Introdução
Qualquer abordagem do quinto mandamento minimamente digna de atenção deve se iniciar com a paternidade divina, o “Pai arquétipo”. É como procederemos.
Todos os atributos, comunicáveis e incomunicáveis, pertencem igualmente e na mesma medida máxima de perfeição às pessoas santíssimas da Trindade. Sabemos, por outro lado, que na unidade do ser divino subsistem três pessoas, ou personalidades, ou centros de autoconsciência – o Pai, o Filho e o Espírito -, que, embora coexistentes na mesma e única divindade (não como partes que, somadas, formam o todo), não se confundem entre Si. Cada pessoa bendita do Deus Trindade possui um atributo exclusivamente Seu que a distingue das demais. Daí que, para o nosso interesse, é de relevo anotar que o atributo pessoal da primeira pessoa da Trindade é a paternidade. Ele é, como dizem os teólogos, a pessoa “não gerada” da divindade. “Pai”, frise-se, é o título de uma das pessoas da Trindade que revela um atributo divino pertencente exclusivamente a “Deus o Pai”.
Quando os escritores da Bíblia atribuem o título de Pai a Deus, não o fazem em termos de uma figura de linguagem ou metaforicamente. Deus é de fato “o Pai dos espíritos” (Hb 12.9) no sentido de ser não somente o Pai dos filhos que adotou, mas o criador absoluto da vida. Deus também – e aqui está a razão do espanto do apóstolo João frente à tamanha demonstração do amor divino (1Jo 3.1) -, é Pai dos filhos que adotou em Cristo (Ef 1.5), motivo pelo qual podemos orar a Ele como o “Pai nosso, que estás nos céus” (Mt 6.9) e clamar-Lhe “Abba, Pai” (Rm 8.15; Gl 4.6). E, finalmente, em um sentido absolutamente exclusivo, Deus é o Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (Ef 1.3), seu Filho Unigênito (Jo 1.18), seu próprio Filho (Rm 8.32).
Dito de outro modo, os autores inspirados da Palavra de Deus não atribuem paternidade a Deus a partir da paternidade humana. O contrário disso é que corresponde à verdade, como se pode concluir a partir de Efésios 3.14,15: “Por esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de quem toma o nome toda família, tanto no céu como sobre a terra”. Para Paulo, toda a noção de paternidade emana de Deus.
Entretanto, embora pertença somente a Deus o título de “Pai”, tanto quanto toda a noção de paternidade emane dEle, Ele concedeu aos homens a paternidade-maternidade como expressão de sua própria paternidade. O que estou a afirmar é que Deus comunicou às figuras humanas do pai e da mãe, enquanto tais, algo do ser divino, cujos status e função assemelham-se às prerrogativas divinas mais do que quaisquer outras. Por exemplo, Deus nos gera e somos gerados por nossos pais, Deus cuida de nós e somos cuidados por nossos pais, Deus nos disciplina e somos disciplinados por nossos pais etc.
A semelhança, repito, não é casual. Em verdade, o que ocorre é que Deus – o Pai original, a fonte de toda a paternidade -, compartilhou com homens e mulheres um título divino, fazendo-o acompanhar inclusive da exigência de uma respeitabilidade proporcionalmente assemelhada à que se deve e Ele. Enquanto a primeira tábua é aberta com a exigência de adoração a Deus; a segunda, o é com a exigência de honra aos pais.
Mas isso não é tudo. Devemos acrescentar que contribuem à formação das crianças e jovens outros “pais”, além dos biológicos e dos pais de fato. Refiro-me aos pais docentes (que contribuem à nossa formação intelectual), aos pais políticos (que contribuem à nossa formação cidadã e convivência social), aos pais eclesiásticos (que auxiliam em nossa formação cristã) e aos pais em geral (os idosos), pessoas também contempladas (por extensão, embora necessariamente) no quinto mandamento.
Essa foi uma compreensão praticamente unânime entre os reformadores. O Catecismo Maior de Westminster, na pergunta 123, esclarece, a propósito, que “As palavras pai e mãe no quinto mandamento significam não apenas os pais naturais, mas todos os superiores em idade e dons e especialmente todos aqueles que, por ordenança de Deus, têm autoridade sobre nós, seja na família, na igreja ou no Estado” (grifei). A pergunta 104 do Catecismo de Heidelberg (“O que Deus exige no quinto mandamento?”) é respondida em tons semelhantes: “Devo prestar toda honra, amor e fidelidade a meu pai, à minha mãe e a todos os meus superiores (…); porque Deus nos quer governar pelas mãos deles” (com grifo).
O que o quinto mandamento nos proíbe?
Ponderemos nesse ponto dos nossos estudos sobre as proibições ínsitas ao quinto mandamento.
O Antigo Testamento proíbe a atitude dos filhos – e de todos – no sentido de nutrir desprezo pelos pais – ou por aqueles que se encontram investidos de autoridade – (Pv 23.22; Ez 22.7; Mq 7.6). As condutas que se têm em mente são as realizadas por ações, omissões, palavras ou gestos, que menosprezam e desmerecem a autoridade, sonegando-lhes o devido respeito e sua à palavra e conselhos, bem como a devida importância, como o que encontramos na postura dos filhos de Eli (1Sm 2.22-25; cf. Dt 21.18-21).
O desprezo é uma forma mais velada de rebelião, que pode, em seguida, assumir uma atitude de zombaria ou escarnecimento (Pv 30.17), quando passa-se a ridicularizar a autoridade daquele que é superior. Parece ter sido um olhar desdenhosamente jocoso lançado por Cam sobre a nudez de Noé que o fez digno da maldição, que, ainda não satisfeito, divulgou a conduta vergonhosa do pai aos irmãos (Gn 9.21-22). Na ocasião, como as maldições e bênçãos eram dirigidas aos descendentes de Cam, Sem e Jafé, não estranhamos em ver que Canaã, filho de Cam, foi quem recebeu a maldição.
O quinto mandamento pode, por razão ainda mais óbvia, ser transgredido pela rebeldia aberta daqueles que, muita vez por inveja, não admitem a autoridade dos que lhe são superiores (Is 3.5; 1Sm 10.27). Foram desse jaez a sedição de Arão e Miriã (Nm 12.1-2), a rebelião de Corá, Datã e Abirão (Nm 16.3) e a insurreição de Absalão (2Sm 15.1-18).
Finalmente, a rebeldia pode atingir níveis ainda mais graves, tais como o ato de amaldiçoar, o abandono na velhice e a agressão física (Ex 21.15,17; Pv 19.26; 20.20). Johannes Geerhardus Vos esclarece que amaldiçoar é “tomar o nome de Deus em vão, desejando ou orando para que o mal atinja a pessoa amaldiçoada; ou qualquer desejo e oração pecaminosa, mesmo que o nome de Deus não seja mencionado”.
No Novo Testamento, o Senhor Jesus relembrou aos fariseus o quinto mandamento (Mt 15.4), acusando-os de transgredirem-no não servindo aos pais com os bens que possuíam, em favor de uma tradição rabínica pela qual alegavam que só não sustentavam os pais porque haviam consagrado seu dinheiro a Deus (Mt 15.1-9). A parábola do filho pródigo descreve o resultado imediato da rebeldia do filho mais moço daquele certo homem, ao querer sua herança antes do tempo, o que, na cultura oriental da época, equivalia a um desejo pela morte do pai (Lc 15.11-16); enquanto nada nos diz sobre o destino do filho mais velho, cujo relacionamento com o pai não era melhor que o do irmão (Lc 15.25-32).
O apóstolo Paulo, de seu turno, assevera que “se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos da própria casa, tem negado a fé e é pior do que o descrente” (1Tm 5.8).
O que o quinto mandamento nos exige?
O quinto mandamento exige que os pais e, por extensão, todos quantos são nossos superiores, em idade, dons ou pela função, cargo ou ofício que exercem, sejam honrados (Ml 1.6; Lv 19.3,32; Pv 31.28; Ef 6.2). Ou seja, o mandamento nos impõe o dever de nutrir pelos nossos superiores uma atitude de reverência apropriada, de apreço que concede valor e prestígio. Tal atitude se projeta, como veremos, nas mais variadas maneiras, como também nos relacionamos com eles.
Em primeiro lugar, honramos nossos superiores quando lhes obedecemos aos comandos e conselhos voluntariamente (Pv 4.3,4,20; Cl 3.20), como pode se ver, a título de exemplos, nas atitudes de Moisés para com Jetro, seu sogro (Ex 18.19,24), de José para com Jacó (Gn 37.14; 47.30) e de Isaque para com Abraão (Gn 22.6-12). Mais que isso, é dever dos inferiores consultar os superiores em busca de orientações e conselhos, sempre que cabível e necessário.
A obediência requerida pelo apóstolo, a propósito do quinto mandamento, é qualificada pelas frases “no Senhor” (Ef 6.1) e “em tudo” (Cl 3.20). A expressão “em tudo” indica a extensão da obediência e comunica que os filhos não têm direito de escolher quais comandos devem obedecer e quais não precisam. É dizer, a obediência em foco não é seletiva, vinculada somente àquilo que é conveniente ou dá prazer. Entretanto, “em tudo” não significa “em tudo, inclusive quando o comando do superior for manifestamente contrário à vontade revelada de Deus”.
Na verdade, ninguém está obrigado a fazer aquilo que desagrada a Deus, o Pai celestial. Ao contrário, perante ordens que nos mandam contrariar a vontade de Deus, o dever que se nos impõe é o da desobediência, sem que se precise cogitar de qualquer conflito ético ou violação do quinto mandamento em qualquer medida. Os amigos de Daniel, nesse sentido, não violaram o quinto mandamento quando desobedeceram a ordem de Nabucodonosor (Dn 3.4-18), tampouco os apóstolos, ao se insurgirem contra o Sinédrio (At 5.27-32).
Nesse tocante, todavia, é bem-vinda a advertência de Augustus Nicodemus Lopes e Minka Schalkwijk Lopes quando tratam da relação entre pais e filhos, no sentido de que “é preciso muita cautela antes de decidirmos que a desobediência aos pais se justifica em nome da religião”. Esses autores esclarecem que muitas “seitas” e “igrejas evangélicas” acabam incitando os jovens a desobedecerem às ordens dos pais para serem membros assíduos e advertem que “Os filhos devem fazer uma diferença entre orientações e determinações difíceis de obedecer e aquelas que simplesmente são contra a Palavra de Deus”.
A expressão “no Senhor”, de Efésios 6.1, a seu turno, é igualmente importante. Trata-se de outra forma de qualificar o quinto mandamento que também guarda relação com os limites da obediência, conforme acima considerados. Entretanto, vai mais além. Como percebeu John Stott, estas palavras “trazem a obediência dos filhos para o âmbito do dever especificamente cristão, e colocam sobre os filhos a responsabilidade de obedecer aos pais por causa do seu próprio relacionamento com o Senhor Jesus Cristo”. É dizer, todos os filhos deste mundo devem obediência aos pais, pois o quinto mandamento é parte da lei natural de Deus. No entanto, para os cristãos, ele integra seus deveres para com o Senhor, que opera no evangelho a restauração dos relacionamentos, inclusive dos naturais.
Em segundo lugar, honramos nossos superiores quando, também como expressão de obediência – nos submetemos de boa vontade à sua autoridade e disciplina (Pv 3.11,12; Hb 12.9, 13.17), acatando suas correções, repreensões, castigos e sanções. A implicação do quinto mandamento ora analisada é uma espécie de especialização da anterior, uma obediência especializada – a obediência que se submete à disciplina. É desse naipe a submissão ordenada pelos apóstolos (Rm 13.1-5; 1Pe 2.13-17), perfeitamente ilustrada pela atitude requerida de Agar perante Sara pelo Anjo do Senhor (vide Gn 16.7-9).
Em dias como os nossos, nos quais impera afronta a toda espécie de autoridade, cumpre asseverar com a energia necessária esse ponto. A disciplina não é boa se considerada isoladamente, não é um fim em si mesma. O escritor aos Hebreus consentiu que a disciplina (quer divina, quer humana) “no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza” (Hb 12.11a). Então deveremos atentar ao fim que ela, como meio, realmente almeja: “ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb 12.11b). Assim haveremos de nos submeter aos nossos pais e superiores porque Deus nos tem aperfeiçoado por meio deles. Perante as autoridades estatais, a submissão ora referida implica em pagamento de impostos, tanto quanto no reconhecimento da devida honra (Rm 13.6,7), conforme também salientado pelo Senhor Jesus (Mt 22.17-21).
Em terceiro lugar, também honramos nossos pais e superiores sendo-lhes gratos pelo bem que nos fazem. A ingratidão anda mais próxima do desrespeito do que costumamos imaginar. Para Calvino, o quinto mandamento exige basicamente reverência, obediência e gratidão. Outra não foi a conclusão de Lutero, para quem “perante o mundo temos o dever de mostrar gratidão por todos os benefícios e favores que recebemos dos pais”, acrescentando que “A Deus, aos pais e aos mestres nunca se poderá agradecer e recompensar o suficiente”.
Em razão da gratidão, honramos nossos superiores quando os apoiamos das mais variadas formas, oferecendo-lhes o suporte de que carecem. Podemos, como exemplos, dar-lhes nossa presença (Mt 26.38), a nossa capacidade de ouvir com sensibilidade, o sustento financeiro (Gl 6.6; 1Tm 5.17), auxílio ao seu serviço (2Tm 4.11) e interseções (1Tm 2.1,2).
Outra maneira pela qual apoiamos os nossos pais e superiores, também como expressão da gratidão, é ajudando-os em suas limitações e pecados. Líderes não são super-homens, nem, por isso mesmo, podem ser idolatrados e tampouco estão imunes à crítica. Eles precisam de conselhos sábios e de exortação sincera e construtiva. Todavia, é fato que ninguém escarnece dos pecados de quem respeita, nem os espalha levianamente, porque o respeito encobre pecados, como se pode verificar na atitude de Sem e Jafé no momento vexatório da vida de Noé (Gn 9.23). Por outro lado, estejamos prontos a reconhecer suas virtudes e, muito mais, a imitá-las (Hb 13.7; Fp 3.17).
Conclusão
Portanto, à luz do exposto, concluímos que o quinto mandamento destaca a importância da autoridade, pela qual Deus nos quer fazer a todos submetidos à sua vontade. Essa é a razão pela qual devemos reverenciar aqueles que são nossos superiores em idade, em dons e pelo cargo ou ofício que exercem. Ainda avivamos que o modo como os respeitamos se traduz, em síntese, em atitudes que concedem a devida honra e em ações ou omissões que seguem de acordo com os seus comandos, exceto quando evidentemente contrários à vontade revelada de Deus.