Introdução
O Credo dos Apóstolos salta do nascimento de Jesus à sua Morte, pressupondo uma vida de inteira obediência à vontade do Pai. Assim, chegamos ao âmago de toda a mensagem bíblica: “Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”. Aqui reside o cerne do evangelho, o centro de toda a Escritura e o núcleo inegociável da nossa confissão. Com efeito, o Senhor Jesus nasceu para morrer (Jo 12.27). A cruz é o propósito primordial da encarnação.
Padeceu sob Pôncio Pilatos
A menção do antigo Credo a Pôncio Pilatos pretende localizar os eventos salvadores na história. Nosso Senhor nasceu, viveu, morreu e ressuscitou no palco da história humana, o que explica, em parte, a especial menção credal ao governador romano.
Mas não só. Pilatos, uma autoridade pública dentre os gentios, simboliza a morte de Jesus como tendo acontecido “fora do arraial” e corrobora a necessidade de entendermos a crucificação como o cumprimento de profecias e tipos do Antigo Testamento. Ali, diz-se que as ofertas pelo pecado eram queimadas fora do arraial (Ex 29.14; Lv 4.12,21; Nm 19.3,9), onde também eram enterrados criminosos e blasfemadores (Lv 10.4,5; 24.14,23; Nm 15.35,36) e os impuros viviam durante o tempo da sua impureza (Lv 13.46; 14.3; Nm 5.2-4; 12.14,15; Dt 23.10).
Assim, Jesus foi entregue aos gentios para julgamento (Lc 24.7), tendo Pilatos como o seu executor imediato que, enquanto representava o poder político imperial de Roma, cumpria o plano divino da redenção (Jo 19.11). Essa conexão é explicada em Hebreus 13.11-13.
Foi crucificado
A morte de Jesus Cristo decorre, por um lado, do caráter santo e justo de Deus, que não pode simplesmente ignorar a existência do pecado (Gn 18.25; Ex 34.7; Na 1.3), e, por outro, da condição pecaminosa em que se encontra a raça humana. O pecado, porque Deus é santo e justo, precisava ser punido. Entretanto, por ser amoroso, Deus proveu um Substituto adequado, cuja vida mais que valiosíssima suportaria toda a ira divina em sua morte, para que Deus, perdoando-nos, não negasse sua santidade e sua justiça (Rm 3.21-26; 4.5).
O quadro completo da relação entre o homem e Deus, portanto, é este: Deus se relaciona com o homem tanto em ira como em amor, e a cruz é a evidência do amor de Deus (Jo 3.16; Rm 5.8), mas também da sua justiça (Mt 27.45,46). A cruz é a punição aplicada por Deus (isso é justiça!) a Deus (isso é amor!). “Na cruz, a misericórdia e a ira se encontram. A santidade e a paz se beijam. A cruz é o clímax da história da redenção” (D. A. Carson).
No Antigo Testamento, a morte substitutiva e penal do Salvador foi anunciada logo após a entrada do pecado no mundo, em Gênesis 3.15. Esse texto assegura a vitória do descendente da mulher exatamente no momento em que é ferido no calcanhar. É quando fere o descendente da mulher que a serpente é mortalmente ferida, um vislumbre maravilhoso de que Cristo venceria em sua morte. A ideia de sacrifícios para remover o pecado foi logo ensinada (Gn 3.21; 4.4), princípio que permaneceu entre os patriarcas (Gn 8.20; 12.7,8; 13.4; 22) e foi corroborado na páscoa (Ex 12) e nas prescrições levíticas (Lv 1-6,16).
O princípio envolvido nos sacrifícios antigo-testamentários é sumariado por Matthew Henry: “O pecador merecia morrer; portanto, o sacrifício tem de morrer. Ora, sendo o sangue a vida [Lv 17.11], de tal maneira que, ordinariamente, animais eram mortos para uso dos homens, esvaindo-se todo o seu sangue, Deus designou a aspersão ou derramamento do sangue do sacrifício no altar, para significar que a vida do sacrifício fora oferecida a Deus em lugar da vida do pecador, como um resgate ou um preço substituto para isto” (citado por Ferreira e Myatt).
No Novo Testamento, a morte do Senhor Jesus é o cumprimento de todos aqueles sacrifícios. Cristo é o “nosso Cordeiro pascal” (1Co 5.7), o “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29,36). Na morte de Cristo, Deus expiou (removeu, anulou, cancelou) o pecado e redimiu (libertou mediante preço de redenção) o homem do cativeiro da culpa do pecado (Rm 3.24), com o propósito de mudar sua própria atitude em relação ao homem (fazer propiciação), isto é, para tornar-se propício ou favorável ao homem (Rm 3.24,25) e reconciliá-lo consigo (Rm 5.11; 2Co 5.19).
Noutras palavras, o modo como Deus tornou-se propício ao homem (fez propiciação ou afastou a sua própria ira) e o reconciliou consigo (fez a reconciliação) foi através do sacrifício expiatório substitutivo realizado por Jesus Cristo, cujo sangue (isto é, a vida sacrificada) foi também o preço do resgate (1Pe 1.19; Ap 5.9). Portanto, a morte de Cristo é substitutiva e penal. “O centro da obra de Cristo consiste nele ter suportado a nosso favor e em nosso lugar [caráter substitutivo] o castigo que nos era devido por causa de nosso pecado [caráter penal], trazendo-nos perdão e reconciliação com Deus” (Bruce Milne, citado por Ferreira e Myatt).
Morto e sepultado
Jesus, portanto, morreu. Na morte, ele foi condenado. Melhor, ele foi amaldiçoado. Ele recebeu sobre si a maldição destinada pela Lei Mosaica aos transgressores, como se transgressor fosse (Gl 3.13,14). Observe-se que “maldição”, no sentido bíblico, não corresponde a rituais de magia com a pretensão de causar infortúnios aos desafetos. Maldição é a justa e merecida recompensa estabelecida pela Lei aos que desobedecem seus preceitos. Ser amaldiçoado é colher as consequências do pecado, é ser retirado da comunhão graciosa com Deus, removido para fora do arraial e cortado dos benefícios do povo da Aliança. Na cruz, Jesus foi amaldiçoado, visto ter assumido o lugar dos violadores da Aliança. Ali, Jesus foi cortado de toda a bênção e exposto à mais completa e intensa ira do Deus Todo-poderoso.
Há que se recordar ainda a respeito da enorme significação em dizer que Jesus foi sepultado. O sentido do sepultamento de Jesus não se restringe a demonstrar a sua morte. Lucas 23.50-56 informa que um homem chamado José de Arimateia, membro do Sinédrio, depositou o corpo de Jesus, após envolvê-lo em lençol de linho, em uma sepultura nova.
É notável, pois, que enquanto os corpos dos crucificados eram simplesmente descartados sem qualquer preparação ou ritual fúnebre ao relento, fora de Jerusalém, o corpo de Jesus foi sepultado com as honras dos afortunados. O fato de o Messias ter recebido essas honras já indica que sua morte foi recebida pelo Pai como a morte de um justo, cumprindo o que está escrito em Isaías 53.9: “Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte, posto que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca”. Isto é, embora tenha morrido como um transgressor, seu sepultamento já apontava que as transgressões pelas quais morreu não eram suas.
Desceu à mansão dos mortos
Sobre essa cláusula do Credo, duas observações devem ser feitas de plano: primeiro, que em nenhum lugar das Escrituras é dito que Cristo “desceu ao hades (inferno)”. Paulo diz tão somente que Cristo “havia descido até as regiões inferiores da terra” (Ef 4.9), expressão que pode significar simplesmente que Cristo se encarnou, entendendo-se que as “regiões inferiores” correspondem à palavra “terra”. O fato é que não há qualquer referência ao hades no texto. Em 1Pedro 3.18-20, o apóstolo comunica que o Espírito de Cristo, que inspirava os profetas (1Pe 1.11), pregou à geração pré-diluviana (que o apóstolo chamou de “espíritos em prisão”) através de Noé, “pregador da justiça” (2Pe 2.5). Semelhantemente, não há qualquer menção a uma descida ao inferno na mensagem petrina.
A segunda observação é que a expressão latina “descendit ad inferna” (desceu aos infernos/hades) ocorreu nas versões mais antigas do Credo como uma forma de explicar a morte e o sepultamento do Senhor. Somente por volta do século VII a cláusula em apreço apareceu como acréscimo a “crucificado, morto e sepultado”.
O certo é que “descendit ad inferna” não pode significar que entre a morte e a ressurreição Cristo tenha estado no inferno. As Escrituras dizem expressamente onde Cristo esteve nesse período, afirmando que esteve com o Pai (Lc 23.46), no paraíso (Lc 23.43), lugar de gozo e bem-aventurança correspondente ao “terceiro céu” de 2Coríntios 12.2-4, onde Deus habita de modo especial.
“Descendit ad inferna” não significa também que Cristo ainda tinha qualquer outra missão a realizar no inferno. Primeiro, porque sua morte foi suficiente para expiar o pecado e, por isso, Ele não precisava completar a obra da redenção no inferno (Jo 19.30). Também porque sua vitória foi proclamada em sua morte e ressurreição, ao vencer o último inimigo – a morte (1Co 15.26), não havendo qualquer necessidade de uma proclamação do seu triunfo no inferno.
Há apenas dois sentidos possíveis para aceitarmos a cláusula “descendit ad inferna”, segundo Héber Carlos de Campos, quais sejam: ela representa a sepultura, no sentido de “estado de morte”; ou, por outro lado, indica “os sofrimentos agonizantes antes e durante o tempo que [Cristo] passou na cruz”.
Quanto ao último sentido possível, esclarece o Rev. Héber que “experimentar o inferno é experimentar o doloroso abandono da presença confortadora de Deus. A ira de Deus desceu sobre o Filho encarnado e se manifestou não somente nas dores infernais do seu corpo, mas também nas angústias infernais que se apoderaram de sua alma… Por causa da experiência infernal que Cristo teve em face do juízo divino, aqueles por quem ele morreu são libertos para sempre da condenação do inferno”.
Segundo Hendriksen, “naquele dia o inferno veio ao calvário e o Salvador a ele desceu e sofreu seus horrores em nosso lugar, por nós”. Nesse sentido, também R. C. Sproul: “Na cruz, ele estava no inferno, destituído da graça e da presença de Deus, totalmente separado de toda a bênção do Pai… O Pai virou as costas para seu Filho a fim de que a luz de seu rosto resplandeça sobre nós. Não é admirável que Jesus tenha gritado das profundezas de sua alma”.
Conclusão
Acompanho bem de perto a vida de algumas populações do sistema carcerário brasileiro e tenho testemunhado que uma das principais forças efetivamente ressocializadoras tem vindo da assistência religiosa de algumas igrejas aos presos. Embora haja um esforço retórico no sentido de convencer os condenados que eles são vítimas de uma sociedade opressora ou que cometeram delitos de modo justificado por diversos fenômenos psíquicos e sociais, o certo é que parece ser mais fácil abandonar as noções de justiça própria e perceber-se necessitado do Salvador Todo-poderoso e Todo-misericordioso quando já se está alijado da vida social por razões criminais. Entretanto, cumpre asseverar com todas as forças que todas as pessoas, de todas as raças, etnias e credos precisam de Jesus Cristo, não apenas os condenados da justiça criminal.
É verdade que pecados e crimes não se correspondem em absoluto em um estado laico. No Brasil, é difícil dizer que nunca cometemos crimes se considerarmos que existem em torno de 1500 tipos penais (condutas criminosas estabelecidas em lei). Provavelmente, todos cometemos crimes em algum momento da vida, inclusive por desconhecer que tal e qual conduta é proibida em lei com ameaça de uma sanção penal. Mas ainda que encontremos alguém que jamais praticou um crime dentre as dezenas de centenas em vigor no Brasil, é impossível achar uma pessoa sem pecado e que não mereça a maldição de Deus.
Assim, nem todos iremos ao cárcere, por razões variadas, desde a remota chance de não cometermos jamais nenhum crime, nem sermos acusados e condenados por crime que não cometemos (isso existe também!), até não sermos perseguidos criminalmente por crimes efetivamente cometidos (as tais cifras negras do direito penal). Mas todos somos pecadores, carecemos do Salvador e se não nos voltamos a ele em arrependimento e fé, todos pereceremos eternamente (Lc 13.3,5). Se, todavia, voltarmo-nos para ele, encontraremos no doce e amável Redentor eterna salvação.