VII – As Reações da Igreja (Parte 2)

O Bispo, o Credo e o Cânon

História da Igreja
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Como registramos alhures, a Igreja, para combater as dificuldades que a desafiaram nos primeiros séculos, desenvolveu uma literatura epistolar, apologética e em defesa da ortodoxia (temas sobre os quais já nos debruçamos brevemente). Mas não só. Neste ponto dos nossos estudos, voltar-nos-emos às demais formas de reação da Igreja, quais sejam: a ascensão do bispo monárquico, a formação do Credo e o processo de canonicidade. Sigamos, pois.

O Bispo Monárquico 

Em um primeiro momento, líderes cristãos como Inácio de Antioquia reconheceram a proeminência (não encontrada no Novo Testamento) do bispo sobre o presbítero e o diácono no âmbito da igreja local, ao argumento de ser esta uma forma de proteção da unidade. Outra razão invocada para a projeção do poder do bispo monárquico foi a necessidade de uma liderança para lidar com a perseguição e com a heresia.

Em um segundo momento, o bispo passou a assumir funções de supervisão sobre uma diocese, conforme Nichols observou: “no 2º século o bispo era o pastor de uma igreja numa cidade. À proporção que crescia o número de crentes outros grupos se formavam na mesma cidade e adjacências. Todos esses grupos ficavam sob o governo do bispo da igreja-mãe (=matriz). Cada uma das outras igrejas era dirigida por um presbítero, e o bispo exercia superintendência sobre todo o distrito ou diocese”. 

Em período subsequente, tendeu-se à conclusão de que bispos de determinadas igrejas, como os de Roma, Jerusalém, Éfeso, Antioquia e Alexandria, eram superiores aos de outras e não demorou até que o bispo de Roma viesse a ser objeto de uma honra especial, pelas seguintes razões: a uma, Roma era a capital do império e talvez possuísse a igreja mais rica e influente; a duas, uma forte tradição ligava Roma aos apóstolos Paulo e Pedro, considerados os principais líderes da igreja primitiva; a três, acreditou-se que Pedro teria sido o primeiro bispo de Roma e que Cristo havia dado a ele a primazia dentre os apóstolos, com base em Mateus 16.18,19 e João 21.15-19; a quatro, a doutrina da sucessão apostólica pretendia fazer todos os bispos retornarem aos apóstolos e o bispo de Roma, a Pedro. Como, a partir dessa reflexão, Pedro teria a primazia no colégio apostólico, todos os bispos estariam para o bispo de Roma como os apóstolos supostamente estiveram para Pedro.

Deve-se ponderar, todavia, quanto à alegada primazia de Pedro dentre os apóstolos e sua suposta liderança em Roma, acerca das seguintes considerações:

Primeiro, a prerrogativa do “poder das chaves”, dada a Pedro em Mateus 16.19, foi igualmente concedida aos demais apóstolos em João 20.23 e a toda a Igreja em Mateus 18.15-18. Isso se dá porque tal poder não está adstrito a quaisquer dos apóstolos, mas ao evangelho de Jesus Cristo.

Segundo, por mais de uma vez houve debate entre os apóstolos com vistas a uma primazia entre eles, como se pode verificar em Lucas 9.46 e 22.24-30, e na presença de Cristo. Se uma espécie de primado já houvesse sido conferida a Pedro em Mateus 16.18,19, não se teria travado tal discussão na época da prisão do Senhor Jesus ou nosso Senhor teria uma base sólida para corrigir o desvio. Muito ao contrário, o ensino de Jesus foi no sentido de não haver domínio hierárquico entre os apóstolos, como se pode verificar em passagens como Mateus 19.28 e Apocalipse 21.14.  

Terceiro, Paulo não se via como inferior a Pedro nem em nada dependente dele, como se pode deduzir de Gálatas 1.15-19, tampouco se conteve quando a necessidade exigiu que lhe resistisse “face a face” (Gl 2.11-14). 

Quarto, Pedro é visto nas páginas do Novo Testamento como mais um entre seus pares (Gl 2.9). Em Atos 8.14, ele é um delegado, juntamente com João, da igreja de Jerusalém para supervisionar o trabalho em Samaria. Em Atos 15, naquela importante assembleia da igreja de Jerusalém, não vemos Pedro exercer o primado alegado pelos romanistas. Com efeito, o decreto dessa assembleia foi promulgado pela ampla participação dos “apóstolos”, “presbíteros” e por “toda a igreja” (At 15.22,23). Mais ainda, Pedro mesmo, pelo que lemos dos seus pronunciamentos e das suas epístolas, não se reconhecia portador de nenhuma primazia, como se há de concluir pelo modo como tratou da substituição de Judas, em Atos 1.25,26. 

Quinto, tampouco pode prosperar a interpretação de Mateus 16.18 que faz de Pedro o fundamento sobre o qual Cristo construiria Sua Igreja. Há divergência sobre a interpretação de quem ou do que seria a “rocha” no texto em comento, se o próprio Cristo, se a confissão de Pedro, como parte da doutrina apostólica, ou mesmo se Pedro, referido por Jesus como aquele que abriria as portas do reino com a pregação aos judeus, em Atos 2, e aos gentios, em Atos 10. Entretanto, o Novo Testamento é tão claro sobre quem é a rocha fundamental da Igreja que a única interpretação inaceitável é a que dá a Pedro o lugar de ser o sustentáculo dela, como se pode conferir nas palavras de Cristo mesmo (Mt 7.24-27; 21.42), do próprio Pedro (At 4.11,12; 1Pe 2.4-6) e de Paulo (1Co 3.11; 10.4; Ef 2.19-22).

Pois bem, como afirmou E. Carlos Pereira, em sua obra “O Problema Religioso da América Latina”, por ele prefaciada em 1920, “diremos com distincto escriptor: – a ausencia do sol ao meio-dia não é mais notável do que a ausencia da supremacia official de S. Pedro nas paginas do Novo Testamento” (mantemos a ortografia original). 

Nada obstante, o fato é que esse período da história da igreja já encerra com uma forte doutrina de sucessão apostólica, com um bispo em cada igreja elevado à posição hirarquicamente superior ao presbítero e com certa proeminência reconhecida, sobretudo na obra de Cipriano, do bispo de Roma sobre os demais.

O Credo dos Apóstolos 

Aliado ao papel do bispo como elemento unificador da igreja, desenvolveu-se uma declaração de fé que ficou amplamente conhecida como “Credo dos Apóstolos”, além de ter sido chamada também de “a regra de fé”, “a regra da verdade”, “a tradição apostólica” e, mais tarde, “o símbolo de fé”. Justo L. González explica o último termo em conexão com a função do Credo com as seguintes palavras: “A palavra “símbolo” não tinha então o sentido que tem para nós hoje, mas se referia a um meio de reconhecimento. Por exemplo, se dois generais iam se separar, tomavam uma peça de barro, a quebravam e cada um deles levava consigo um pedaço. Se mais tarde um dos generais quisesse enviar mensagem ao seu colega entregava o pedaço de barro ao mensageiro, que então podia identificar-se porque seu pedaço de barro encaixava perfeitamente com o que tinha o outro general. A esse meio de reconhecimento dava-se o nome de “símbolo”. Logo, o “símbolo de fé” era um meio para reconhecer aqueles cristãos que sustentavam a verdadeira fé, em meio de toda a sorte de doutrinas que pretendiam ser verdadeiras”. 

A História do Credo 

Até metade do século XVII, era corrente a crença que o Credo havia sido composto pelos apóstolos em Jerusalém, pela época do Pentecostes, antes de se separarem, havendo cada um contribuído com uma cláusula. Essa lenda é vista pela primeira vez na Exposição do Credo (Expositio Symboli) de Rufino de Aquiléia, no fim do século IV, no que foi seguido, com modificações, por Ambrósio de Milão (c. 400), João Cassiano (c. 424) e por toda a tradição católica romana. Entre os protestantes, a lenda encontrou defensores, foi questionada por Calvino e em seguida desmentida definitivamente por diversos estudiosos.

Portanto, do Credo se pode afirmar que não foi escrito pelos apóstolos, mas que se trata da mais antiga declaração de fé (pós-apostólica) da igreja cristã que chegou até nós, cuja origem, segundo Justo L. González, “se acha nas lutas contra as heresias que tiveram lugar nos meados do segundo século”. Earle E. Cairns afirma que “Irineu e Tertuliano desenvolveram Regras de Fé para serem usadas na distinção entre Cristianismo e Gnosticismo” e funcionavam como sumários das principais doutrinas da Bíblia. Portanto, no segundo século, homens como Irineu, Tertuliano e Hipólito já ofereciam confissões de fé semelhantes ao Credo. 

Todavia, a formulação original parece ter surgido em Roma por volta de 340 d.C. e Ambrósio foi o primeiro a dar ao documento o título de Credo dos Apóstolos. Nos séculos VII e VIII, o Credo já era usado amplamente pelas igrejas da Gália (atual França) e Espanha, de onde nos advém a versão final.

Abaixo, transcreveremos a declaração usada no batismo por Rufino de Aquiléia, em c. de 400 d.C., e a versão recebida, respectivamente: 

Creio em Deus Pai onipotente e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria, que foi crucificado sob o poder de Pôncio Pilatos e sepultado, e ao terceiro dia ressurgiu da morte, que subiu ao céu e assentou à direita do Pai, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo, na santa Igreja, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna [omitido por Rufino] (in Documentos da Igreja Cristã, H. Bettenson).

Eu creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador dos céus e da terra; E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao inferno e ao terceiro dia levantou-se dos mortos, ascendeu aos céus e sentou à mão direita de Deus Pai todo-poderoso, de onde virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo, na Santa Igreja católica, na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna.

Trata-se, como se pode verificar, de uma confissão essencial. É uma declaração que todos precisamos conhecer e aceitar para sermos cristãos. É um credo essencial, uma apresentação do núcleo fundamental que todos quantos se dizem cristãos precisam confessar.

Os reformadores deram grande valor ao Credo dos Apóstolos. Calvino o comentou, afirmando que cada uma de suas cláusulas se origina nas Escrituras, e Lutero o fez parte dos seus Catecismos, aduzindo que o Credo “apresenta tudo o que devemos esperar e receber de Deus, e nos ensina, em suma, a conhecê-lo por completo”.

Segundo Phillip Schaff, o Credo dos Apóstolos “é de longe o melhor resumo popular da fé cristã jamais feita em tão pouco espaço (…)”, ao mesmo tempo em que deve ser admitido “que a grande simplicidade e brevidade deste Credo, que tão admiravelmente o adapta para todas as classes de cristãos e adoração pública, o faz insuficiente como um regulador de doutrina bíblica para um estágio mais avançado do conhecimento teológico”.

As raízes hebraico-cristãs dos credos e confissões 

A tradição religiosa hebraico-cristã é puramente confessional. A fé dos hebreus e dos cristãos é uma fé professante, por assim dizer. Isso ocorre porque a Revelação divina é proposicional. Deus se revela proposicionalmente, isto é, comunicando máximas, assertivas, através de expressões verbais que devem ser conhecidas e cridas. 

As confissões são, lado outro, respostas de fé da Igreja, destinatária por excelência da Revelação. Deus se revela através das Escrituras e a Igreja responde com uma afirmação de fé, com uma confissão, com um “eu creio” ou “nós cremos”.

No Antigo Testamento, já encontramos diversas confissões de fé do povo hebreu, nas quais se professa que há um só Deus, que Ele é singular, além da confissão quanto aos Seus poderosos feitos (Ex 15.1-18; Dt 6.20-24; 26.5-9; Js 24.2-13), bem como dos Seus atributos (Sl 136; Sl 40.9-10; 96.1-10; 147.1-7).

No Novo Testamento, a palavra “homologia” (confissão) ocorre seis vezes (2Co 9.13; 1Tm 6.12,13; Hb 3.1; 4.14; 10.23) e os verbos correlatos outras tantas, com o mesmo sentido. Às vezes, essa confissão se dá de forma pública (Tt 1.16; Mt 10.32,33; Rm 10.9,10) e, notras vezes, de forma comunitária (2Co 9.13), sem olvidar para o fato de que há um preço que se paga pela confissão (Jo 9.22; 12.42).

Diversas são as confissões encontradas no Novo Testamento. Algumas põem ênfase em Cristo (1Co 15.3,4; Fp 2.5-11; 1Tm 3.16; 2Tm 2.8; 1Pe 3.18-22; 1Jo 4.2,15); outras, no Pai e no Filho (1Co 8.6; Gl 1.1-5; 1Tm 2.5,6; 6.13-16; 2Tm 4.1); e outras ainda enfatizam a Trindade (Mt 28.19; Rm 9.1-4; 2Co 1.21,22; 13.13; 1Pe 1.2; Jd 20,21). 

É notável que as igrejas cristãs de todos os tempos tenham sentido a necessidade de explicitar suas crenças em documentos diversos. Nos séculos IV e V, sobretudo, essas declarações assumiram a forma de “credos”. “Credo” é uma declaração concisa, composta de afirmações consistentes daquilo que o cristão deve crer e confessar; é, em geral, destinada ao uso público. Os credos sempre começam com expressões do tipo ”credo” ou “credemus” (“eu creio” ou “nós cremos”), porquanto representam a resposta humana à revelação divina. As confissões, por sua vez, são documentos teológicos mais completos e as mais importantes delas foram escritas nos séculos XVI e XVII. 

Questão das mais pertinentes é saber se as igrejas cristãs deveriam ter articulado suas crenças em documentos formais – credos ou confissões -, ou se deveriam fazê-lo hoje. O ponto é relevante porque sempre houve (e ainda há) quem rejeitasse formulações credais, em geral argumentando que tais documentos emprestam à Igreja excessiva formalidade, além de “engessar” sua reflexão teológica. Há de se inquirir, portanto, se tais alegações procedem. 

A tradição hebraico-cristã, urge relembrar, estabelece que, como o meio revelacional divino é proposicional, os credos são, por outro lado, respostas de fé da Igreja, destinatária por excelência da Revelação. É dizer, Deus Se revela, pelo Seu Espírito, através das Escrituras, e as igrejas respondem com uma afirmação de fé, com uma confissão, com um “eu creio”.

Além da razão já apontada a fundamentar a existência dos nossos Credos e Confissões, as seguintes devem ser seriamente consideradas. Primeiro, os Credos distinguem a ortodoxia do erro religioso. Os cristãos primitivos se preocuparam com a manutenção da tradição cristã conforme haviam recebido dos apóstolos. Tomaram emprestado um termo clássico, ortodoxia, para significar a postura bíblica e doutrinária harmônica com o Novo Testamento e o ensino apostólico, e decidiram preservá-la através de documentos credais. 

Martyn Lloyd-Jones, em palavras claras, afirmou que Deus conduziu a Igreja a concluir que “precisamos saber perfeitamente tanto o que devemos crer quanto o que não devemos crer”, porque “não é bastante que simplesmente apresentemos ao povo uma Bíblia aberta”, visto que “homens e mulheres perfeitamente sinceros, autênticos e capazes podem ler este livro e ainda dizer coisas que são completamente equivocadas”. Portanto, “é preciso que definamos nossas doutrinas – e as definições doutrinárias são o que chamamos credos”. 

Segundo, os Credos são importante auxílio na instrução cristã. Outra razão indiscutível para que adotemos os credos é que os cristãos precisam estar “sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança” que possuem (1Pe 3.15). Todo cristão precisa saber defender a sua fé (Fp 1.16). Isso, segundo Pedro, é estar pronto para oferecer as “razões da esperança”. O cristão foi regenerado para uma “viva esperança” (1Pe 1.3) e essa esperança não é destituída de razão, não é desarrazoada. Cumpre-lhe conhecê-la e estar pronto para apresentá-la. Os credos, nesse ponto, podem ser de grande valia. Nos primeiros séculos, eles certamente foram importante instrumento na preparação catequética, pontua Kelly, perante a qual sua recitação era o lógico estágio de conclusão. 

Terceiro, os Credos são instrumentos importantes para distinguir os verdadeiros crentes. Os credos eram usados pelos cristãos dos primeiros séculos como um teste de ortodoxia e como um ato de adoração no culto público. Importava saber quem deveria ser admitido ao batismo e qual confissão deveria ser requerida daqueles que se achegavam à comunidade da fé, uma vez que a Escritura exige uma confissão oral (Lc 12.8; Rm 10.9). Ainda nas palavras de Ulisses Horta Simões, “Como se poderia afiançar que o cultuante, no meio da comunidade de cristãos, poderia estar em condições de participar da Ceia sem profaná-la? Como poderia esse, para tomar parte do sacramento, resumir adequadamente o conteúdo da fé? Aí temos diversas perguntas que propiciaram as razões iniciais para o surgimento das formulações confessionais que antecederam Niceia”. 

Quanto, os Credos imprimem senso de pertencimento à comunidade da fé. Esse ponto é lindamente acentuado por Alister MacGrath, para quem os credos são importantes tanto porque oferecem um breve resumo da fé cristã, permitindo o reconhecimento de versões incompletas do cristianismo, como porque ressaltam que crer é pertencer à comunidade da fé, ao corpo de Jesus Cristo, à Igreja. MacGrath afirma que “ao estudá-lo, você está se lembrando dos muitos homens e mulheres que o usaram antes de você. Ele lhe dá um senso de história e perspectiva. Enfatiza que você não é a única pessoa a depositar a confiança em Jesus Cristo. Imagine quantos mais ao longo dos séculos recitaram essas palavras quando foram batizados. Imagine quantos outros encontraram no Credo Apostólico uma confissão de uma fé pessoal. Você faz parte dessa fé e pode compartilhar as mesmas palavras que eles usaram para exprimi-la”.

O Cânon do Novo Testamento 

Além da força do bispo monárquico e do desenvolvimento de uma declaração de fé, a Igreja foi gradativamente sendo levada pelas circunstâncias providenciais a reconhecer oficialmente os livros inspirados que comporiam o Novo Testamento – o Cânon.

Diversos fatores conduziram a Igreja ao reconhecimento dos seus livros inspirados, dos quais destacaremos dois: hereges como Marcião estavam formando seu próprio cânon e as perseguições levaram os cristãos a desejarem saber quais os livros pelos quais valeria a pena morrer. Nesse sentido, deve-se pontuar com Flanklin Ferreira que os desafios das seitas e a perseguição apenas aguçaram o interesse da Igreja em fixar oficialmente o número exato de livros do Novo Testamento, aduzindo ainda o que segue: “O primeiro Pai da Igreja a falar de forma inequívoca de um ‘Novo’ Testamento em paralelo com o Antigo Testamento foi Irineu de Lião. Entretanto, Clemente, Inácio, Policarpo, Justino, Tertuliano, Orígenes, entre outros, já usavam o Novo Testamento, tratando-o como inspirado do mesmo modo que o Antigo Testamento”.

O processo de reconhecimento do cânon, todavia, não se deu de uma vez nem sem disputas. Norman Geisler e William Nix observam que “havendo tão grande diversidade geográfica de origens e destinatários, é compreensível que nem todas as igrejas haveriam de possuir, de imediato, cópias de todos os livros inspirados do Novo Testamento. Acrescentem-se os problemas de comunicação e de transporte, e fica mais fácil ver que seria preciso algum tempo até que houvesse um reconhecimento geral de todos os 27 livros do cânon do Novo Testamento”. 

No processo de reconhecimento, por outro lado, os “testes de canonicidade” utilizados foram os da apostolicidade, pelo qual se buscava a autenticidade da autoria e se tinha sido escrito por apóstolo ou sob sua influência, e da concordância doutrinária com a regra de fé já consolidada.

De plano, deve ser anotado que, enquanto ainda viviam os apóstolos, já estava circulando entre as igrejas escritos espúrios, o que se pode depreender de Lucas 1.1-4, 2Tessalonicenses 2.2 e 3.17 e João 21.23,24. Por outro lado, pode-se verificar igualmente a prática da leitura pública das cartas apostólicas nas reuniões das igrejas (1Ts 5.27; Cl 4.16; Ap 1.3). Do exposto, no mínimo, se pode argumentar em favor de uma seletividade já em processo no período neotestamentário, vez que somente as cartas autorizadas deveriam ter força cogente aos cristãos, em matéria de religião, e lidas no culto público como a Palavra autoritativa de Deus. Ademais, é mesmo possível que Pedro já tivesse uma coleção das cartas de Paulo (2Pe 3.15,16), do modo como Paulo conhecia o evangelho de Lucas (1Tm 5.18; Lc 10.7). 

Já no começo do segundo século, circulavam juntos os quatro Evangelhos, Atos e as Epístolas de Paulo. Tiago, 2Pedro, 2João e 3João, Judas, Hebreus e Apocalipse tiveram sua inclusão no cânon discutida por mais tempo, sobretudo pela incerteza quanto à autoria. 

Foi em 367 d.C. que Atanásio, então Bispo de Alexandria, escreveu uma carta às igrejas sob sua supervisão (“Carta de Páscoa”) incluindo uma lista dos 27 livros do Novo Testamento, tal qual o conhecemos. Jerônimo e Agostinho, para citar outras vozes individuais, confirmaram essa lista e, ainda no século IV, os concílios de Hipona (em 393 d.C.), Cartago (em 397 d.C.) e Calcedônia (em 451 d.C.) fizeram o mesmo. Na prática, “apenas aprovaram e deram expressão uniforme àquilo que já era aceito como fato pelas igrejas havia um bom tempo”.

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