mais absoluta indispensabilidade da graça de Deus.
- “Os que choram” são os que lamentam a bancarrota espiritual reconhecida.
- “Os humildes/mansos”, de seu turno, aceitam submissamente a orientação divina e reagem gentilmente perante o próximo que denuncia seus pecados.
- As três bem-aventuranças trazem bênçãos do “reino dos céus” (o consolo e a terra), que já foi inaugurado e cresce em manifestação durante a presente era até a sua consumação.
Nos próximos textos (parte 2) continuaremos nossos comentários às bem-aventuranças do Sermão do Monte.
Soli Deo gloria!