Paulo escreveu a nossa Primeira Carta aos Coríntios de Éfeso (16.8,9; cf. At 19), provavelmente no término do período de quase dois anos e meio (c. 55 ou 56 a.D.). Ele a escreveu a partir das notícias preocupantes a respeito da igreja que recebeu pelos irmãos da casa de Cloe (1.11), como também para esclarecer as dúvidas que lhe foram enviadas por carta da própria igreja (7.1). O capítulo 15, por sua vez, tem propósito bem específico: lidar com alguns da igreja que estavam afirmando “que não há ressurreição de mortos” (v. 12).
A ressurreição de corpos foi afirmada por Jesus: “Não vos maravilheis disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão” (Jo 5.28). Jesus a defendeu frente aos ataques dos saduceus, que descriam nela. Em Mateus 22.23-33, os saduceus propuseram uma estória em que uma mulher chegou a casar com sete irmãos, em casamentos por levirato. Eles pretendiam chegar à seguinte pergunta: “na ressurreição, de qual dos sete será ela esposa?” (v. 28). A resposta de Jesus se concentrou na Escritura e no poder de Deus (v. 29). Não é possível aceitar a ressurreição sem crê na Escritura e no poder de Deus. Então, já aqui fica colocada a realidade segundo a qual a ressurreição de corpos não pode ser aceita em bases meramente racionalistas.
Paulo também enfrentou opositores da ressurreição noutros lugares, além de Corinto, como em Atenas (At 17.32). Conforme 2Timóteo 2.17,18, uma controvérsia surgiu em Éfeso a partir do ensino de “Himineu e Fileto”, que afirmavam que “a ressurreição já se realizou”. Provavelmente, o que pretendiam dizer era que a única ressurreição que deveríamos esperar é a espiritual, a passagem da morte para a vida, a regeneração, a conversão do pecado para Deus e que, além dessa, nenhuma outra deveria ser aguardada. Provavelmente, o que subjazia na argumentação desses homens era o dualismo platônico: a matéria é má; aquilo que é espiritual é que é bom e, portanto, não faz sentido esperar por alguma ressurreição dos corpos.
É importante pontuar o modo como Paulo lidou com a dificuldade envolvendo Himineu e Fileto. Certamente, o tema não foi tratado como se parte daquelas diferenças periféricas, daquelas em que, apesar de existirem, ainda permanece o consenso a respeito das questões fundamentais. O tema da ressurreição foi levado muito a sério. Errar quanto a ele é errar sobre assunto crucial da fé. Tanto é assim que a asseveração de Himineu e Fileto foi incluída naquilo que Paulo chamou de “falatórios inúteis e profanos” (2Tm 2.16), como parte de uma linguagem que “corrói como câncer” (2Tm 2.17). O ministério desses mestres e seu ensino são denunciados como pervertedores da fé a alguns (2Tm 2.18).
Pois bem, esse era o tipo de mensagem que também estava se difundindo entre os coríntios: que não há ressurreição de mortos; que a ressurreição que há já ocorreu, talvez.
É ainda importante notar que a ressurreição de Jesus Cristo não estava sendo negada em Corinto (talvez esse também fosse o caso com Himineu e Fileto). O que alguns estavam dizendo é que “não há ressurreição de mortos” (1Co 15.12), apesar de não haver dúvida quanto à ressurreição de Jesus Cristo.
Como Paulo lidou com isso? Relembrando o evangelho (1Co 15.1-11), destacando a conexão entre a ressurreição de Jesus e a dos demais homens (1Co 15.12-28), tratando em termos lógicos, a partir de questões práticas (1Co 15.29-34), explicando os detalhes mais difíceis (1Co 15.35-49) e apresentando o clímax: a vitória final sobre a morte (1Co 50-57). A seção é concluída com uma exortação, tendo como base a certeza da ressurreição de mortos (1Co 15.58). Se assim não, vejamos.
Relembrando o evangelho (1Co 15.1-11)
A primeira medida de Paulo é relembrar àqueles irmãos o evangelho que foi pregado por todos os apóstolos de Jesus – por ele e pelos demais – e crido por eles para a salvação: “… o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes… por ele também sois salvos…” (vs. 1,2).
“Antes de tudo” é expressão que destaca a fundamentalidade do evangelho, o que vem em primeiro lugar: “Cristo morreu… foi sepultado [é um dado que demonstra a morte, como torna indiscutível a ressurreição] e ressuscitou ao terceiro dia…” (vs. 3,4).
Os fatos do evangelho foram muito bem atestados por testemunhas oculares. Isso passa a ser dito a partir do versículo 5. Os versículos 5-7, em uma lista não exaustiva (faltam as mulheres, v. g.), lembram as aparições a Cefas, a mais quinhentos irmãos, dos quais a maioria ainda vivia, e a Tiago. Nos versículos 8-10, a experiência do próprio Paulo, no caminho de Damasco, é equiparada às demais aparições: “e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim…”.
O versículo 11 resume o ponto: o evangelho é a mensagem comum a todos os apóstolos, a mesma que os coríntios tinham recebido e crido para a salvação. Como parte dele está a ressurreição de Jesus, muito bem atestada!
- A ressurreição de Jesus, muito bem atestada, é parte do evangelho.
Destacando a conexão entre a ressurreição de Jesus e a dos demais homens (1Co 15.12-28)
Tendo demonstrado que a ressurreição de Jesus é central ao evangelho, Paulo está pronto para enfrentar os que negavam a ressurreição dos mortos.
A princípio, não parece haver conexão entre a heresia e seu enfrentamento. Pelo que se sabe, não se estava a negar que Jesus ressuscitou. O ponto era este: “afirmam alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos” (v. 12).
Então, por que Paulo inicia a argumentação reafirmando, para começo de conversa, a ressurreição de Jesus? Porque a ressurreição de Jesus está indissociavelmente relacionada com a ressurreição geral, em uma relação de causa e efeito. As coisas estão de modo tão umbilicalmente ligadas que basta demonstrar que Jesus ressuscitou para termos por certo que também ressuscitaremos. Tipo isso: não faz sentido em afirmar que Jesus ressuscitou e ao mesmo tempo que não há ressurreição de mortos, por isso a pergunta do versículo 12. Também, por outro lado, não faria sentido dizer que haverá ressurreição de mortos se Jesus Cristo não ressuscitou (vs. 13,16).
E, se Jesus não ressuscitou, aí sim, os problemas seriam realmente sérios, como se pode ver nos versículos 14,15,17-19:
Primeiro, se Jesus não ressuscitou, a pregação (“pregação” aqui é a coisa pregada, a mensagem) apostólica é vã (v. 14a), vazia, sem conteúdo, sem substância, tudo não passa de mito, de lenda.
Segundo, se Jesus não ressuscitou, a fé dos coríntios seria também vã (v. 14b, 17a), isso porque a fé não tem valor em si mesma. A utilidade da fé está na mensagem a que ela se apega. Se a mensagem é vã, a fé que a recebe também.
Terceiro, se Jesus não ressuscitou, os apóstolos são mentirosos e sua mensagem é contra Deus (v. 15). Eles teriam afirmado que Deus fez algo que, na verdade, não fez, o que os tornaria falsos profetas, falsos mestres. A primeira parte do versículo 14 (é vã a nossa pregação) tem relação com o versículo 15. Isso é deveras grave, sobretudo quando recordamos que a Igreja de Jesus está alicerçada “sobre o fundamento dos apóstolos e profetas” (Ef 2.20).
Quarto, se Jesus não ressuscitou, como a fé passa a ser vã (v. 14b, mas no v. 17 “vã” traduz nova palavra, “mataia”, que tem o sentido de fútil, estéril), não houve perdão, justificação, regeneração, nova vida em Jesus: “ainda permaneceis nos vossos pecados” (v. 17). O Cristo morto, sem ressurreição, seria um Cristo condenado, não justificado nem vindicado, e muito menos justificador.
Quinto, se Jesus não ressuscitou, os que dormiram em Cristo pereceram. Nem poderia se dizer deles que apenas dormem, porque em verdade o aguilhão da morte não lhes teria sido removido, tampouco que os crentes que morreram estavam com Cristo (v. 18).
Sexto, se Cristo não ressuscitou, toda a nossa esperança em Cristo se resume a esta vida e, nesse caso, seríamos nós, os cristãos, os mais dignos de dó, os mais alienados de todos os homens, como somos vistos pela sociedade em geral (v. 19).
Mas, tudo isso é colocado apenas hipoteticamente, para que os homens que negam a ressurreição de mortos entendam a gravidade das suas afirmações e se emendem. Porque, na verdade, Jesus Cristo ressuscitou, sendo Ele o primeiro a ressuscitar e a garantia da ressurreição dos que lhe pertencem (v. 20), embora tudo se dê em uma ordem divina preestabelecida: primeiro, Cristo; depois, na Sua vinda, os que são de Cristo (v. 23), e só então virá o fim (v. 24-28).
- A ressurreição de Jesus, muito bem atestada, é parte do evangelho.
- A conexão entre a ressurreição de Jesus e a do Seu povo é indissociável.
Tratando em termos lógicos, a partir de questões práticas (1Co 15.29-34)
Na passagem compreendida entre os versículos 29-34, Paulo se volta para argumentar a partir de certas práticas, como a dizer que “mesmo o que fazemos e o modo como vivemos perde o sentido se não houvesse ressurreição de mortos”.
O primeiro argumento é com base em um tal batismo “por causa dos mortos”, um “batismo vicário”, difícil de ser compreendido e possivelmente não aceito por Paulo, embora fosse prática conhecida da igreja (v. 29). Seja como for, esse batismo pelos mortos não faria sentido sem a ressurreição.
A vida dos cristãos e dos pregadores eram de constante exposição a riscos de morte (vs. 30,31) e, se não há ressurreição, qual seria o sentido de tudo isso? Que proveito haveria em ter Paulo lutado com feras em Éfeso? “Se não há ressurreição, comamos e bebamos, que amanhã morreremos” (v. 32).
Nos versículos 33,34, Paulo adverte aos coríntios quanto ao perigo de se deixar levar por alguns que não conhecem a Deus e os exorta a retornarem à sobriedade.
- A ressurreição de Jesus, muito bem atestada, é parte do evangelho.
- A conexão entre a ressurreição de Jesus e a do Seu povo é indissociável: se Jesus ressuscitou, ressuscitaremos
- A prática cristã perderia totalmente o sentido se não houvesse ressurreição de mortos.
Explicando os detalhes mais difíceis (1Co 15.35-49)
A ideia da ressurreição de corpos pode ter parecido a alguns meio ridícula também, talvez irracional ou inexplicável (v. 35). Afinal, os corpos mortos não se desintegram na sepultura? Como podem ressurgir após se desintegrarem? Como seriam esses corpos? Eles mantêm as características do que temos hoje? A resposta é dada nos versículos 35-49.
Basicamente, Paulo, como Jesus havia feito, atribui a ressurreição dos corpos ao poder de Deus. Haverá um grande milagre, o milagre da semeadura e da ressurreição. O presente corpo é apenas uma semente; ele é semeado. “O que semeias não nasce, se primeiro não morrer” (v. 36,37). Mas na ressurreição brotará um corpo radicalmente novo, do modo como Deus dar a cada semente um corpo apropriado (v. 38). Isso não deveria causar estranheza porque Deus preparou diferentes corpos com diferentes características (vs. 39-41).
Na sequência, Paulo traça as diferenças entre o corpo presente e o da ressurreição (vs. 42-44,49). O corpo atual é semeado na corrupção, em desonra, em fraqueza. Esse é o corpo natural, “a imagem do que é terreno”. O corpo futuro ressuscitará, por sua vez, na incorrupção, em glória, em poder. Esse é o corpo espiritual, “a imagem do celestial”.
A partir da analogia de Paulo, é possível concluir que há relação de continuidade entre o corpo presente e o futuro, mas, além disso, o corpo da ressurreição, apesar de vir a ser a partir deste corpo, é completamente diferente dele. É como a semente que, comparada à planta que originou, nada é. Admiramo-nos de que semente tão insignificante esteja na linha de formação de uma árvore enorme. Assim também é a relação entre o corpo terreno e o espiritual. O que virá, virá deste, mas o que virá deste nem poderá ser comparado com este.
Enquanto os gregos enfatizavam a imortalidade da alma e os judeus, a identificação do presente corpo com o da ressurreição, os cristãos, com base na ressurreição dos corpos, anteveem uma vida futura imensamente gloriosa, porque assim como Deus nos deu corpo adequado para a presente existência, nos dará corpo adequado para a vida na eternidade e em novos céus e nova terra.
- A ressurreição de Jesus, muito bem atestada, é parte do evangelho.
- A conexão entre a ressurreição de Jesus e a do Seu povo é indissociável: se Jesus ressuscitou, ressuscitaremos.
- A prática cristã perderia totalmente o sentido se não houvesse ressurreição de mortos.
- O poder de Deus explica a relação continuidade-transformação entre o corpo presente e o futuro.
Por fim, o clímax: a vitória final sobre a morte (1Co 15.50-57)
É até possível que houvesse dúvida sobre o clímax de todo o processo. Como será isso? E os que ainda estiverem vivos no segundo advento de Jesus?
Paulo esclarece as coisas: “nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos” (v. 51). Quando ressoar a última trombeta, os mortos ressuscitarão e os vivos serão transformados (v. 52), porque o corpo de todos se revestirá de imortalidade e de incorruptibilidade, quando, então, a vitória sobre a morte se consumará (vs. 53-57).
Ou seja, ao som da última trombeta, todos, os que estiverem vivos e os que estiverem mortos, os primeiros por transformação e os últimos por ressurreição, receberão corpos imortais e incorruptíveis, adequados à vida no reino de Deus consumado.
- A ressurreição de Jesus, muito bem atestada, é parte do evangelho.
- A conexão entre a ressurreição de Jesus e a do Seu povo é indissociável: se Jesus ressuscitou, ressuscitaremos.
- A prática cristã perderia totalmente o sentido se não houvesse ressurreição de mortos.
- O poder de Deus explica a relação continuidade-transformação entre o corpo presente e o futuro.
- A vitória final sobre a morte: todos, os que estiverem vivos e os que estiverem mortos, os primeiros por transformação e os últimos por ressurreição, receberão corpos imortais e incorruptíveis, adequados à vida no reino de Deus consumado.
A exortação final
A conclusão de Paulo é que a ressurreição, com tudo o que ela inclui, faz com que o trabalho do crente não seja vão, no sentido de desperdiçado ou inaproveitável. Paulo não tinha receio de ter vivido constantemente exposto ao perigo ou lutado em Éfeso com feras inutilmente. O “trabalho” do crente é um trabalho duro, ao ponto da fadiga. Ele ocorre “no Senhor”. O que ele faz é pela graça de Cristo e para a glória do Cristo.
Essa certeza nada tem a ver com um triunfalismo infantil e emocional ou com a experiência de conquistas passageiras. A necessidade de constante excitação acaba desembocando na desilusão e no afastamento da comunidade. Líderes que acham que podem manter essa temperatura alta da motivação carnal com base em novas promessas e programas acabam decepcionando ou cansando. Isso explica em parte a quantidade de cristãos desviados, alguns frios, outros abertamente cínicos.
Aos cristãos, duas atitudes hão de sustentá-los, quer nos maiores sofrimentos quer na vida simplesmente monótona, sem maiores acontecimentos: (1) uma sobriedade bíblica, uma certeza de que as conquistas de Jesus não se consumam agora, de que por ora o que temos é a vida por fé e não por vista; (2) uma esperança fervorosa na ressurreição.
Com base nessas atitudes, devemos e podemos manter o trabalho árduo ao Senhor com as seguintes características:
(1) Estabilidade (“sede firmes e inabaláveis”): a certeza da ressurreição reclama pessoas cujo propósito é estável, que não se perturbam facilmente, que não ficam mudando de uma posição a outra, que não vivem de surtos de ativismo. Essas pessoas são do tipo que não abandonam a congregação nem retrocedem para a perdição (Hb 10.25,39), mas com propósito determinado são achadas hoje servindo a Deus e exatamente assim as acharemos daqui a vinte anos. Foi exortando um discípulo à estabilidade que Jesus disse assim: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lc 9.62).
(2) Intensidade (“e sempre abundantes na obra do Senhor”): a certeza da ressurreição deve produzir pessoas que tudo o que fazem, fazem acima da média, mais do que o esperado, que se excedem ou se destacam. Essas são as pessoas que, quando doam, doam generosamente, como os macedônios mencionados em 2Coríntios 8.1-5. Os próprios coríntios se destacavam eram destacados em muitas virtudes: “Como, porém, em tudo, manifestais superabundância, tanto na fé e na palavra como no saber, e em todo cuidado…” (2Co 8.7). Por outro lado, a certeza da ressurreição é incompatível com as atitudes mesquinhas daqueles só fazem o mínimo, que só se doam em pequenas porções, de modo comedido.
O serviço do Deus em quem depositamos a esperança da ressurreição, para ser digno dele, há de ser transbordante, feito com a mão e com o coração. “Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor e não para os homens” (Cl 3.23), foi o que Paulo disse sobre o serviço dos servos aos seus senhores humanos. Nesse sentido a exortação de Paulo no exercício dos dons espirituais: “tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que ensina esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta faça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia, com alegria” (Rm 12.6-8).
SDG