VIII – Fé Cristã

De Perseguida a Religião Oficial

História da Igreja
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No período compreendido entre os séculos IV e V, a Igreja viveu a transição de deixar de ser uma religião perseguida para ser a religião oficial do Império Romano. Em 305, a religião cristã era terminantemente proibida. Entretanto, 75 anos depois, em 380, tornar-se-ia a religião oficial do Império, que passou a ser regido por imperadores cristãos, cercados por cristãos professos. Como anotou Hurlbut, “passaram os cristãos, de um momento para o outro, das arenas romanas onde tinham de enfrentar os leões, a ocupar lugares de honra junto ao trono que governava o mundo”. Foi nesse período também que aquela que havia sido a Antiga Igreja Católica foi se desviando para o que conhecemos como Igreja Católica Romana

A união com o Estado foi avaliada pela Igreja de diferentes modos. Uma das maneiras de ver a nova situação foi com entusiasmo, entendendo que a Igreja estava sendo abençoada por Deus em receber tamanhos privilégios. Mas, por outro lado, a nova posição trouxe reações contrárias, que, dentre elas, contribuíram ao surgimento da vida monástica.

O período foi também de efervescência intelectual e debates teológicos. Homens como Eusébio de Cesaréia, Atanásio e João Crisóstomo, dentre os gregos, os capadócios Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo, e, dentre os latinos, Ambrósio, Agostinho e Jerônimo, produziram, em consequência das disputas doutrinárias, escritos que influenciam toda a cristandade até hoje.  

A ascensão de Constantino

O império vivia um quadro de instabilidade decorrente de crise econômica, fracassos administrativos, desastres naturais e ameaça de invasões bárbaras, quando Diocleciano (244-311) o assumiu e o reorganizou, tendo sido declarado imperador em 284 a.D.

Todavia, mesmo com o sucesso do seu governo, Diocleciano julgou que o Império Romano era muito extenso para ser defendido e administrado a partir de um único centro, razão que o levou a dividi-lo, a princípio, em duas partes, a Oriental e a Ocidental. Na sequência, prosseguiu com sua reforma administrativa e fez mais duas subdivisões, uma para cada região.

Assim, o império ficou dividido em quatro partes – uma tetrarquia -, contando com Diocleciano como o imperador para quem os demais líderes deviam lealdade. No Oriente, Diocleciano reinou a partir da Nicomédia, na Bitínia (a atual Turquia), e, Galério, de Sirmio, na Panônia (região que corresponde à atual Hungria e Áustria). No Ocidente, reinaram Maximiano, de Milão, na Itália, e Constâncio Cloro, com sede em Tréveris, na Gália. É notável, pois, que a Itália tenha se tornado apenas mais uma seção administrativa do Império Romano.

Em 303 d.C., Diocleciano retomou sua política de perseguição aos cristãos, ordenando a destruição de Templos, a queima de textos sagrados e a morte daqueles que se recusassem a participar dos ritos religiosos oficiais.

Ocorre que o sistema de tetrarquia começou a ruir a partir de 306 a.D. No Ocidente, com a morte de Constâncio, seu filho Constantino (c. 274-337) foi proclamado césar por suas tropas, sendo aclamado como “augusto”. Maxêncio (278-312), filho de Maximiano, também recebeu a designação de “augusto”.

De modo surpreendente, Constantino reorganizou o império após vencer seus rivais, um a um. Derrotou Maxêncio na batalha da Ponte Mílvia sobre o rio Tibre (a 16 quilômetros de Roma), em 312. Alegando maus tratos a seus súditos impingidos por Maxêncio, Constantino empreendeu uma ação militar ousada, considerando que possuía apenas 25 mil homens, contra 100 mil do seu oponente.

Em 28 de outubro de 312, Constantino lançou-se em ofensiva contra o exército de Maxêncio, conseguindo desorganizá-lo. Walter Fernandes registra que “uma parte dos homens de Maxêncio se jogou no rio Tibre, enquanto a outra se refugiou em cima de uma ponte que, sem suportar o peso, rompeu-se. Os soldados foram levados pela correnteza e o próprio Maxêncio morreu afogado”.

Antes, porém, dessa batalha, teve uma visão (segundo Eusébio) ou um sonho (segundo Lactâncio), em que viu uma cruz e uma inscrição no céu com os dizeres In Hoc Signo Vinces (“vence neste sinal”), ocasião em que entendeu que se se convertesse ao cristianismo derrotaria seu inimigo Maxêncio. No dia seguinte, ordenou que seus estandartes fossem marcados com a superposição das duas primeiras letras (chi e rho) do nome Cristo (“ΧΡΙΣΤΟΣ”), o “labarum”. 

Com a vitória sobre Maxêncio, Constantino se tornou o único dono do Império Ocidental, enquanto o Oriente ainda estava dividido entre Licínio e Maximino Daza, que dividiram os territórios governados por Gálério, após a morte deste, em 311.  

Em Milão, Constantino fez um acordo com Licínio e, juntos, proclamaram o “edito de Milão”, em 313, e decidiram que Licínio investiria, somente com seus próprios recursos, contra as tropas de Maximino. O resultado foi o confronto que promoveu a derrota de Maximino, que não mais conseguiu reorganizar seu exército.

Com a nova situação política, Constantino continuou a governar o Ocidente, enquanto Licínio, a leste da Itália. Como ambos, Constantino e Licínio, ambicionavam o domínio exclusivo de todo o império, uma série de intrigas pessoais redundou em dois confrontos, em 314, seguidos por uma trégua que perdurou até 322, ano em que a guerra civil foi retomada. Constantino venceu Licínio em três batalhas (Andrianópolis, Helesponto e Crisópolis) e, em 324, reunificou o império, sobre o qual reinou até sua morte, em 337.

O impacto de Constantino

Muito se discute sobre os motivos do envolvimento de Constantino com o cristianismo. Para alguns historiadores, ele teria sido um político habilidoso que soube usar a religião cristã a serviço de sua ambição pelo império; para outros, ele foi realmente um supersticioso sincero, que acreditava no poder de Jesus Cristo e que seria ajudado pelo Deus dos cristãos se beneficiasse a estes.

A princípio, Constantino garantiu que a Igreja tivesse paz e lhe devolveu as propriedades confiscadas durante a perseguição. Em um segundo momento, passou a subsidiá-la mais abertamente, construindo Templos e isentando o clero dos serviços públicos e das tarifas nos transportes do império. 

Em 324, um edito ordenou que todos os soldados adorassem o Deus dos cristãos no primeiro dia da semana, dia em que estes celebravam a ressurreição de Cristo. Também se envolveu em controvérsias teológicas e, em 325, convocou e presidiu o Concílio de Nicéia, permitindo que os bispos viajassem às custas dos cofres públicos. 

O impacto do envolvimento de Constantino sobre a Igreja cristã foi incalculável. A consequência imediata foi o fim da perseguição. Mas não parou por aí. O culto cristão sofreu uma influência alarmante. A princípio, as reuniões dos cristãos ocorriam em casas particulares e eram marcadas pela simplicidade e participação. Após a “conversão” de Constantino, “o culto cristão começou a sentir a influência do protocolo imperial” (Justo L. Gonzalez). 

O incenso, usado no culto ao imperador, adentrou à prática da Igreja. Os ministros começaram a usar vestimentas ornamentadas e passou-se a iniciar os cultos com uma procissão. Templos suntuosos foram construídos em vários lugares. Gonzalez observa ainda que para dar maior destaque às procissões, “surgiram coros, com o resultado a longo prazo de que a congregação participava cada vez menos do culto”.

Além do impacto sobre o culto, registra Bruce L. Shelley: “Constantino submeteu os bispos cristãos enquanto eram seus funcionários civis e exigiu obediência incondicional aos pronunciamentos oficiais, mesmo quando eles interferiam nas questões puramente religiosas”. Ademais, Shelley continua: “Havia também as massas que então afluíam para a igreja oficialmente favorecida. Antes da conversão de Constantino, a Igreja consistia de crentes convictos. Depois, chegaram aqueles que eram politicamente ambiciosos, sem interesse religioso e ainda meio enraizados no paganismo”.

A união da Igreja com o Estado

Essa atitude para com a Igreja permaneceu com os sucessores de Constantino e Templos pomposos continuaram a ser construídos, financiados pelos recursos imperiais, até que houve uma reação pagã com o imperador Juliano, em 361.

Juliano, o Apóstata (331-363), sobrinho de Constantino, tornou-se seguidor do neoplatonismo, a partir dos estudos que fez em Atenas. Ele restaurou a liberdade de culto e retirou os privilégios da Igreja cristã. Sob seu governo, as facilidades estavam agora a serviço da filosofia e da religião pagã. Mas o processo de retorno ao paganismo foi interrompido por sua morte, na batalha contra os persas sassânidas.

Os sucessores de Juliano reverteram a sua política, até que Teodósio I (347-395) e Graciano (359-383) proclamaram um edito, em 380, que tornou o cristianismo a religião exclusiva do Império e estabeleceu uma punição para seguidores de quaisquer outros cultos. Dada à importância do edito, transcrevemos a seguir, para a apreciação do leitor.

“Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa clemência e moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo Pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com a doutrina apostólica e o ensino dos Evangelhos, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em igual majestade e em Trindade santa. Autorizamos os seguidores desta lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros, que julgamos loucos e cheios de tolice, queremos que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infligir-lhes” (Bettenson, in Documentos da Igreja Cristã). 

Em 392, o edito de Constantinopla proibiu o paganismo e, em 529, o imperador Justiniano determinou o fechamento da escola de filosofia de Atenas, a Academia, fundada por Platão. 

As consequências da promoção da fé cristã à religião imperial foram inúmeras: a riqueza passou a ser sinal do favor divino e a Igreja se tornou dos ricos e poderosos; com uma aristocracia próxima à do império, surgiu a divisão entre o clero e laicato; a Igreja começou a imitar os costumes do império tanto em liturgia como na forma de governo, tornando-se cada vez mais episcopal e monárquica; a Igreja relegou o retorno de Cristo e do reino a segundo plano. 

O pensamento de Eusébio, cuja posição foi difundida e amplamente aceita nessa época, embora não dito “explicitamente”,foi sumariado por Gonzalez nos seguintes termos: “ao lermos as suas obras temos a impressão de que com Constantino e seus sucessores o plano de Deus se cumpriu”.

Avaliação da viravolta de status da Igreja cristã 

Uma avaliação da nova posição da Igreja cristã no Império Romano, para ser justa e leal a todos os fatos, deve ser ambígua. Por um lado, houve resultados positivos tanto à Igreja quanto ao Estado. A Igreja gozou de liberdade, as perseguições cessaram, seus Templos já construídos e destruídos ou confiscados no período da perseguição sob Diocleciano foram restaurados e lhe devolvidos. A Igreja aproveitou a paz e a subvenção estatal para produzir grandes obras e estabelecer definitivamente a ortodoxia.

Ademais, a influência do pensamento cristão se fez sentir nas leis imperiais. Em 315 d.C., proibiu-se a pena cruel de marcar com ferro em brasa o rosto dos criminosos. Reformas nas prisões, tais como a separação entre homens e mulheres, ocorreram em 361 d.C. Em 374 d.C., leis contra o infanticídio, o abandono de crianças e o aborto foram promulgadas. Em 404 d.C., a matança de homens nas arenas cessou pela lei que proibiu as lutas dos gladiadores. A crucificação foi abolida! 

Por outro lado, a mixórdia entre Igreja e Estado trouxe males tanto àquela quanto a este. No Oriente, a Igreja permaneceu totalmente dominada pelo Estado; no Ocidente, quis usurpar o poder estatal. O nível moral do cristianismo em muito se distanciou daquele predominante nos séculos anteriores, em parte pela adesão formal à Igreja por aqueles que não nutriam nenhum interesse espiritual puro, senão pela fruição de favores concedidos à fé oficial.

No início do século quinto, as imagens dos mártires e santos começaram a aparecer nos Templos, principiou-se a veneração à virgem Maria, o sacramento da Ceia tornou-se um sacrifício e os presbíteros e bispos passaram a ser considerados sacerdotes.

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