Introdução
Cada um dos mandamentos de Deus pressupõe a glória do seu Ser, a perfeição dos seus atributos. Com o décimo mandamento não é diferente.
A Bíblia insiste em afirmar que Deus é amor, que é riquíssimo em bondade e misericórdia e que é sábio e poderoso para livremente escolher os caminhos que haveríamos de trilhar, os bens que haveríamos de ter, a família no seio da qual haveríamos de nascer, as pessoas que haveriam de nos cercar e as oportunidades que haveriam de se nos apresentar. Deus deliberou e decretou todas as circunstâncias, grandes e pequenas, de toda a nossa vida, livre e soberanamente. E Ele tudo fez de modo a refletir o fulgor das suas perfeições.
Desse modo, as únicas respostas adequadas a essa deliberação divina toda abrangente, sábia e amorosa é o contentamento com aquilo que somos e temos alcançado e a alegria em relação àquilo que os outros são e têm em termos de sucesso, posse de bens, oportunidades e conhecimento de Deus e crescimento na graça.
Se não esposamos tais satisfações, apenas dizemos que “Deus não está sendo justo no modo como nos trata”, visto que o descontentamento equivale a encontrar erro no governo soberano de Deus. “Por um lado, estou satisfeito com o que sou e tenho; por outro, eu me alegro com o que o outro é e tem” – é o que todos devemos asseverar, com toda a alma, e aqui reside o núcleo essencial do décimo mandamento.
Entretanto, é verdade que o contentamento com aquilo que somos e temos já é uma consequência necessária dos mandamentos anteriores, porque é também verdadeiro que o décimo mandamento está inserto em cada preceito do Decálogo. Apenas para exemplificar, a cobiça do bem alheio precede o furto e a cobiça do cônjuge alheio, o adultério. A cobiça de Bate-Seba por Davi, e vice-versa, é causa do adultério e dos homicídios perpetrados pelo rei (2Sm 11). A cobiça de Acabe pela vinha de Nabote resultou em assassinato (1Rs 21).
Que o “não cobiçarás” é uma espécie de resumo de toda a Lei, foi uma percepção do Catecismo de Heidelberg, que, respondendo a pergunta 113, afirmou que o décimo mandamento requer “Que jamais entre em nossos corações nem mesmo a menor inclinação ou pensamento contrário a qualquer mandamento de Deus, mas sempre odiemos o pecado de todo o nosso coração e encontremos satisfação e alegria em toda a justiça”.
Então, a pergunta que não quer calar é: por que Deus quis explicitar o décimo mandamento, deixando-o expressamente estabelecido, se ele já é parte dos mandamentos anteriores? Para evitar aquilo que considerariam uma devida repetição, alguns têm sugerido que, na verdade, o décimo mandamento não está logicamente inserido nos precedentes e que ele seria o único mandamento a incidir sobre a disposição mental, enquanto aqueles proibiriam apenas ações, atos externos. Sequer perderemos tempo em tecer argumentação contrária a tal perspectiva, basta-nos relembrar a interpretação que o Senhor Jesus deu aos mandamentos nas antíteses do Sermão do Monte (Mt 5).
A razão do décimo mandamento deve ser buscada na dureza do coração humano, em sua hesitação obstinada em reconhecer a própria pecaminosidade. É possível ao homem empedernido passar pelos nove mandamentos anteriores sem qualquer senso da necessidade de arrependimento (cf. Mt 19.16-20) e vê-los apenas superficialmente, proibindo somente atos externos, e, dessa forma bastante farisaica, ainda tentar se justificar diante de Deus. Por isso Deus, para dissipar nossa ignorância e destroçar nossa arrogância, destaca o “não cobiçarás” como um derradeiro sonido de trombeta, por meio do qual nos prova que somos continuamente devedores de cada um dos seus mandamentos e, por consequência, de toda a Lei.
O que o décimo mandamento nos proíbe?
Embora tenhamos deixado antever as implicações positivas e negativas do “não cobiçarás”, vamos destrinçá-las, debruçando-nos, neste tópico, sobre as proibições do preceito.
Em primeiro lugar, o décimo mandamento nos proíbe a insatisfação para com o nosso próprio estado, como também as queixas dela resultantes. O descontentamento está na raiz das queixas e murmurações da nação eleita para com Deus e Moisés, seu servo (Ex 14.11,12; 15.24; 16.2,3. 17.2,3 etc.), registradas para a nossa advertência (1Co 10.9-12). Veja-se como o descontentamento e o décimo mandamento estão umbilicalmente relacionados: uma “grande cobiça” pelas comidas do Egito se apoderou do povo de Israel a ponto de fazê-lo chorar e deplorar a provisão divina do maná (Nm 11.4-6).
Em segundo lugar, o décimo mandamento nos proíbe desejar aquilo que pertence aos outros. O preceito exige que evitemos o “cobiçar” a “casa” do nosso próximo, com tudo aquilo que pertence ao seu ambiente, conforme a cultura da época – a esposa, os filhos, os servos e os animais (Ex 20.17; Dt 5.21).
Em terceiro lugar, o décimo mandamento nos proíbe os pecados da inveja e da tristeza pela condição favorável dos outros. Sambalate e Tobias foram samaritanos que se inquietaram pelo fato de haver alguém que se interessasse em buscar o bem dos judeus (Ne 2.10). Inveja é a atitude de se afligir pelo que o outro possui, de desejar que o próximo não possua aquilo que Deus não nos deu, ou o desejo de possuir aquilo que Deus deu ao próximo.
Em quarto lugar, o décimo mandamento nos proíbe a alegria pelo fracasso alheio. Não fosse o nosso coração pecaminoso, nós nos alegraríamos sempre com as pessoas que se alegram e choraríamos sempre com as que choram, independentemente do tipo de relação que têm conosco, se próxima ou distante, se harmoniosa ou eivada de animosidade (Rm 12.15).
O que o décimo mandamento nos exige?
Positivamente, não custa enfatizar, o “não cobiçarás” nos obriga quanto as atitudes e condutas que passo a discriminar.
Em primeiro lugar, cumprimos o décimo mandamento quando cobiçamos o se deleitar em Deus e levamos nosso coração a se satisfazer somente nEle e em sua Palavra. Como o salmista, cuja alma suspirava por Deus como a corça pelas correntes das águas, nós também precisamos ter sede pelo Deus vivo (Sl 42.1,2), como também pela Palavra de Deus (Sl 19.10).
Em segundo lugar, o “não cobiçarás” exige que cobicemos o reino de Deus e sua justiça. Os “gentios” em sentido espiritual é que vivem pela satisfação nas coisas terrenas, como se somente elas existissem (Mt 6.32). Os filhos de Deus em Cristo são exortados a buscar o reino e sua justiça e, de fato, possuem um caráter em cuja essência residem a fome e a sede por justiça (Mt 5.6).
Em terceiro lugar, cumprimos o décimo preceito do Decálogo tanto quando nos sentimos satisfeitos com a provisão divina como quando aprendemos a esperar por novas provisões das suas mãos provedoras. No primeiro aspecto, temos a noção de contentamento (1Tm 6.8; Fp 4.11; Sl 123). Quanto ao segundo, queremos tão somente ressaltar que a dependência humilde daquele que espera em Deus trará como recompensa a tranquilidade da alma. Para o salmista, aprender a esperar em Deus foi o melhor antídoto para a sua alma perturbada (Sl 42.5).
Em quarto lugar, a oração é outro modo de cumprirmos o décimo mandamento. Pela oração, vencemos a ansiedade, a animosidade e a inveja, que resultam de uma cobiça mal orientada (Fp 4.6,7; 1Pe 5.7; Tg 4.2). A oração é um meio de graça pelo qual somos conduzidos pelo Espírito a nos agradar do Senhor e a confiar nEle, descansando em sua vontade (Sl 37.4,5), e a buscar as coisas lá do alto (Cl 3.1).
Em quinto lugar, a vida no Espírito é a única maneira de fazermos frente às cobiças da “carne”, e, portanto, a maneira por excelência de cumprirmos positivamente o “não cobiçarás” (verdade aplicável a todos os mandamentos de Deus). Conforme o apóstolo Paulo, é andando no Espírito que jamais satisfaremos a concupiscência da carne (Gl 5.16), lembrando que “concupiscência” traduz um termo usado por Paulo que indica ambições mal direcionadas e incontroladas (epithumia), que ele mesmo usou para traduzir o hebraico “chamad”, em Romanos 7.7.
Finalmente, cumprimos o décimo mandamento quando direcionamos todas as nossas disposições concentrando-as em esforços conscientes e diligentes pelo bem do próximo. Isso implica não apenas em não cobiçar as propriedades do próximo (versão negativa do mandamento), mas, e sobretudo, em envidar esforços reais para minimizar as suas dificuldades materiais.
Na Igreja de todos os tempos, sempre houve cuidados especiais para com os que se acham em condição de vulnerabilidade. Os pobres, os órfãos e as viúvas eram objeto de diversas leis protetivas do antigo Israel (Lv 19.10; Dt 10.18; 15.11,14), como também dos cuidados amorosos dos cristãos (At 2.45; 4.34,35; 1Tm 5.3-7), o que também estavam ordenados a fazer (Ef 4.28), e com alegria (Rm 12.8). Com efeito, o décimo mandamento bem poderia ser sumariado com a máxima “Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35).
Conclusão
Por todo o exposto, o décimo mandamento é a um só tempo o resumo de toda a Lei e a última advertência ao fato que temos violado todos e cada um dos seus preceitos. Seu conteúdo positivo consiste em que estejamos satisfeitos com o que somos e temos e que nos alegremos com os sucessos e conquistas do nosso próximo, ainda que não os obtenhamos em igual medida. Negativamente, que nos guardemos de queixas pela nossa condição e de invejas pela dos outros, visto que umas e outras estão na raiz daquela disposição de causar danos ao próximo.