A Instrução dos Filhos

“Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele” (Pv 22.6)

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“Provérbios” pertence a um tipo específico de literatura do Antigo Testamento denominado “Literatura de Sabedoria” ou “Sapiencial”. Nesse segmento se incluem também os livros de Jó e Eclesiastes. 

O livro de Provérbios é basicamente uma espécie de manual para o exercício diário da justiça, um compêndio de dizeres inspirados pelo Espírito sobre como viver piedosamente e produzir frutos de justiça. Provérbios é o livro ético do Antigo Testamento.

Nos primeiros 9 capítulos do livro de Provérbios encontramos sermões mais ou menos longos. A forma muda a partir do capítulo 10, quando aparecem os provérbios propriamente ditos, dizeres em versos completos em si mesmos, cada um contendo uma unidade de pensamento. A partir do capítulo 22.17, os temas e as formas variam. 

A tradição hebraica atribui a autoria do livro a Salomão, um rei, filho de Davi, muito sábio que compôs cerca de 3 mil provérbios (1Rs 4.29,32). Ele escreveu os primeiros 25 capítulos. Os homens de Ezequias compilaram os provérbios de Salomão dos capítulos 25 a 29. O capítulo 30 foi escrito por Agur e o capítulo 31, por Lemuel.  

O tema de Provérbios é, portanto, a sabedoria, que para os hebreus trata-se de uma habilidade para viver a vida, da maneira mais prática possível, de acordo com a vontade de Deus. Entretanto, em Provérbios, a sabedoria também é referida como uma Pessoa eterna (8.22-26), criadora de todas as coisas (8.27-29) e amada por Deus (8.30,31). O Novo Testamento nos diz que Jesus Cristo é a sabedoria de Deus: “Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1Co 1.30). O quadro da sabedoria aqui descrita é semelhante ao conceito de logos, em João 1.1.

O significado de “provérbio

O termo provérbio traduz a palavra hebraica “mashal”, cuja raiz significa “ser como”, tendo, portanto, o sentido primário de comparação ou similitude. Os provérbios propriamente ditos são dizeres concisos que expressam verdades ou máximas extraídas da experiência e da observação.

No entanto, os provérbios do livro de Provérbios não são quaisquer provérbios, são os provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel, homem a quem Deus concedeu sabedoria em uma medida generosíssima. Salomão foi um rei riquíssimo que viveu em um reinado pacífico, pano de fundo que explica a ocasião propícia para a investigação filosófica dos objetivos da vida, como encontramos, por exemplo, em Eclesiastes, que também contém provérbios.

Como é esse o caso, pergunto: como deveríamos ler e ouvir Provérbios? Com temor e tremor, porque estamos diante da Palavra de Deus, e com alegria, porque estamos a ouvir/ler joias que emanam da mente do Eterno.

Provérbios 22.6: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele”

Ensinar a criança funciona – é a lição mais primária do texto. Uma criança bem treinada temerá ao Senhor mesmo na velhice. Segundo Champlin, “Um jovem bem treinado continuará no caminho quando se tornar um adulto pleno. A fé de seu pai tornar-se-á a sua fé, e ele a seguirá até o fim. Terá uma vida longa e próspera, tanto material quanto espiritualmente”. A partir dessa lição mais basilar da passagem, algumas verdades devem ser especialmente destacadas:

Ensinar a criança é uma ordem divina 

Esse provérbio é um mandamento, não uma sugestão. É uma responsabilidade e também um privilégio receber de Deus a tarefa de treinar filhos para servi-lO. 

Salomão mandou ensinar, não meramente criar 

Nós criamos gatos, cachorros, bois e cavalos, providenciando meios adequados de sobrevivência provisões como forma de cuidado. Até mesmo a maioria das espécies animais tem esse tipo de cuidado com a prole. Então, ensinar a criança não é prover alimentos, roupas, brinquedos e lazer, quarto agradável e escola. Isso é criar, um dever necessário, sem dúvida. Mas ensinar a criança é dar instrução e disciplina com o objetivo definido, programado, de formar o caráter da criança fundamentado no temor de Deus e no conhecimento da Palavra.

O ensino começa muito cedo e abarca um período que perpassa desde a tenra idade e por toda a adolescência até a idade do jovem adulto 

Naturalmente, o ensino deve ser apropriado ao momento da criança-adolescente-jovem. O texto hebraico diz literalmente “conforme o caminho dela”, o que parece dar a entender respeito à sua personalidade e ao seu grau de desenvolvimento.

O conteúdo do ensino: no caminho em que deve andar

Não é no caminho que a criança escolhe, nem no caminho que a sociedade, os programas do Estado ou a academia ditam. É uma grande tolice deixar que os filhos escolham seu próprio caminho. Se deixarmos as crianças escolherem seus próprios caminhos, elas tenderão ao caminho da vergonha: “A vara e a disciplina dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma vem a envergonhar a sua mãe” (29.15). Isso ocorre porque “a estultícia está ligada ao coração da criança” (22.15). Se não podemos determinar cada passo que os filhos dão, e é certo que não, devemos instruí-los no caminho (Gn 18.19). 

O texto contempla uma promessa: mesmo quando forem velhos, seguirão a instrução recebida 

Aqui temos uma promessa para ser acreditada, embora já nos alerte para eventuais turbulências na jornada. É mesmo possível que surjam períodos de rebeldia na adolescência, juventude e fase adulta, e que a semente só venha a frutificar na velhice. Mas o caráter é como uma planta que cresce com mais e mais força após ser podada, e isto desde a infância. Também a experiência nos mostra que nem sempre as coisas acontecem como planejadas, por causa de diversos outros fatores. Mas as exceções apenas confirmam a regra. Também não olvidamos que somente a graça de Deus pode tornar o ensino e exemplo dos pais eficientes.

O significado de “instruir” 

Instruir é treinar. Treinamento de crianças envolve (1) exemplo consistente a ser seguido, (2) esclarecimento de verdades a respeito de Deus e Sua Palavra que devem ser cridas e obedecidas, (3) reforço da autoridade parental e imposição de limites, (4) repetição daquilo que se quer inculcar, (5) uso de reforços positivos e negativos (13.24: “o que retém a vara aborrece o filho”), (6) diálogo aberto e franco etc.

Instruir não é gritar, intimidar, ridicularizar, humilhar, tampouco abster-se e transferir responsabilidades a outros, dar mesadas e presentes sem merecimentos, lidar com filhos como quem lida com amiguinhos. 

Trabalhar feito louco para dar conforto é fácil! O difícil é instruir, porque isso envolve vencer o egoísmo, a preguiça. O dever de instruir requer que se fique em casa, que haja tempo para a família. Essa tarefa não vai tornar ninguém nem mais rico, nem mais famoso, também não vai oportunizar aquela desejada promoção no emprego, nem prêmios de funcionário do ano. Isso vai apenas lhe dar filhos que amam ao Senhor. 

Mais que isso. Instruir é instruir no caminho, e não instruir o caminho. Instruir o caminho pode parecer apenas um simples apontar para o caminho em que o filho deve andar, sem um correspondente caminhar no caminho com o filho. Poderia sugerir a imposição de um padrão não seguido pelos pais. Ensinar no caminho significa andar junto, de modo que a vida dos pais se torna um modelo a ser seguido pelo filho e uma inspiração para ele. 

Conclusão e aplicações

Será que não temos consentido com a mentalidade do nosso tempo e dado liberdade demais aos filhos? Será que não os temos abandonado à própria sorte, em relação a vários aspectos essenciais da existência? Eu destaco para concluir duas questões à guisa de conclusão.

Em primeiro lugar, crer no evangelho e viver pelo e para o evangelho não podem ser realidades apresentadas aos filhos apenas como mais uma opção possível, viável, mais uma alternativa dentre tantas, ou simplesmente como uma filosofia altruísta de vida ou como a fonte formal de uma ética recomendável. Eles devem aprender desde cedo que o evangelho é a coisa mais absolutamente fundamental da existência, a única inegociável. Isso inclui um tratamento adequado, dentro do lar, dos nossos artigos de fé.

Em segundo lugar, planejemos o futuro profissional dos filhos, ainda que eles digam “não” quando forem, eles mesmos, decidir. Nós temos deixado que os nossos filhos cresçam sem propósito, acreditando que eles mesmos acertarão quando obrigados a decidir aos dezessete anos, no último ano letivo do ensino médio. Eu tenho idade suficiente para ter observado bem duas realidades: (1) filhos frustrados que decidiram sozinhos a respeito da vida profissional, sem acatamento da sugestão dos pais; (2) filhos profissionalmente satisfeitos que em determinado momento seguiram certa carreira por imposição dos pais. Por outro lado, já nessa idade quase não tenho ouvido gente afirmar que estar profissionalmente infeliz por ter seguido a orientação dos pais. 

É evidente que pais não são deuses, não acertam sempre nem têm poder para fazerem acontecer o que planejaram para os filhos (sem falar daqueles pais malucos que tentam superar as próprias frustrações por meio dos filhos e até os abandonam quando se sentem desapontados). Obviamente, os filhos mesmos poderão tomar um curso diferente, com bastante sucesso e realização, inclusive, e podem até nessa mudança de rota empreender grandes coisas em nome do Senhor – veja-se, a propósito, os exemplos notáveis de Calvino e Lutero. Mas permanece o fato de que a ideia de plena liberdade propagada em nosso mundo é deplorável. 

Em terceiro lugar, planejemos o futuro familiar dos filhos, ainda que eles digam “não” quando forem, eles mesmos, decidir. Conversemos com eles sobre a beleza de uma família, sobre a importância da escolha do cônjuge, sobre os filhos que terão e o modo como os criarão, sobre o lugar da igreja na futura família e sobre o lugar da futura família na igreja, sobre os valores que estruturam o núcleo familiar e o casamento, sobre a prática da piedade no seio familiar, sobre a centralidade de Jesus Cristo no lar etc. 

É evidente que todos fazemos algum tipo de projeção para a vida dos filhos, mas um planejamento que desconsidera esses valores, não importa de quem seja ou onde e quando aconteça, não é cristão, não é segundo Deus e está fadado a resumir-se a quanto se ganha para como se gasta.

SDG

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