Já tivemos oportunidade de registrar sucintamente o impacto causado pela “conversão” de Constantino ao cristianismo. Dentre as consequências positivas, destacam-se o fim da perseguição e o surgimento de oportunidade para a Igreja pensar e sistematizar a sua Ortodoxia, inclusive por meio de concílios ecumênicos e do desenvolvimento de formulações credais que permanecem como o fundamento da fé. Ocorreram sete grandes concílios ecumênicos, quais sejam: I Concílio de Niceia (325), I Concílio de Constantinopla (381), I Concílio de Éfeso (431), Concílio de Calcedônia (451), II Concílio de Constantinopla (553), III Concílio de Constantinopla (680) e II Concílio de Niceia (787).
Mas foi nos séculos IV e V da era cristã que aconteceram os concílios ecumênicos mais importantes, dos quais decorreram os credos aceitos por praticamente todos os ramos do cristianismo.
Quando se questiona as razões de os debates teológicos terem ocorrido tão tardiamente, Cairns responde que “nos tempos de perseguição, a submissão a Cristo e à Bíblia era mais importante do que o significado de certas doutrinas”. A partir de Constantino, um homem ávido pela reunificação do império, era preciso que na nova conjuntura a Igreja se unisse em torno de uma única doutrina, afinal, “um cristianismo em discórdia e dividido não podia unir o Império fragmentado” (Shelley).
Mas isso não responde toda a questão! Principalmente no Oriente, surgiu uma intensa inquietação por parte dos cristãos quanto às crenças afirmadas há séculos. Desejava-se entender e formular com mais clareza principalmente acerca da Trindade e do relacionamento entre o Pai e o Filho, sobretudo em um período em que heresias propunham soluções ao mistério trinitário.
Trataremos, nesse passo, das principais controvérsias que culminaram nos concílios mais importantes.
A Controvérsia Ariana e o Concílio de Niceia (325)
Um dos protagonistas dos debates teológicos que redundaram no Concílio em apreço foi Ário, presbítero da igreja em Alexandria, no Egito. Ário nasceu na Líbia, onde foi ensinado por Luciano a afirmar uma cristologia mais próxima do ebionismo.
Foi Ário quem discutiu com o seu bispo, Alexandre, quando este tencionou ensinar sobre a “Unidade da Trindade”. Em uma carta enviada a Alexandre, Ário submeteu a esse bispo seu pensamento sobre o tema: “‘Reconhecemos um Deus, que é o único não gerado, o que é autoexistente, único eterno, o único sem começo, o único verdadeiro, o único possuindo imortalidade (…)’. Visto que ele é singular, transcendente e indivisível, o ser ou essência [grego ousia] da divindade não pode ser compartilhada ou comunicada. Pois, comunicar sua substância a outro ser, conquanto exaltado, implicaria que ele é divisível e sujeito a mudança, o que é inconcebível. Além disso, se qualquer outro ser fosse participar na natureza divina em qualquer sentido válido, isso resultaria numa dualidade de seres divinos, visto que a divindade por definição é singular. Portanto, qualquer coisa mais que exista deve ter vindo à existência, não por qualquer comunicação do ser de Deus, mas por um ato de criação de sua parte, i.e., deve ter sido chamado à existência do nada” (citado por Héber Carlos de Campos).
Para Ário, havia apenas um Deus eterno em uma única pessoa, o Pai. Cristo, embora tendo sido criado fora do tempo e ser a primeira criatura, não era Deus eterno e onipotente, mas um ser menor, intermediário, que se situava entre Deus e a criação.
Percebe-se também que Ário retirou suas conclusões cristológicas a partir do seu raciocínio sobre a unidade indivisível de Deus. Para ele, se Deus era portador de uma unidade indivisível, a crença na Trindade de pessoas, na prática, acabaria por dividi-lo em partes. Em consequência, o Filho, embora sendo uma criatura exaltada, era apenas uma criatura. Os títulos divinos dados a Cristo pelas Escrituras eram, para Ário, “metafóricos, na melhor da hipótese: honras apontando para a sua maravilhosa posição como a criação mais alta de Deus, mas tudo mal interpretado, se tomado literalmente”. Como Ário expressou, o Filho ‘é chamado Deus não verdadeiramente, mas somente no nome’” (Chistopher A. Hall).
Em síntese, Ário (1) era unitariano, (2) sustentava que Jesus Cristo era uma criatura, tendo sido criado do nada (ex nihilo), embora tendo primazia sobre todas as demais criaturas, (3) que o Espírito Santo foi criado por meio do Filho, (4) que Deus se tornou o Pai somente quando criou o Filho e que (5) Jesus Cristo não é da mesma essência do Pai (grego homoousios).
Para sustentar sua posição, Ário demonstrou que Jesus Cristo sentiu angústia e medo (Mt 26.38) e que não conhecia todas as coisas (Mt 15.34; 27.46; Mc 13.4,32), e argumentou que “Se o Filho fosse, de acordo com sua interpretação, eternamente existente com Deus, Ele não teria sido ignorante do Dia, mas o teria conhecido como [sendo a] Palavra; nem teria Ele sido abandonado, se coexistente [com o Pai]… nem teria orado de modo algum. … Sendo a Palavra, Ele nada teria necessitado” (citado por Chistopher A. Hall).
A desavença foi tal que Constantino precisou intervir. A princípio, enviou Ósio de Córdoba a Alexandria, imaginando que poderia haver conciliação entre Ário e Alexandre. Mas foi mesmo necessário convocar, em 325, o Concílio de Niceia. Bruce L. Shelley pinta-nos uma cena quase inacreditável:
Mais de trezentos bispos ainda se lembravam bem dos dias de perseguição. Muitos podiam mostrar as cicatrizes do sofrimento e da prisão. Um deles tinha perdido um olho durante a perseguição. Outro, sob tortura, perdera os movimentos das mãos. Mas os dias de sofrimento pareciam distantes naquele momento. Os bispos não partiram secretamente para Nicéia, como costumavam fazer, temendo ser detidos. Eles não viajaram todas aquelas milhas penosamente como o fizeram antes. Partiram para o concílio tranquilamente, com todas as despesas pagas, convidados do imperador.
Três teses foram levadas ao debate em Niceia. Além da posição ariana, que via Cristo como criado do nada, subordinado ao Pai e de natureza essencial diferente do Pai, Eusébio de Nicomédia postulou uma posição intermediária, no sentido de que Cristo pode ser considerado divino por sua obediência à vontade de Deus.
Entretanto, o principal defensor da posição que viria a ser aceita por toda a cristandade como ortodoxa foi Atanásio. Ele chegou ao Concílio sem direito a voto, como secretário do bispo Alexandre, com vinte e oito anos, e surpreendeu a todos “pelo talento nas discussões teológicas e por seu conhecimento profundo da Escritura” (Flanklin Ferreira). Chistopher Hall afirma que “Seus amigos teriam desejado dar prontamente sua vida por ele. Seus inimigos anelavam vê-lo e sua lembrança alijados da terra. Alguns zombavam dele, tratando-o como ‘anão negro’”.
Sua defesa da divindade de Cristo repousou numa base dupla: primeiro, que somente Deus pode salvar e, se o Novo Testamento chama Jesus Cristo de Salvador, Ele deve ser Deus. É dizer, considerando que a obra da salvação não é menor que a obra da criação, somente aquele que pode criar pode salvar. Daí que, como somente Deus pode criar, somente Deus pode salvar.
Em segundo lugar, Atanásio defendeu que os cristãos adoram a Jesus e oram a Ele. Portanto, se Jesus Cristo não é Deus, os cristãos de todos os tempos seriam idólatras e blasfemos. “Em resumo, as duas razões fundamentais pelas quais Atanásio rejeitou o pensamento ariano foram, em primeiro lugar, porque uma implicação do arianismo era que a salvação provinha de uma criatura; e, em segundo, porque se aproximava do politeísmo” (Flanklin Ferreira).
Em resposta a Ário, Atanásio desejava que as Escrituras fossem acreditadas em tudo quanto afirmam a respeito do Filho de Deus e insistia em que elas contêm “um duplo relato do Salvador”. Assim, todas as “propriedades da carne” são verdadeiramente atributos do Filho, em decorrência da encarnação, assim como são seus todos os atributos da divindade. Alertou que o equívoco ariano foi que “olhando para o lado humano do Salvador, julgaram-no uma criatura”.
O Credo resultante do Concílio de Niceia consiste da seguinte redação:
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância (homo ousion) do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou no terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo (in Documentos da Igreja Cristã, Bettenson).
O Debate Pneumatológico e o I Concílio de Constantinopla (381)
Não obstante, a heresia ariana não foi erradicada em 325, com Niceia. As décadas seguintes viram o recrudescimento do arianismo, sobretudo em virtude do apoio de imperadores arianos. Assim, nos próximos cinquenta anos, o debate continuou acirrado. Atanásio foi exilado cinco vezes, saindo de Alexandria e retornando a ela a depender da mudança no governo do império.
O grupo semiariano se apartou do arianismo radical defendendo a relação de Cristo com o Pai a partir do termo “homoiousios”, expressão que quer dizer “similar” ou “semelhante”, enquanto o grupo liderado por Atanásio insistia no uso do vocábulo “homoousios”, para asseverar que Cristo é da substância do Pai.
Shelley observa que “embora apenas um ‘i’ dividisse os grupos após o encontro de Nicéia, as questões envolvidas representavam duas interpretações diametralmente diferentes da fé cristã. Estavam em jogo a divindade de Jesus Cristo e a essência da doutrina da Trindade”. Esse autor vaticina, em conclusão: “Na luta ariana, a precisão era tudo”.
Atanásio faleceu em 2 de maio de 373, sem ver o triunfo de sua causa. Entretanto, outros homens importantes entraram em cena, sobretudo os chamados “pais capadócios”: Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e Basílio, o Grande.
Gregório de Nazianzo se envolveu na controvérsia ariana e pneumatológica do período, sobretudo quando assumiu o bispado de Constantinopla por dois curtos e intensos anos, até 381. Em resposta aos “eunomianos”, um grupo ariano radical que reduziu o estudo teológico a um exercício puramente racional, Gregório persistia em afirmar o mistério da fé cristã, “e deleitava-se ao colocar lado a lado os maravilhosos paradoxos da indescritível união da deidade e humanidade de Cristo” (Christopher A. Hall):
Ele foi batizado como homem – mas remiu os pecados como Deus. … Ele foi tentado como homem, mas venceu como Deus. … Ele teve fome – mas alimentou milhares. … Ele estava fatigado, mas é o descanso daqueles que estão cansados e oprimidos. Ele teve um sono pesado, mas caminhou levemente sobre o mar. … Ele pagou tributo, mas foi tirado de um peixe; sim, Ele é o rei daqueles que o requereram dele. … Ele ora, mas também ouve orações. Ele chorou, mas faz as lágrimas secarem. Ele perguntou onde puseram Lázaro, porque era homem; mas o ressuscitou porque era Deus. Ele foi vendido, e muito barato, pois foram somente trinta peças de prata; mas redimiu o mundo, pagando alto preço, pois o preço foi seu sangue. Como ovelha foi levado ao matadouro, mas Ele é o pastor de Israel e agora também de todo o mundo. … Ele foi traspassado e moído, mas cura toda enfermidade. Ele foi levantado e pregado no madeiro, mas, pela árvore da vida, Ele nos restaura. Ele morre, mas dá vida, e por sua morte destrói a morte (citado por Hall).
Devemos lembrar, por oportuno, que o Concílio de Nicéia não tratou sobre a natureza do Espírito Santo, limitando-se a tão somente afirmar a fé “no Espírito Santo”. Nesse vácuo, surge Macedônio, bispo de Constantinopla entre 341 e 360, de confissão semiariana, ensinando que o Espírito Santo era subordinado ao Pai e ao Filho e que era um ser do mesmo nível dos anjos.
O teólogo que principalmente tomou a si a responsabilidade de responder aos “pneumatômacos” (“opositores do Espírito”) foi o capadócio Basílio de Cesaréia. Em seu “Tratado sobre o Espírito Santo”, escrito em 374, afirmou que o Espírito Santo deve receber a mesma glória e louvor que o Pai e o Filho: “O Senhor nos entregou como doutrina necessária e salvífica que o Espírito Santo deve ser colocado na mesma categoria com o Pai. [(…) Nós] glorificamos o Espírito Santo com o Pai e o Filho porque cremos que ele não é estranho à natureza divina” (citado por Flanklin Ferreira).
Basílio defendeu a divindade do Espírito Santo, demonstrando com base nas Escrituras que a Ele pertence a mesma glória do Pai e do Filho. Também argumentou a partir da experiência cristã da salvação, afirmando que o Espírito só pode operar a nossa salvação porque é uma pessoa divina.
Basílio trabalhou arduamente para que um novo Concílio fosse convocado a fim de ratificar o Credo de Nicéia, pôr fim à controvérsia ariana e solucionar a questão pneumatológica. Como Atanásio, também não viveu para ver a vitória da ortodoxia, porque faleceu em 1 de janeiro de 379, pouco antes do imperador Teodósio I convocar o I Concílio de Constantinopla, em 381.
Nesse Concílio, onde a igreja cristã foi representada por cento e cinquenta bispos, condenou-se o arianismo e ratificou-se e revisou-se o Credo de Niceia para afirmar a divindade do Espírito Santo. O Credo de Constantinopla, também chamado “niceno” e “niceno-constantinoplano” (por ser também uma ratificação de Nicéia), tem a seguinte dicção:
Cremos em um Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne do Espírito Santo e da Virgem Maria, e tornou-se homem, e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos, e padeceu, e foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim; e no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas, e na Igreja una, santa, católica e apostólica; confessamos um só batismo para remissão dos pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro (grifo nosso).
A Dupla Natureza de Cristo e o I Concílio de Éfeso (431): A Controvérsia Nestoriana
Com as questões ariana e pneumatológica resolvidas, os debates teológicos se voltaram à compreensão da dupla natureza de Cristo. Na tentativa de definição do tema, a ortodoxia enfrentou três heresias que se originaram das ideias de Apolinário, Nestório e Êutiques.
Nestório, bispo de Constantinopla entre 428 e 431, foi acusado de ensinar que as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana, coexistiam não em uma verdadeira “união”, mas tão só em uma “conjunção” (grego sunápheia). Bettenson anotou que “aparentemente, Nestório aprendeu sua doutrina com Teodoro de Mopsuéstia [lugar próximo de Antioquia], que ilustrava a união das duas naturezas em Cristo com a união conjugal de marido e mulher, tornados uma só carne sem deixarem de ser duas pessoas e duas naturezas”.
Por essa razão, segundo Nestório, não seria adequado chamar Maria de “mãe de Deus”, visto ter ela gerado apenas a natureza humana de Jesus. Entretanto, “theotókos” (“mãe de Deus”) é termo que realça mais a divindade do Filho que o privilégio da mãe, razão pela qual os reformadores entenderam, segundo González, “que o que foi discutido no século quinto não era que lugar a devoção a Maria deveria ter na vida cristã, mas a relação entre a humanidade e a divindade de Jesus Cristo”.
O opositor de Nestório foi Cirilo, o patriarca de Alexandria (412-444), que em 428 disparou contra aquele uma série de doze anátemas. No segundo anátema, proclamou: “Se alguém não confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kath’hypóstasin] à carne, sendo com ela propriamente um só Cristo, ou seja, um só e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo, seja anátema” (in Documentos da Igreja Cristã, Bettenson).
Na segunda carta a Nestório, escrita em 430, que foi aprovada nos Concílios de Éfeso e Calcedônia, Cirilo asseverou:
(…) As duas naturezas, que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade, eram diferentes, mas de ambas houve um só Cristo e um só Filho. Não professamos que a diferença das naturezas foi destruída em virtude da união, mas que, integrados inconcebivelmente na unidade, divindade e humanidade produziram para nós um único Senhor e Filho, Jesus Cristo.
No I Concílio de Éfeso, convocado pelo imperador Teodósio II e realizado em 431, com uma presença em torno de duzentos a duzentos e cinquenta bispos, Nestório foi deposto do bispado, o nestorianismo foi condenado e a expressão “theotókos” (mãe de Deus), mantida, para revelar-se inadequada somente nos séculos seguintes.
A Dupla Natureza de Cristo e o Concílio de Calcedônia (451): Refutando Apolinário e Êutiques
Apolinário (c. 310) nasceu em Laodiceia da Síria e ali se tornou bispo por volta de 361. A heresia de Apolinário (falecido em 392) se baseou em uma antropologia tricotomista, afirmando que o homem era constituído de corpo, alma (alma animal, envolvendo apetites, paixões e desejos) e espírito (alma racional). Todavia negou a realidade dessa tricotomia em Jesus Cristo. Ele afirmava que Cristo possuía um corpo e uma alma reais, mas não um espírito humano. Em Jesus Cristo, o espírito humano teria sido substituído pelo Logos divino, criando, na prática, uma espécie de “unidade de natureza” entre o Logos e seu corpo. Portanto, Jesus não seria completamente humano, visto que da humanidade Ele só teria o corpo e a alma, mas não o espírito. Isso quer significar que embora Apolinário tenha exaltado a divindade de Cristo, não aceitou a sua plena humanidade.
As ideias de Apolinário já tinham sido rejeitadas no Sínodo de Alexandria (362), Roma (377) e Antioquia (378). O Concílio ecumênico de Constantinopla (381) condenou o pensamento de Apolinário, como também o de Calcedônia (451), onde foi afirmado que Jesus Cristo era da mesma essência (homoousios) do Pai quanto à divindade e da mesma essência (homoousios) do homem quanto à humanidade.
Finalmente, Êutiques, sucessor de Cirilo no bispado de Roma, começou a ensinar que a natureza divina de Cristo absorveu a natureza humana e que, após a encarnação, Cristo teria somente a natureza divina revestida de carne humana. Em reação ao ensino de Êutiques, Flaviano, o bispo de Constantinopla, baniu aquele da cidade de Roma.
Em apoio a Êutiques, Dióscoro organizou um Concílio em Éfeso, em 449 (mais tarde chamado por Leão de “Sínodo dos Ladrões”), e tomou providências para depor Flaviano, que, por sua vez, pediu socorro a Leão, o então bispo de Roma.
A Carta XXVIII, conhecida como Tomo a Flaviano e escrita em 13 de junho de 449, foi uma resposta de Leão ao citado “Sínodo dos Ladrões”, e apresentava a doutrina ortodoxa da encarnação e da dupla natureza de Cristo. Berkhof resume os cinco pontos mencionados no Tomo a Flaviano da seguinte forma:
1. Existem duas naturezas em Cristo, que são permanentemente distintas. 2. Essas duas naturezas são unidas em uma só Pessoa, cada uma das quais realizou sua própria função apropriada na vida encarnada. 3. Da unidade da Pessoa segue-se a comunicação de atributos (communicatio idiomatum). O Senhor é, portanto, “visível” e “invisível”, “compreensível” e “incompreensível”, “passível” e “impassível”. 4. A obra da redenção requeria um Mediador ao mesmo tempo humano e divino, temporal e intertemporal, mortal e imortal. (…). 5. A humanidade de Cristo é permanente, e sua negação implica a negação docética da realidade dos sofrimentos de Cristo (citado por Flanklin Ferreira).
O Concílio de Calcedônia se reuniu a partir de 8 de outubro de 451, convocado pelo imperador Marciano, com a presença de mais de quinhentos bispos. Nele, Êutiques e Dióscoro foram condenados e depostos, os Credos de Niceia e Constantinopla foram ratificados e as Cartas de Cirilo e o Tomo a Flaviano foram aprovados.
Segundo J. N. D. Kelly, “a maioria dos bispos presentes objetava à formulação de um novo credo; eles consideravam suficiente confirmar a fé nicena e reconhecer o valor obrigatório das Cartas Dogmáticas de Cirilo e o Tomo de Leão. No entanto, os comissários imperiais sabiam que, para que o concílio tivesse resultados, era necessário elaborar uma fórmula assinada por todos, e eles deixaram claras suas intenções”. Assim, uma confissão formal de fé foi apresentada – a definição de Calcedônia – cujo teor é o que segue:
Fieis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial [homoousios] ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; ‘em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado’, gerado, segundo a divindade, antes dos séculos pelos Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus [theotókos]. Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de natureza de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência (hipóstasis); não dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu.
Em síntese, “lado a lado com a unidade, a definição declara que, enquanto encarnada, a Palavra existe ‘em duas naturezas’, cada uma completa e cada uma retendo intatas, na união, suas propriedades e operações distintivas” (J. N. D. Kelly).
O eutiquianismo, mais tarde conhecido como monofisismo, apesar de condenado em Calcedônia (em 451) e no II Concílio de Constantinopla (em 553), permaneceu exercendo grande influência sobre os cristãos do Egito, Etiópia, Síria, Armênia e em outras partes, e travando batalha renhida contra a definição.
Bruce L. Shelley resume bem os debates teológicos e as formulações ortodoxas que deles exsurgiram: “Portanto, contra Ário, a igreja afirmou que Jesus era verdadeiramente Deus, e contra Apolinário afirmou que era verdadeiramente homem. Contra Êutiques, professou que a humanidade e divindade de Jesus não podiam se transformar em qualquer outra coisa, e contra Nestório, a igreja professou que Jesus não era dividido, mas sim uma só pessoa”.