O Povo do Senhor, a Igreja, do Antigo e do Novo Testamento, foi redimido, liberto, salvo, com vistas à adoração (1Pe 2.4,5). Conforme observam Mark Dever e Paul Alexander, “diversas vezes em Ex 3 a 10, a adoração corporativa é apresentada como o propósito da redenção (Ex 3.12,18; 5.1,3,8; 7.16; 8.1,20, 25-29; 9.1,13; 10.3, 7-11, 24-27)”. Também no Novo Testamento, o plano eterno da redenção da Igreja e a sua realização no tempo têm como finalidade “o louvor da glória da sua graça”, “a fim de sermos para o louvor da sua glória” e “em louvor da sua glória” (Ef 1.6,12,14).
Segundo Ralph P. Martin, “não há, naturalmente, nenhum lugar no Novo Testamento que claramente afirme que a igreja tivesse qualquer ordem fixa de culto, e muito pouca informação nos é passada quanto às formas externas que eram empregadas”. Para Marrtin, os “escritores do Novo Testamento preocupam-se muito mais com os princípios da adoração e com o espírito que motiva a oferta de louvor a Deus”.
Entretanto, conforme um dos princípios norteadores do Culto Cristão, permanece a verdade que Deus continua estabelecendo as formas exteriores e as atitudes interiores requeridas à adoração que o Seu povo deve prestar-lhe, mesmo sob a administração da Nova Aliança. Ou seja, “tudo o que fazemos na adoração corporativa deve ser claramente fundamentado nas Escrituras” (Mark Dever e Paul Alexander), noção que se traduz no Princípio Regulador do Culto.
Assim, pela Palavra, Deus nos diz como Ele quer ser adorado e com quais elementos formais, tema sobre o que nos debruçaremos a seguir, devendo ressaltar-se que a Escritura não é somente a fonte da forma, mas, sobretudo, o conteúdo de cada forma divinamente estabelecida.
Pois bem, quanto à forma, podemos dizer que o culto deve ser a prática de (1) ler a Palavra, (2) orar a Palavra, (3) pregar/ouvir a Palavra, (4) cantar a Palavra, (5) ver a Palavra (nas ordenanças/sacramentos), (6) viver a Palavra (nas ofertas e expressões de amor fraternal) e(7) confessar a Palavra (recitando credos que expressam a Palavra). Analisemos por partes os elementos firmais do culto.
Ler a Palavra
Primeiro, na adoração corporativa, devemos ler a Palavra (Lc 4.16; Ap 1.3), notadamente para expressarmos nossa disposição para ouvir a Palavra de Deus com o propósito de obedecê-la. Paulo exortou no sentido de que suas cartas fossem lidas nas reuniões públicas das igrejas (Cl 4.16; 1Ts 5.27; Fm 2). Em 1Timóteo 4.13, o apóstolo instruiu seu cooperador Timóteo quanto a uma das suas funções nos cultos públicos da igreja: “persiste em ler” (edição ARC). Segundo Martin, “Nosso interesse em I Tm 4:13 deve-se ao fato de esse texto tratar-se da primeira alusão histórica ao emprego das Escrituras na liturgia da igreja”.
Orar a Palavra
Segundo, devemos orar a Palavra, fazendo orações e súplicas a Deus com toda a reverência, através das quais adoramos a Santa Trindade, confessando-Lhe nossos pecados e rendendo-Lhe ações de graças. Em Atos 2.42, Lucas menciona a prática perseverante da oração dos cristãos primitivos em suas reuniões públicas e o Novo Testamento está repleto de referências a orações coletivas, tanto em Atos (13.1, 2 etc) como nas Epístolas (Ef 2.15ss; Cl 1.9ss etc).
O fato de que nosso Senhor ensinou seus discípulos a orar (Mt 6.9-15; Lc 11.2-4) já nos indica que orações não são palavras ditas sem quaisquer critérios. A melhor maneira de apresentarmos a Deus orações que Lhe agradem é orando segundo a orientação da Sua Palavra. Deus Se agrada de ouvir palavras dirigidas a Ele nos termos da Sua Palavra. É notável como a oração de At 4.24-30 é moldada por citações das Escrituras (cf. Ex 20.11; Sl 146.6; 2.1, 2) e fatos do Evangelho (Mt 27.1,2; Mc 15.1; Lc 23.1; Jo 18.28, 29).
Pregar/Ouvir a Palavra
Terceiro, devemos pregar/ouvir a Palavra de Deus. Por intermédio daqueles a quem Deus constituiu para apascentar o Seu povo (At 20.7,20,28), nós ouvimos a exposição da Palavra. Os pastores não devem se sentir pressionados pelos modismos da época. Antes, que se mostrem firmes em ensinar tão somente o conselho de Deus e nada menos que todo o conselho de Deus (At 20.20; 2Tm 4.1-5).
O povo cristão, por sua vez, deve ouvir a pregação da Palavra com toda a reverência e devoção, aplicando a si cada expressão como se “proferida por Deus, e não pelo homem (Is 2.3; At 10.33; Gl 4.14; 1Ts 2.13)”, e esforçando-se “não tanto para ouvir o som das palavras do pregador em seus ouvidos, mas, sim, para sentir a operação do Espírito agindo em seu coração” (Lewis Bayly).
Portanto, quando estivermos ouvindo o sermão, devemos buscar a compreensão do texto e do tema que estão sendo explicados, atentar às divisões principais da passagem que está sendo exposta, destacar as doutrinas ensinadas por ela e compreender quais as suas exigências com vistas a uma mudança de comportamento. Em alguns momentos, fazer breves anotações poderá ser de grande valor. Também, e mais recomendável ainda, é a prática de o líder da família reunir todos os membros que a compõem após o culto, no lar, o que dará ocasião a que se verifique o que foi compreendido com a exposição bíblica, oportunidade para que a mensagem pregada publicamente seja confirmada na mente e no coração de toda a casa.
Cantar a Palavra
Quarto, devemos cantar a Palavra de Deus. DeEfésios 5.19,20 e Colossenses 3.16,17, somos informados que os cristãos neotestamentários utilizavam “salmos, hinos e cânticos espirituais”. Embora não haja concordância entre os estudiosos a respeito do exato significado dessas palavras, uma das possibilidades é que “salmos” se refiram ao Saltério do Antigo Testamentário; “hinos”, às composições primitivas distintivamente cristãs cujos inúmeros exemplos se acham no Novo Testamento (Ef 5.14; 1Tm 3.16; Fp 2.6-11; Cl 1.15-20; Hb 1.3), e “cânticos espirituais”, aos louvores carismáticos, a exemplo da experiência coríntia mencionada em 1Co 14.15. O Novo Testamento não regulou diversos aspectos do culto, tais como o estilo e o uso de instrumentos musicais, devendo esses elementos ser considerados com prudência para que não se tornem motivo de conflitos na comunidade.
A respeito da música, Mark Dever e Paul Alexander aconselham sabiamente, quando dizem: “faz sentido que cantemos somente canções que expressam com exatidão a Palavra dEle [de Deus]. Quanto mais canções aplicarem corretamente a teologia, as frases e os assuntos bíblicos, tanto melhores elas serão para a igreja – porque a Palavra de Deus edifica a igreja, e a música nos ajuda a rememorar a Palavra, que rapidamente esquecemos. Isso não significa que devemos usar somente hinos e canções antigas. Existe muita sabedoria e edificação em usarmos vários estilos musicais, para que o gosto musical das pessoas se amplie, com o passar do tempo, como fruto de maior exposição a gêneros musicais e de períodos de tempo diferentes”.
O Novo Testamento, semelhantemente, não indica a forma que o canto cultual deve assumir, se, por exemplo, utilizava-se cantores, grupos ou corais. Em 1Coríntios 14.26, embora Paulo esteja tecendo certa crítica à desorganização do culto em Corinto, ele menciona alguém que participa do culto com “salmo”. Entretanto, por razões mais que justificáveis, o canto congregacional (que envolve a participação de toda a congregação) deve ter preferência em nossa adoração. Isso não significa que participações solos especiais e corais sejam “abominações” ou “práticas absurdas”, mas, certamente, o efeito de uma intensa e frequente ocorrência de especiais desestimulará a participação corporativa da igreja na música e, no dizer dos autores acima citados, poderá “obscurecer a linha de separação entre adoração e entretenimento”. Assim, quanto mais distante o aspecto formal do culto estiver do entretenimento, tanto mais fortalecida será a verdade que a igreja se reuniu para adorar, para exercer o papel ativo na adoração, e não para ser mera expectadora de um “culto-show”.
Por isso, todo o planejamento musical para o culto deve ser pensado entendendo-se a participação dos músicos e cantores como estando a serviço da adoração que será prestada a Deus pela igreja, e não somente pelos integrantes do “conjunto musical”. Em consequência, os instrumentos musicais e vozes do conjunto devem ser apenas levemente amplificados, de modo que a voz que se sobressai seja a da igreja. A ênfase deve ser dada à letra que está sendo cantada e não aos arranjos melódicos e ao ritmo. Os músicos devem compreender nitidamente que estão apenas a serviço da igreja e não apresentando números musicais para que ela aprecie passivamente.
O repertório deve ser composto de músicas que exponham as doutrinas bíblicas de maneira inequívoca, sem ambiguidades. As músicas mais adequadas ao culto são, portanto: primeiro, aquelas que enfatizam as verdades objetivas do Evangelho, e não as experiências subjetivas dos crentes; segundo, as que se concentram em Deus e nas realidades espirituais, e não no homem e nas suas necessidades temporais; terceiro, as que se utilizam prioritariamente dos pronomes na primeira pessoa do plural, e não no singular, para que se evidencie o aspecto corporativo da adoração; e, quarto, as que possuem uma progressão lógica compreensível de ideias, e não mera combinação desconexa de frases que nada comunica.
Ver a Palavra
Quinto, as ordenanças ou sacramentos são as formas biblicamente autorizadas para vermos a Palavra de Deus. Percebe-se claramente como Deus deseja a participação ativa de toda a igreja no culto quando consideramos as ordenanças do batismo e da Ceia do Senhor. Frise-se, elas são as formas únicas autorizadas e permitidas para vermos a Palavra de Deus no culto. Todavia, vê-se que nelas não há meros expectadores. No batismo, recebemos o selo visível da graça invisível e professamos publicamente a nossa fé e submissão a Cristo como Senhor. Na Ceia, somos nutridos espiritualmente enquanto professamos e anunciamos que Cristo morreu para nos purificar e perdoar os pecados (1Co 11.26).
No Novo Testamento, a participação nas ordenanças não é opcional ao discipulado cristão (Mt 28.19; 1Co 11.23-25). O batismo seguia invariavelmente a fé (At 2.41; 8.12,36,37; 9.18; 22.16) e a Ceia deveria ser partilhada com a santidade que a ordenança exige (1Co 11.27-29), sob pena do julgamento divino (1Co 11.30-32).
Viver a Palavra
Sexto, no culto também podemos viver a Palavra, e o fazemos quando ofertamos (1Co 16.1-4; 2Co 8,9) e manifestamos comunhão fraternal uns aos outros (Ef 5.19; 1Ts 5.26). Em 1Coríntios 16.1-4, Paulo nos dá diretrizes para a adoração que prestamos a Deus com nossas contribuições: primeiro, devemos contribuir porque sentimos empatia com os necessitados; segundo, devemos contribuir sistematicamente; terceiro, a menção a ofertas no “primeiro dia da semana” – o dia principal do culto da igreja – deixa evidente que a contribuição é um sacrifício espiritual, uma forma pela qual adoramos a Deus, um elemento formal do culto; quarto, deve ser proporcional à prosperidade que Deus concede a cada um; e, quinto, deve ser administrado com a participação de pessoas reconhecidamente idôneas. No Novo Testamento, além do cuidado com os necessitados (2Co 8,9), as contribuições cristãs sustentavam os missionários e os líderes locais (Gl 6.6; 1Tm 5.17; Fp 4.15-20).
Segundo Ralph P. Martin, quando apresentamos nosso dinheiro em adoração, “declaramos que todas as riquezas emanam dele (v. Ageu 2:8), estão sujeitas a ele (I Co 7:30, 31) e são oferecidas de volta a ele em gratidão (Tg 1:17)”. Martin afirma ainda que “Nenhum ato do culto público pode significar tanto ou tão pouco quanto a entrega e a recepção das nossas dádivas na casa de Deus. Se contribuímos de modo impensado e formal, o ato está destituído de toda relevância e calor espiritual. Mas, se vemos a oferta como parte inseparável de nossa adoração coletiva e a ancoramos firmemente na resposta total que damos às novas do evangelho, ela assume significado novo e mais rico; e a dedicação de nosso dinheiro passa a ser o sinal externo e visível da graça interna e espiritual de um coração grato”.
Confessar a Palavra
Finalmente, também devemos adorar a Deus confessando a Palavra, ao recitarmos comunitariamente nossos credos e confissões (2Co 9.13; 1Tm 3.16), os quais devemos mantê-los firmemente (Hb 3.1,12,13; 4.14; 10.23). Segundo parcela considerável de estudiosos, 1Timóteo 3.16 é um hino que expressa a confissão de fé da Igreja primitiva, visto que, segundo Ralph P. Martin, “a igreja sempre se deleitou em cantar suas mais profundas convicções”. Entretanto, o texto neotestamentário que mais claramente se apresenta em forma de um credo é 1Coríntios 15.3-5 e, segundo indicação relativamente consensual entre os eruditos, trata-se do mais antigo resumo da fé cristã, certamente pré-paulino, e que era recitado na adoração da igreja primitiva. Ao recitar esse Credo primitivo, a igreja confessava sua crença na morte de Cristo e na relação dessa morte com os nossos pecados, confessava que Cristo foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, tendo todos esses fatos sido preditos pelo Antigo Testamento, e confessava que a ressurreição foi comprovada pelas aparições do Cristo ressurreto.
Conclusão
Por todo o exposto, devemos concluir que “no que se refere ao culto, não estamos à mercê de nossas opiniões, preferências ou criatividade”, conforme Ferreira e Myatt. Esses autores também partilham a noção segundo a qual “o Senhor ordena que o cultuemos com nossos irmãos”, como também que Deus “ordena os elementos que constituem este mesmo culto público” (Ferreira e Myatt).
A fonte dos elementos do culto é a mesma que disciplina a vida do cristão em sua relação com Deus e com o próximo, a Escritura. Mas, muito além de regular as formas de culto aceitáveis a Deus, a Palavra de Deus deve ser o próprio conteúdo que preenche cada forma.