Introdução
O sexto mandamento é uma vigorosa proclamação da santidade da vida, como também um imperativo da sua proteção integral. Que a santidade da vida como um dom de Deus justifica o mandamento em questão, observa-se desde os tempos de Caim, contra quem a voz do sangue de Abel clamou (Gn 4.10).
O verbo hebraico usado em Êxodo 20.13 (“rasah”) indica o assassinato violento de um inimigo pessoal, de modo que a cláusula poderia ser traduzida perfeitamente por “não assassinarás”. O verbo nunca é usado para o homicídio em legítima defesa (Ex 22.2), nem para mortes provocadas sem dolo e culpa e homicídios culposos (Ex 21.13; Dt 19.5; Nm 35.22-25), tampouco para penas capitais (Gn 9.6; Ex 21.12). Por outro lado, o verbo “rasah” é usado para o suicídio.
O assassino, em geral, em quaisquer das várias perspectivas que o termo pode ser apontado, é alguém que se sente “dono” ou “deus” da vida, dele ou de outrem; ou, na melhor das hipóteses, indiferente a ela. Ele nem consegue apreciar seu valor, porque despreza o fato da vida refletir a imagem do Criador, nem tampouco acredita na possibilidade da providência divina, quer agindo direta e extraordinariamente, quer indireta e ordinariamente. Ele não acredita que a ira humana não produz a justiça de Deus (Tg 1.20).
O que o sexto mandamento nos proíbe?
Considerando mais detalhada e negativamente, o sexto mandamento nos proíbe, em primeiro lugar, o ato de tirar a nossa própria vida e a de outrem. Paulo, em Atos 16.28, interpretou o suicídio como um “mal” que o carcereiro de Filipos estava para fazer contra a própria vida. Semelhantemente, como já ressaltado nas linhas introdutórias, o “não matarás” impede-nos que tiremos a vida de outrem, a qualquer título (Rm 12.19), exceto em caso de legítima defesa (Ex 22.2). Isso inclui a proibição dos crimes de aborto, infanticídio, homicídio e feminicídio.
Sobre a legítima defesa, Geerhardus Vos esclarece que é uma defesa mais do que legítima, tratando-se em verdade de uma “obrigação moral”. Suas palavras merecem ser transcritas, in verbis: “A nossa vida não é nossa, mas pertence a Deus e por isso como despenseiros das propriedades de Deus temos a obrigação de preservar a nossa própria vida, e a dos outros, da destruição pela violência criminosa”. Para ele, alegar a “regra de ouro” ou a obrigação de amar nosso próximo para fazer significar “que seja errado matar como esforço de autodefesa é empurrar o amor ao próximo para um extremo absurdo e fanático. A Escritura ordena que se ame o próximo como a si mesmo, isto é, o amor ao próximo deve estar em equilíbrio com o amor apropriado a si mesmo. Quem se deixa matar por um criminoso, sem tentar se defender, ama demais o seu próximo e não ama a si mesmo o suficiente”.
Em segundo lugar, conforme a resposta à pergunta 136 do Catecismo Maior de Westminster, é-nos proibida “a negligência ou a retirada dos meios lícitos ou necessários para a preservação da vida” (Mt 25.42,43; Tg 2.15,16). O apóstolo João, em sua primeira epístola, trata com aquele que possui “recursos deste mundo” e fecha os olhos para um irmão que padece necessidades (1Jo 3.17) no contexto daquele que não ama, à semelhança do assassino Caim (1Jo 3.11-18). O que temos no tópico anterior é a proibição de crimes comissivos contra a vida; aqui, encaixam-se os omissivos, tais como o abandono material e a omissão de socorro.
Em terceiro lugar, ficamos proibidos inclusive de quaisquer ações, atitudes do coração e linguagem com vocação ao assassinato. No caso das ações, enquadram-se as lesões que podem causar a morte (Nm 35.16). Dentre as atitudes de coração, podemos citar a ira (Mt 5.22), o ódio (1Jo 3.15), a amargura, o desejo de vingança (Ef 4.31) e a inveja (Pv 14.30). Palavras também, que insultam (Mt 5.22) e injuriam (Ef 4.31), suscitam a ira e têm potencial para desembocar em homicídios (Pv 15.1).
Em quarto lugar, podemos causar a morte ou o seu potencial para fazê-lo não apenas no aspecto físico. Nós matamos uma pessoa psicologicamente quando a matamos para nós mesmos, embora ela continue viva. A atitude de Caim em não se considerar tutor do seu irmão (Gn 4.9) o tornou assassino antes do assassinato. Também matamos as pessoas socialmente, quando manipulamos situações para as alijarmos da convivência social, ou quando as difamamos de modo que sua sociabilidade se torne insustentável, fatos cada vez mais fáceis de praticar ante o fenômeno das redes sociais. Em Tiago 2.1-11, parece-nos que o escritor sagrado conclui que o tratamento que menospreza com base no status social é uma forma de assassinato (social, eu diria).
Em resumo, nós podemos matar as pessoas (ou agir com esse potencial), realmente, por atos de comissão ou de omissão, ou matá-las para nós mesmos, ou ainda matá-las para o convívio social.
O que o sexto mandamento nos ordena?
O sexto mandamento, considerando positivamente, ordena-nos a valorizar a vida como um dom de Deus, promovendo todos os meios possíveis à sua preservação, e mais detalhadamente pelos meios que passo a destacar.
Em primeiro lugar, o sexto mandamento nos impõe o zelo pela saúde, quer profilaticamente, através de uma alimentação moderada e pela prática de exercícios físicos, quer combativamente, pela ingestão de medicação adequada. A alimentação moderada é princípio estabelecido pelo sábio (Pv 25.16,27). O apóstolo muito bem conhecia o valor do exercício físico, embora o visse de pouco valor quando comparado ao exercício na piedade (1Tm 4.7,8), tanto quanto o uso de alimentação correta para o restabelecimento da saúde (1Tm 5.23). O uso de medicamentos e cuidados médicos especiais é também imposição do sexto mandamento, como se pode ver no cuidado do samaritano pelo moribundo da parábola do Senhor Jesus, tal como registrada em Lucas 10.25-37 (cf. Is 38.21).
O uso adequado do tempo está muito diretamente relacionado à saúde física, emocional e espiritual. Por isso, é necessário, como imposição decorrente do mandamento em análise, que sejamos sábios quanto à distribuição do tempo (Ec 3.1) e temperantes quanto ao sono (Sl 127.2), ao trabalho (Ec 5.12) e à recreação.
Em segundo lugar, a ordem quanto à valorização da vida e da sua proteção é também realizada pelo cultivo de atitudes santas de coração, de modo que a convivência com o próximo seja harmoniosa, pacífica, abençoadora. Começamos a valorizar a vida de outrem a partir dos nossos pensamentos. Eis a razão pela qual, segundo Paulo escreveu aos filipenses, eles deveriam ser ocupados com “tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama”, além da virtude e do louvor (Fp 4.8).
Escrevendo aos efésios, o apóstolo asseverou que a vida digna do nosso chamado é o esforço diligente pela paz da igreja, o que não se pode conseguir sem “humildade e mansidão, com longanimidade” (Ef 4.1-3; cf. Hb 12.14). O cristão deve ter um espírito manso, paciente e ser dado ao perdão (Ef 4.32; Mt 5.5,24).
Em terceiro lugar, o sexto mandamento nos exige igualmente expressões ativas de bondade, através de orações, palavras de boa fama e boas obras (Mt 5.44; Lc 6.27,28). A religião verdadeira, segundo Tiago, envolve o refrear da língua, o cuidado com os desvalidos da sociedade e a santidade pessoal (Tg 2.26,27). No capítulo 3 da sua carta, o irmão do Senhor desmascarou a suposta fé que não vai além de boas palavras (Tg 3.14-17). Nesse sentido, eis a pertinentíssima exortação do apóstolo João: “Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade” (1Jo 3.18).
Em quarto lugar, o sexto mandamento nos manda valorizar a vida, bem como preservá-la. Mas, preservar a vida de quem? Bem, em primeiro lugar, a nossa própria, depois a de outrem, compreendida aqui a do próximo que é um ente querido ou até um desafeto e a do próximo que eu não conheço e com quem necessariamente não me relaciono.
Pelo exposto nesse ponto, o sexto mandamento exige que eu me engaje, por exemplo, na luta contra o aedes aegypti – o mosquito transmissor da dengue, do zika e da chicungunha -, que tanto tem assustado os brasileiros. Para não mencionar os surtos ocasionais de febre amarela e a infecção de vírus desencadeadores de doenças respiratórias e cardiovasculares. Assim, quando eu cubro cuidadosamente a caixa d’água ou evito o acúmulo de água parada em calhas, vasilhames, vasos de plantas, garrafas e pneus, devo fazê-lo também para preservação da vida de quem não conheço, necessariamente, e que talvez jamais venha a conhecer. Deixar de fazê-lo, por outro lado, é uma forma de violação do “não matarás”.
Mais do que isso, o sexto mandamento nos impõe a luta pela preservação da vida das futuras gerações, exigência que obriga o cristão a ser um cidadão brasileiro consciente quanto às inúmeras dificuldades ecológicas que assolam o nosso mundo e a estar ativamente engajado em campanhas de sustentabilidade.
John Stott, em seu livro de despedida, ao escrever com interesse sobre o tema, expôs os quatro problemas relacionados ao meio ambiente que caracterizam a presente era como mergulhada em uma “crise ecológica”, quais sejam: “crescimento populacional acelerado do mundo” (estima-se que em meados do século XXI a população mundial terá alcançado 9,5 bilhões), “depleção dos recursos (esgotáveis) da terra”, “o descarte do lixo” e “a mudança climática”.
Juntas, essas dificuldades ambientais sinalizam que devemos, como nunca antes, cuidar dos recursos naturais (esgotáveis que são!), inclusive com o olhar voltado para as gerações vindouras. Eis o comando do sexto mandamento para as gerações que sabem muito mais sobre o futuro próximo do seu planeta: cuidem dos recursos naturais com vistas à preservação da vida das futuras gerações!
Conclusão
Pelo exposto, o significado do sexto mandamento está relacionado com os esforços pela preservação da vida, exatamente por ser ela um dom de Deus, de modo que tudo quanto se intente contra ela seja extirpado e tudo quanto a promova seja realizado, sem prejuízo de aplicação de penas capitais pela justiça pública (?) e mortes nos casos de legítima defesa e guerras justificáveis.