Os cristãos evangélicos divergem veementemente sobre a doutrina da eleição. Para uns, ela é perniciosa, engessadora dos esforços evangelístico-missionários das igrejas e deve ser energicamente combatida e banida da mente dos cristãos. Para outros, ela é a mais magnífica forma de reconhecer a glória da graça e da soberania de Deus, além de ser fonte de indizíveis conforto e segurança para os cristãos.
Entretanto, deve ser destacado que a disputa acerca da doutrina da eleição não diz tanto respeito à sua presença na Escritura, nem ao seu Autor e tampouco ao tempo em que se realiza. Isso quer significar que todos podemos concordar que a Bíblia ensina sobre eleição e predestinação e que realmente nos faz concluir que Deus é seu autor e que Ele de fato a realizou antes da fundação dos séculos. Isso porque a linguagem utilizada, sobretudo no Novo Testamento, torna aquelas realidades indiscutíveis, conforme se pode observar nas passagens a seguir indicadas:
- O verbo “eleger” ou “escolher” (eklego) ocorre 22 vezes no Novo Testamento, 7 das quais se referem a pessoas eleitas para a salvação: Mc 13.20; At 13.17; 1Co 1.27 [duas vezes], 28; Ef 1.4; Tg 2.5;
- O substantivo “eleito” (eklektos) também ocorre 22 vezes no Novo Testamento e em 17 das quais seu uso é aplicado a pessoas eleitas para a vida eterna: Mt 22.14; 24.22, 24, 31; Mc 13.20, 22, 27; Lc 18.7; Rm 8.33; Cl 3.12; 2Tm 2.10; Tt 1.1; 1Pe 1.1; 2.9; 2Jo 1,13; Ap 17.14;
- A palavra “eleição” (ekloge) ocorre 7 vezes no Novo Testamento, todas aplicadas à salvação de pecadores: At 9.15; Rm 9.11; 11.5,7,28; 1Ts 1.4; 2Pe 1.10;
- O verbo “predestinar” (proorizo) ocorre 6 vezes no Novo Testamento. A cruz de Cristo e o plano redentor foram predeterminados (At 4.28; 1Co 2.7). Nas demais referências, pessoas foram predestinadas para a salvação: Rm 8.29,30; Ef 1.5,11;
- Outra palavra que significa “escolher” (haireo) ocorre 3 vezes, sendo em uma delas utilizada para a escolha de pessoas para a salvação: 2Ts 2.13;
- Há ainda o vocábulo que significa “colocar, nomear, ordenar” (tasso), usada 8 vezes, sendo em uma delas aplicável à doutrina da eleição: At 13.48.
Assim, como não se pode discutir o fato que a Bíblia ensina sobre eleição e predestinação, o debate se concentra na controvérsia quanto à sua base, seu fundamento. A questão controvertida é exatamente esta: por que, ou sobre qual fundamento, Deus elegeu algumas pessoas para a salvação e outras, não? Noutras palavras, que os ditos “eleitos” são os que creem, creram ou virão a crer, não há nenhuma dúvida. O ponto nevrálgico, então, é entender como a fé e a eleição se relacionam, em termos de causa e efeito. A eleição é a causa primeira da fé, ou a fé prevista é a causa da eleição?
Segue um quadro comparativo entre as perspectivas calvinista e arminiana, como são chamadas, para melhor visualização do leitor:
Arminianismo | Calvinismo |
Salvação “sinergista” (esforço conjunto) | Salvação “monergista” (somente Deus) |
Eleição condicional, com base em fé e arrependimento previstos | Eleição incondicional, com base na livre e soberana decisão divina |
Eleitas são as pessoas que Deus previu que responderiam positivamente às demandas do evangelho | Eleitas são as pessoas escolhidas livremente por Deus para a salvação |
Presciência é mero conhecimento prévio do modo como os homens reagiriam ao evangelho | Presciência e decreto são correlatos; não há mero conhecimento prévio passivo, mas decisão soberana |
Fé e arrependimento são expressões do livre-arbítrio restaurado pela graça preveniente | Fé e arrependimento são dons de Deus aos eleitos |
A última palavra sobre a salvação é dada pelo próprio homem | A última palavra sobre a salvação é divina |
As marcas do caráter dos eleitos
Não sabemos qual é o número dos eleitos, dado que está protegido contra a curiosidade humana em lugar não revelado do decreto eterno de Deus. Entretanto, foram-nos reveladas as marcas do seu caráter, de maneira que podemos ver nos cristãos genuínos evidências da sua eleição, do modo como Paulo, Silas e Timóteo viram as dos crentes tessalonicenses (1Ts 1.4).
Sobre a questão controversa que envolve a eleição/predestinação, antes noticiada, em breve disponibilizaremos nosso estudo sobre o tema, no contexto do qual comentamos todos os textos bíblicos relevantes e tentamos sistematizar o assunto de forma descomplicada. Por ora, discorreremos sobre as marcas da eleição.
- Em primeiro lugar, os eleitos acolhem a Palavra de Deus confessional e vivencialmente.
Os eleitos creem no evangelho da salvação, o evangelho que é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Ef 1.13; Rm 1.16). Isso significa mais do que simples concordância intelectual e chega a ser um sentimento de profunda necessidade do evangelho e ao compromisso obediente a ele. Por isso a fé sempre atinge a maneira como vivemos. Essa foi a experiência dos tessalonicenses verificada por Paulo. Aqueles crentes haviam recebido a Palavra de Deus pregada pelos apóstolos como de fato ela é, a Palavra de Deus, e, como a recepção da Palavra de Deus sempre traz frutos, sua fé confessional se tornou evidentemente vivencial (1Ts 2.12,13).
- Em segundo lugar, os eleitos dão provas da sua eleição em seu crescimento em santidade.
A finalidade da eleição é a santificação do povo eleito, razão pela qual jamais deveríamos alegá-la como licença para continuar pecando. Na verdade, como afirmou Spurgeon, “você pode aproximar-se de Jesus Cristo como um pecador, mas não pode se aproximar dele como uma pessoa eleita enquanto sua santidade não for visível”.
- Em terceiro lugar, espera-se dos eleitos de Deus, sobretudo daqueles que têm consciência desse fato, uma manifesta humildade.
Notadamente para aqueles que compreendem que a salvação é obra exclusivamente divina, a humildade assume em cores mais vívidas caráter imperativo. Nossa dependência da graça soberana de Deus é tal e Deus é de tal maneira livre na dádiva da Sua graça que nos vemos salvos de um modo absolutamente imerecido. Recebemos a benção que não merecíamos e fomos libertos da maldição merecida, motivos pelos quais fica excluída toda a arrogância e vanglória. No pomar onde o evangelho é plantado a humildade tem que crescer exuberante.
- Em quarto lugar, é mais que adequado, é mesmo natural que não apenas a humildade, mas a gratidão seja uma característica evidente daqueles que foram escolhidos por Deus antes da fundação dos séculos.
A gratidão deve orientar todo o nosso relacionamento com Deus e nada a estimulará mais do que a consciência de que nada fizemos e com nada contribuímos para a nossa própria salvação. Precisaríamos de razão maior para o canto e para o culto fervorosos do que saber que fomos eleitos por pura graça? Se formos gratos a Deus, a nossa linguagem será por isso influenciada, abandonaremos os queixumes e nos devotaremos ao gracioso Deus com hinos de louvor e ações de graças (Ef 5.19,20).
Esta é a razão pela qual expressões de louvor e gratidão estão associadas aos feitos misericordiosos de Deus em favor do Seu povo. Em 2Coríntios 1.3, Paulo bendiz a Deus porque Ele nos conforta em toda a tribulação. Em Efésios 1.3-14, o Deus e Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo é louvado pelas bênçãos espirituais da eleição do Pai, da redenção do Filho e do selo do Espírito. Com linguagem semelhante, Pedro bendiz a Deus pela regeneração efetuada nos crentes para uma viva esperança (1Pe 1.3).
- Em quinto lugar, associados com a gratidão, o amor por Deus e o serviço dedicado ao próximo emanam igualmente da consciência da eleição.
A Escritura é cristalina quanto a nos falar que Deus nos amou primeiro, quando éramos pecadores (Rm 5.8-10; 1Jo 4.9-10,19). Deus nos amou quando O odiávamos, e nos deu vida quando estávamos mortos (Ef 2.5). Em resposta, segue-se nosso amor por Deus, que se manifesta na obediência aos Seus mandamentos (Jo 14.21,23). A síntese dos Seus mandamentos referentes aos deveres para com os semelhantes é o amor (Jo 13.34; 1Jo 3.14-15,17-18; 5.1-3), que se revela no serviço abnegado que prestamos uns aos outros.
A propósito de 1Tessalonicenses 1.3, Hermisten Maia afirma que “Paulo enfatiza a atividade laboriosa de amor que também pode ter o aspecto de abnegação; contudo, não é exclusivamente isso. A ideia da expressão é um amor que não teme ser importunado; sabe que o amor envolve compromissos, preocupações, labor e fadiga. O amor revelado pelos tessalonicenses não era simplesmente declarativo; ele se manifestava em atos concretos que exigiam esforços, dificuldades e exaustão”.
- Em sexto lugar, os eleitos se devotam a Deus, quando conscientes da sua eleição, com reverente admiração.
Quedam-se perplexos ante os propósitos misteriosos dAquele que opera todas as coisas conforme o conselho da Sua vontade (Ef 1.11). Foi com a profunda percepção dessa verdade que Paulo desatou uma doxologia em Romanos 11.33-36. Um deus domesticado, que não inspira reverência, admiração, perplexidade, certamente não é o Deus das Escrituras. O conhecimento de Deus, por outro lado, inspira temor, culto reverente e comprometido.
- Em sétimo lugar, os eleitos que têm consciência da sua eleição têm as mais estimulantes razões para a proclamação da Palavra de Deus.
A Igreja foi eleita para proclamar a graça de Deus ao mundo (1Pe 2.9). Ela é, portanto, o instrumento divino para conduzir as ovelhas ao aprisco. Noutro dizer, Deus usa a Sua Palavra proclamada pela Igreja para gerar novos crentes e salvar os eleitos. Pressupondo a condição caída da natureza humana, da impossibilidade do homem em salvar a si mesmo e até de dar qualquer contribuição nesse sentido, se não crêssemos na eleição tínhamos a tarefa da evangelização como a mais abjetamente inútil da face da terra. Como, por outro lado, sabemos que Deus recolherá os eleitos e que a Sua maneira de fazê-lo é através da pregação do evangelho, sentimo-nos confiantes que todos aqueles que foram predestinados para a vida abraçarão a Jesus Cristo e que o nosso trabalho não é vão.
- Em oitavo lugar, os crentes convictos da sua eleição podem, com muito mais razão, se sentirem jubilosamente seguros quanto à consumação da sua salvação.
A razão é de compreensão singela: os eleitos confiam que a sua salvação depende exclusivamente de Deus. Deus os predestinou e enviou Jesus Cristo para morrer e interceder por eles, conquistando-lhes uma completa salvação (Ef 5.25-27). Em tempo oportuno, enviou o Espírito Santo ao seu coração como selo e penhor da herança que lhes aguarda, aplicando-lhes todas as conquistas da cruz (Ef 1.13,14). Sabem que Deus é poderoso para guardá-los na caminhada, pelo mesmo Espírito, e lhes apresentar perfeitos na redenção final, na glorificação (Ef 1.18-19; Fp 1.6; 1Pe 1.5; Jd 24).
Conclusão
É imprescindível que os eleitos conscientes desse fato tenham a mais nítida visão da glória do Deus Trino. A glória que pertence à Trindade Santa (Ef 1.17; Tg 2.1; 1Pe 4.14) é ricamente anunciada na salvação de pecadores indignos, de modo que a nossa salvação enaltece a glória da Sua graça (Ef 1.6). Assim, Deus é glorificado em nós, visto sermos uma expressão da Sua multiforme graça.
Essa visão da glória de Deus é ainda robustecida quando observamos o seu poder ao fazer para si um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras (Tt 2.14). As palavras agudas de Hermisten Maia mais uma vez nos ajudam: “Se considerarmos o que somos, certamente teremos uma visão diminuta da grandeza e beleza da igreja; porém, se olharmos para o que éramos, do que seríamos capazes de fazer em nosso estado de total domínio do pecado, poderemos perceber, então, ainda que parcialmente (…), a beleza da igreja, o que Deus fez em nós, como nos tornamos seus filhos, seu povo”.