Introdução
Após a nação de Israel sair do Egito foi conduzida ao deserto do Sinai, onde se concertou a aliança mosaica – um avanço na maneira divina de lidar com o homem pecador. Na lei, Deus concedeu ao seu povo um resumo claro e objetivo da sua vontade através das “dez palavras”, os Dez Mandamentos (Ex 20), também referidos como as palavras da aliança (Ex 34.28; Dt 4.13).
A novidade da aliança da lei reside em que pela primeira vez Deus expôs um sumário da sua vontade para funcionar como um padrão a que a nação redimida deveria se conformar. Essas leis, esclareça-se, não eram novas. Elas são, talvez à exceção do quarto mandamento, verdades eternas, gravadas no coração e na consciência de todos os homens (Rm 2.14,15), como uma espécie de reflexo da santidade do próprio Deus. A novidade reside em que agora aquelas leis eternas estavam sendo apresentadas explicitamente, em um só código escrito, claro, conciso.
Deve-se destacar nesse passo dos nossos estudos que a lei não consistiu em um atraso em relação à aliança da promessa, feita a Abraão. Pelo contrário, a promessa de redenção a Abraão ganha continuidade por meio da lei dada por Moisés. A aliança da lei é, em verdade, parte do desenvolvimento do pacto da graça, do projeto gracioso de Deus em redimir para si um povo, o que pode ser observado a partir das seguintes considerações: primeiro, Deus já tinha, antes da concessão da lei, redimido Israel do julgamento de morte por meio do sangue do cordeiro pascal; segundo, na própria lei Deus interpôs provisões para a remoção dos pecados; terceiro, por meio da lei recebemos uma exposição clara sobre o modo de vivermos para o Redentor, visto que a lei é um quadro completo da santidade que Deus espera do seu povo e ao mesmo tempo um guia para uma vida mais plena; quarto, por meio da lei somos levados à consciência da necessidade do Redentor, uma vez que a lei evita que exerçamos uma autoavaliação inadequada exatamente porque, enquanto revelação clara da vontade de Deus, tem maior capacidade de nos humilhar; quinto, a lei não foi dada para sermos reputados justos diante de Deus por nossa obediência a ela, mas, ao contrário, Jesus Cristo a guardou em favor de todos quantos confiam somente na graça dEle para a salvação.
Portanto, podemos afirmar que a lei permanece relevante para os cristãos ainda hoje, precisamente porque fomos perdoados e justificados pela perfeita obediência de Jesus a Deus, em sua vida e morte. Uma vez redimidos, devemos conformar a nossa maneira de viver à vontade do Redentor (Mt 5.17-19) e esperar que somente desse modo é possível experimentar a benção da estabilidade (Mt 7.24-27).
Por outro lado, porque redimidos, é correto que esperemos duas consequências de violarmos a lei de Deus: punição e avaliação negativa no dia do julgamento. A punição decorrente da não conformação com a lei de Deus é igualmente verificável no Novo Testamento (Hb 12.6; 1Co 11.30-32) e essa verdade nos deve levar à conclusão que não se pode ignorar a lei de Deus impunemente.
A avaliação negativa no dia do julgamento será igualmente inescapável. Naquele dia todos seremos julgados conforme as nossas obras, boas e más (2Co 5.10), quanto ao que podemos concluir que a salvação é pela graça, mediante a fé, por meio do sangue do cordeiro, mas o julgamento levará em consideração as nossas obras.
Ocorre, todavia, que temos observado um certo padrão divino de lidar salvadoramente com famílias. A aliança da lei não foi diferente. Então, para quem Deus revelou as palavras da aliança? Quem são os destinatários prioritários dessa revelação? Quem haverá de fruir as bênçãos da obediência e a maldição da desobediência?
A renovação da aliança
Para esclarecer ainda mais tais questões avançaremos para as gerações seguintes de Israel, para o momento em que o pacto da lei é reafirmado em uma espécie de renovação da aliança do compromisso entre Deus e seu povo, realizada na terra de Moabe, imediatamente antes da tomada da terra prometida.
É o que temos no livro de Deuteronômio. Nós nos atentaremos ao capítulo 29 que, juntamente com o capítulo seguinte, costuma ser reconhecido como uma terceira fala de Moisés. O v. 1 se refere a tudo que já havia sido dito como “as palavras da aliança” dadas na terra de Moabe em adição à aliança feita em Horebe. Notemos que Deuteronômio não é apenas uma lembrança da aliança, mas um documento de renovação da aliança para as gerações posteriores àquela que saiu do Egito. Isso já assinala que cada geração deve tomar o seu compromisso com Deus como inteiramente novo, embora a partir do desenvolvimento de um pacto já realizado e em vigor.
A pregação de Moisés no capítulo 29 pode ser assim dividida:
Nos versículos 2-8, Moisés relembra todo o cuidado de Deus para com o seu povo: os versículos 2 e 3 recordam os grandes feitos de Deus no Egito; os versículos 5 e 6, o cuidado de Deus na peregrinação no deserto; os versículos 7 e 8, a tomada das terras a leste do Jordão. A lentidão do povo para compreender a importância das leis de Deus é destacada no versículo 4.
Nos versículos 9-15, Moisés adverte solenemente ao povo quanto à necessidade de guardar a aliança com Deus. A advertência leva em consideração a promessa feita aos antepassados (v. 13), mas enfatiza a obediência no presente e em cada geração (v. 14,15). Além disso, é digno de nota que a aliança é feita com cada membro da comunidade: os oficiais da nação até os mais baixos assalariados, com inclusão de todos os membros de cada família (v. 10,11).
Nos versículos 16-21, há uma severa advertência contra o perigo de ser atraído à idolatria. Israel tinha peregrinado em terra estrangeira suficientemente para conhecer as abominações dos ídolos das nações pagãs (v. 16,17). Observando-as, deveria guardar o coração para não se desviar do Senhor e servir a outros deuses, “para que, entre vós, não haja homem, nem mulher, nem família, nem tribo cujo coração, hoje, se desvie do Senhor, nosso Deus, e vá servir aos deuses destas nações” (v. 18). Notemos a abrangência do pacto: ele deveria ser guardado por homem, mulher, família, tribo. A decisão de Josué, quanto ao serviço a Deus e a rejeição dos ídolos, atitudes que seriam dele e da sua casa (Js 24.14-16), é um reflexo da compreensão quanto ao modo divino de lidar com a humanidade, e particularmente no contexto do pacto mosaico. É dito que ninguém poderia nutrir a falsa confiança de que poderia desafiar as leis de Deus sem nenhuma consequência, achando que poderia trazer bênção e paz a si mesmo por si mesmo (v. 19).
Nos versículos 22-28, Moisés antecipa que no devido tempo a maldição da aliança cairia sobre o povo e sua terra seria devastada como as civilizações de Sodoma e Gomorra (v. 23). A causa da devastação não residiria, segundo pontuou Moisés, em alguma fraqueza de Deus, mas, ao contrário, na fidelidade de Deus em cumprir a maldição reservada aos desprezadores das suas leis (v. 25).
O capítulo encerra do seguinte modo: “As coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29).
A nós e a nossos filhos
Interpretamos esse versículo como consistindo de duas cláusulas. A primeira trata das “coisas encobertas”, que “pertencem ao Senhor”. Com relação a estas, somos proibidos de tentar investigar aquilo que Deus decidiu não revelar. Tantas perguntas poderiam ser feitas sobre o destino da nação, aqui antecipado por Moisés! Segundo Mathew Henry, “alguém ainda poderia investigar por que Deus gastaria tantos milagres para formar um povo como este, cuja apostasia e destruição Ele previa claramente. Por que, pela sua graça todo-poderosa, não o impediu? Ou o que Ele ainda pretende fazer com eles? Aquele que tiver tais questionamentos precisa saber que estas são perguntas que não podem ser respondidas. Portanto, não é adequado fazê-las. É presunção nossa bisbilhotar os Arcana imperii – os mistérios do governo, e investigar as razões de ser daquilo que não devemos saber”.
A segunda cláusula trata das “[coisas] reveladas”, sobre as quais é dito que “nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”. Se é verdade que há muitos segredos guardados com Deus, é verdade também que nos foi revelada porção suficiente da verdade para a nossa segurança e conhecimento salvífico. Deus não escondeu nada que fosse necessário e suficiente para a nossa bem-aventurança eterna. Essa porção revelada, Moisés o diz, é nossa, é para nós, e pertencem também aos nossos filhos, os filhos da aliança.
Por essa porção revelada devemos, e os nossos filhos, interessar-nos. Sobre ela devemos, e os nossos filhos, debruçar-nos, porque por ela podemos descobrir o que é o nosso dever, e dos nossos filhos, para com Deus, como também as coisas que Ele nos permite e as que Ele nos proíbe. Vivendo pela porção revelada não nos redimiremos a nós mesmos (redenção somente pelo sangue do cordeiro!), mas atrairemos para nós bênçãos, paz e segurança que são frutos da preciosa comunhão com Deus. Por tudo isso devemos aprender as coisas reveladas diligentemente e ensiná-las aos nossos filhos. Como fazê-lo, Moisés também nos instrui.
Conclusão
Em síntese, a aliança mosaica consistiu em uma concessão do sumário objetivo e claro da vontade de Deus, um resumo da lei eterna, à nação de Israel. Por meio do pacto da lei, percebe-se claramente, Deus manteve o padrão de atuação no sentido de redimir e santificar famílias, deixando bastante evidente que a revelação pertencia “a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”.
Por isso chegamos à conclusão que é nosso dever nos debruçarmos sobre a Palavra de Deus, suficientemente bem a conhecermos, genuinamente a praticarmos e diligentemente a ensinarmos aos nossos filhos, porque a revelação também lhes pertence e não podemos deles sonegá-la. Sobre como instruí-los, Moisés o diz em Deuteronômio 6.4-9, 20-25. É o que veremos na próxima lição.