Introdução
Nesse passo dos nossos estudos, esforçaremo-nos para compreender as funções da Lei antes e depois da Queda. Uma especial atenção a esta lição nos levará a comprender a importância de toda a série de estudos sobre os Dez Mandamentos.
A Lei moral antes da Queda
Discute-se se Deus se relacionou com Adão através de um pacto (vide Os 6.7, Rm 5.12-21). O certo, entretanto, é que Deus sujeitou nosso primeiro pai a um teste probatório, através do qual, mediante o uso do seu então livre-arbítrio, poderia ter adquirido para si e sua progênie a bem-aventurança eterna – a imortalidade em sentido pleno, significando a impossibilidade de pecar e morrer.
O teste consistiu em um ato de obediência radical a uma lei moral totalmente exterior, de natureza arbitrária, incidental e aparentemente sem sentido (Gn 2.16,17). Nesse teste, a questão é realmente esta: “ou Deus ou o ser humano, ou a autoridade de Deus ou a compreensão humana, obediência incondicional ou pesquisa independente, fé ou ceticismo. Esse era um teste assustador que abriria o caminho ou para a bem-aventurança eterna ou para a ruína eterna”.
Ademais, por óbvio que Adão não estava sujeito somente à lei exterior do teste probatório. É dizer, não comer do fruto da árvore proibida não era tudo que Adão deveria fazer em obediência ao Criador. Além dos mandados criacionais, relacionados, sobretudo, ao trabalho, ao culto e à proliferação da espécie, ele deveria também observar os demais mandamentos morais. Ele estava, sim, sujeito a toda Lei moral de Deus, que estava gravada em seu coração, fato que o tornava capaz de cumpri-la por discernimento natural, sem a necessidade de uma revelação especial.
Bavinck argumenta ainda que a Lei discernida naturalmente por Adão era, “em essência, igual aos dez mandamentos”. A diferença era apenas em termos de forma, uma vez que “a lei dada no Sinai pressupõe um catálogo de pecados e, portanto, quase sempre fala de modo negativo (‘Não…’), e a lei moral antes da queda era muita mais positiva”.
Portanto, a Lei moral sumariada no Decálogo não é nova, no sentido de haver sido concebida na aliança mosaica, tampouco na era pós-Queda. Adão a conhecia por discernimento natural e era capaz de observá-la cabalmente!
A Lei moral após a Queda
A Queda, por sua vez, operou uma mudança radical. Com o seu advento, não é mais possível ao homem obedecer a Lei e, por sua obediência, obter a vida. Após a Queda, não há mais que se falar em conquista por méritos humanos. O pecado atingiu todas as faculdades (Jr 17.9; Mc 7.21-23) de todos os homens (1Rs 8.46; Pv 20.9; Ec 7.20; Rm 3.23; Ef 2.3), desde a concepção (Sl 51.5; Jo 3.6), face à posição estabelecida por Deus para Adão como representante da humanidade (1Co 15.21,22; Rm 5.12ss). O livre-arbítrio, através do qual Adão poderia ter conquistado a bem-aventurança eterna, não mais existe. Adão, e sua prole com ele, passou de um estado de “posse non peccare” (capacidade para não pecar) para “non posse non peccare” (incapacidade para não pecar).
É nesse estado de corrupção e condenação que devemos inquirir sobre as funções da Lei na era pós-Queda. Se a Lei não pode, de si mesma, prover salvação, qual a sua finalidade à humanidade caída? Qual a sua relação com a salvação graciosa pela fé somente? Os reformadores debateram o assunto extensamente e se contrapuseram, de um lado, contra os antinomianos e, de outro, contra os abusos do romanismo medieval. Para tanto, resumiram as funções da Lei nos famosos “três usos”, quais sejam: uso teológico ou pedagógico, uso político ou civil e uso moral ou didático. Discorreremos brevemente sobre cada um deles, na ordem em que são tratados nas Institutas, por Calvino.
Uso teológico ou pedagógico
O uso teológico ou pedagógico diz respeito à função da Lei de revelar a gravidade da nossa pecaminosidade, abater o nosso orgulho e nos levar, desesperados, a Jesus Cristo. “De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé” (Gl 3.24).
O apóstolo Paulo, observou Calvino, afirma que pela Lei vem o conhecimento do pecado (Rm 3.20) e que pela Lei o pecado avulta (Rm 5.20). Nesse sentido, a Lei opera o ministério de morte (2Co 3.7) e sucita a ira de Deus (Rm 4.15). Por essa razão, diz o apóstolo, ele teria ignorado “a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás” (Rm 7.7). Nesse sentido, a Lei revela a justiça de Deus e convence o pecador quanto à sua própria injustiça, conduzindo-o a abandonar o orgulho.
“Assim”, escreveu Calvino, “a Lei é como um espelho no qual contemplamos nossa impotência, (…) de modo que o espelho representa para nós as máculas de nossa fronte”. Como se pode perceber, a Lei jamais foi concebida, após a Queda, como um meio de obtenção da vida, mas para nos mostrar que somos pecadores perdidos e nos conduzir a Cristo.
Uso político ou civil
Se o uso teológico ou pedagógico da Lei se destina à salvação de pecadores que, de outro modo, morreriam em sua vaidade e presunção, o uso político ou civil pretende refrear os irregenerados, que só não se lançam sem limites na satisfação da própria lascívia por medo das suas sanções.
Calvino entendeu que Paulo se referiu a essa função da Lei quando escreveu a Timóteo: “tendo em vista que não se promulga lei para quem é justo, mas para transgressores e rebeldes, irreverentes e pecadores, ímpios e profanos, parricidas e matricidas, homicidas, impuros, sodomitas, raptores de homens, mentirosos, perjuros e para tudo quanto se opõe à sã doutrina” (1Tm 1.9,10).
O uso da Lei que ora analisamos, esclareça-se, não se destina à regeneração de pecadores para o temor de Deus, mas para a imposição de limites ao pecador, com vistas à possibilidade de convivência do homem em sociedade. Sua utilidade está circunscrita àquilo que a teologia reformada denomina “graça comum”. Interiormente, os homens podem odiar a Deus e sua Lei e, se não ousam desafiar todos os limites do razoável, isso não se deve a uma submissão espontânea à vontade de Deus, mas ao medo da justa retribuição.
Finalmente, Calvino também observou que o uso civil da lei é útil aos eleitos, durante o tempo em que estão sem a santificação do Espírito, quando também são marcados pela lascívia.
Uso moral ou didático
Neste ponto, voltamo-nos à compreensão do uso moral ou didático da Lei, pelo qual ela se destina a ser uma norma de vida para os já regenerados.
Calvino visualiza duas importantes finalidades para as quais a Lei moral continua vigente aos cristãos e é por eles aproveitada: primeiro, a Lei é um instrumento pelo qual aprendem a vontade do Senhor que desejam obedecer; segundo, a Lei prover exortação através da qual a indolência da nossa carne é combatida. Nesse sentido, ele escreveu: “A Lei é um açoite para esta carne, pelo qual, como um asno inerte e tardo, é impelida para a obra; ou melhor, para o homem espiritual, uma vez que ainda não se livrou do peso da carne, será um aguilhão contínuo que não se permita o que ele deseja”. Foi nesse quadrante, observou Calvino, que Davi escreveu: “Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do SENHOR é puro e ilumina os olhos” (Sl 19.8). E: “Lâmpada para os meus é a tua palavra e, luz para os meus caminhos” (Sl 119.105).
Com efeito, para o reformador, esse é o principal uso e o próprio fim da Lei. Quando o apóstolo Paulo contrapõe de maneira exclusiva “lei” e “graça”, “lei” nessas passagens implica o que a Lei pode ofertar ao homem natural à parte da graça salvadora de Deus, o que a Lei “pode conferir por si ao homem”. No uso didático ou moral, como descrito por Davi, a Lei não é vista sem o necessário acompanhamento da graça, que salva por fé somente e permanece inspirando o coração regenerado à submissão ao Senhor.
Conclusão
Pelo exposto, concluímos que devemos nos opor veementemente a três alternativas éticas, quais sejam:
Em primeiro lugar, não somos legalistas, se pela expressão entendemos se tratar da posição segundo a qual a Lei nos foi dada para sermos salvos pela obediência aos seus comandos. O homem, antes da Queda, foi capaz de obedecê-la. Após Queda, tornou-se incapaz. “… pelas obras da lei, ninguém será justificado” (Gl 2.16).
Em segundo lugar, não somos antinomianos. Essa palavra é formada por duas outras que significam “contra a lei”, e usada para a posição que postula pela completa ausência de normas éticas objetivas e de padrões morais que transcendam a subjetividade de cada indivíduo. Certamente, o advento do Cristo não encerrou a Lei moral no baú obsoleto do passado. “Anulamos, pois, a lei, pela fé? Não, de maneira nenhuma, antes confirmamos a lei” (Rm 3.31).
Em terceiro lugar, não somos perfeccionistas. Sabemo-nos incapazes de obedecer a Lei perfeitamente. Entendemos que jamais atenderemos as suas demandas por excelência moral. Estamos cientes, por um lado, da absoluta imprescindibilidade da graça salvadora e, por outro, de que sempre precisaremos da Lei de Deus a nos conduzir no caminho da vontade do Senhor.