O crescimento da Igreja nos três primeiros séculos foi expressivo, como vimos no estudo anterior, mas é certo que ele não se deu sem dificuldades externas consistentes de perseguições e acusações. É sobre o que trataremos.
A perseguição no Primeiro Século
As primeiras perseguições sofridas pelos cristãos foram movidas pelos judeus, por intermédio do Sinédrio. Os Apóstolos sofreram prisões, açoites e ameaças a fim de pararem de ensinar a nova doutrina que desafiava a estabilidade da religião judaica institucionalizada. Pedro e João foram os primeiros a enfrentar a pressão político-religiosa, e o fizeram de modo a não abrir mão da missão a que tinham sido incumbidos: “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4.19,20). Em nova prisão, os Apóstolos foram açoitados (At 5.40) e novamente ameaçados, mas reagiram com alegria por Deus lhes haver concedido a honra de sofrer pelo nome de Jesus (At 5.41).
Foi a perseguição judaica que deu ao cristianismo seu primeiro mártir, Estevão (At 7). O Apóstolo Paulo, que consentiu na morte de Estevão (At 8.1) e promoveu perseguição em Jerusalém e cercanias (At 8.3; 9.1; 22.4,5; 26.9-11), também padeceria tanto nas mãos dos seus compatriotas, pelos mesmos motivos que perseguiu, sobretudo em Tessalônica, Beréia e Jerusalém, como por gentios, insuflados ou não por judeus.
A perseguição assumiu caráter mais político nos dias em que Herodes Agripa I mandou matar a Tiago e prender a Pedro, que só não morreu na ocasião por causa da intervenção divina (At 12).
O primeiro imperador romano a perseguir a Igreja cristã foi Nero. Os rumores de que o próprio Nero havia sido o responsável pelo grande incêndio em Roma, em julho de 64, o levou a achar nos cristãos os “culpados ideais”. A perseguição neroniana se circunscreveu a Roma e arredores, e nela foram martirizados os Apóstolos Paulo e Pedro, entre os anos 66 e 67.
Nessa perseguição, milhares de cristãos foram torturados e mortos. O historiador Tácito informa sobre a barbárie a que foram os cristãos submetidos por Nero: “(…) Acrescente-se que, uma vez condenados à morte, eles [os cristãos] se tornavam objetos de diversão. Alguns, costurados em peles de animais, expiravam despedaçados por cachorros. Outros morriam crucificados. Outros ainda eram transformados em tochas vivas para iluminar a noite. Para esses festejos, Nero abriu de par em par seus jardins, organizando espetáculos circenses em que ele mesmo aparecia misturado com o populacho ou, vestido de cocheiro, conduzia sua carruagem” (in Documentos da Igreja Cristã).
A segunda perseguição movida por um imperador romano eclodiu em 95 a.D., sob a batuta de Domiciano, provavelmente por causa da recusa dos judeus em financiar, mediante um imposto imperial, o culto a Capitolinus Jupiter. Por ainda serem identificados como judeus, os cristãos foram perseguidos. Nessa perseguição, outra grande multidão de cristãos foi martirizada, sobretudo na Itália, e João foi exilado na ilha de Patmos, no mar Egeu, onde registrou suas visões de Apocalipse: “Eu, João, irmão vosso e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada Patmos, por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1.9).
A Perseguição até meados do Terceiro Século
Entre os anos 100 e 250 as perseguições foram locais e esporádicas. Uma delas ocorreu na Bitínia, quando Plínio a administrava, ereinava o imperador Trajano (98-117). Plínio Segundo, o Jovem, foi nomeado governador da Bitínia (a costa norte do que hoje é a Turquia) em 111 d.C. A conversão ao cristianismo estava empobrecendo o comércio em torno das religiões pagãs, fato que preocupava Plínio.
Este, por sua vez, escreveu a Trajano para falar-lhe sobre como estava lidando com os cristãos, ou os acusados de o serem, e para pedir conselhos a respeito: “Tenho muitas dúvidas a respeito de certas questões, tais como: estabelecem-se diferenças e distinções de acordo com a idade? Cabe o mesmo tratamento a enfermos e robustos? Aqueles que se retratam devem ser perdoados? A quem sempre foi cristão deve gratificá-lo quando deixa de sê-lo? Há de punir-se o simples fato de alguém ser cristão, mesmo que inocente de qualquer crime, ou exclusivamente delitos praticados sob esse nome?”.
Plínio também disse a Trajano como estava lidando com a questão do cristianismo: “Eis o procedimento que adotei nos casos que me foram submetidos sob acusação de cristianismo. Aos incriminados pergunto se são cristãos. Na afirmativa, repito a pergunta segunda e terceira vez, ameaçando condená-los à pena capital. Se persistem, condeno-os à morte (…) tratando-se de cidadãos romanos, separo-os para enviá-los a Roma”.
Plínio ainda informou a Trajano que recebeu uma lista anônima com muitos nomes. Após a pressão do governador, alguns negaram ser cristãos, mas todos foram unânimes em confessar que sua culpa consistia de que “em determinados dias, costumavam comer antes da alvorada e rezar responsivamente hinos a Cristo, como a um deus; obrigavam-se por juramento não [cometerem] algum crime, mas à abstenção de roubos, rapinas, adultérios, perjúrios e sonegação de depósitos reclamados pelos donos. Concluído este rito, costumavam distribuir e comer seu alimento”.
O imperador Trajano respondeu a Plínio que os cristãos “não devem ser perseguidos. Mas se surgirem denúncias procedentes, aplique-se o castigo”, devendo ser perdoado aquele que se retrata e retorna à adoração dos deuses (citações extraídas de Bettenson, in Documentos da Igreja Cristã).
A política de Plínio ocorreu como recomendada pelo imperador, no sentido de não caçar cristãos, mas se alguém fosse acusado de negar a adoração aos deuses e se recusasse a negar a fé, deveria ser castigado. Nesta perseguição, Inácio, o Bispo de Antioquia, por volta de 107, foi martirizado.
Outra perseguição explodiu no tempo do imperador Antonino, o Pio (138-161), na cidade de Esmirna, em meados do segundo século, ocasião em que Policarpo foi martirizado. Na presença do procônsul, Policarpo foi admoestado a “jurar pelo gênio de César”, a gritar “abaixo os ateus” e a “insultar a Cristo”. A isso Policarpo respondeu: “Oitenta e seis anos há que sirvo a Cristo. Cristo nunca me fez mal. Como blasfemaria contra meu Rei e Salvador?”.
As últimas palavras da oração final de Policarpo foram estas: “Possa eu, hoje, ser recebido na Tua presença como uma oblação preciosa e aceitável, preparada e formada para ti. Tu és fiel às tuas promessas, Deus fiel e verdadeiro. Por esta graça e por todas as coisas, eu te louvo, bendigo e glorifico, em nome de Jesus Cristo, eterno e sumo sacerdote, teu Filho amado. Por Ele, que está comigo, e o Espírito Santo, glória te seja dada agora e nos séculos vindouros. Amém!” (in Documentos da Igreja Cristã). Depois da oração, os algozes acenderam a fogueira, que não queimava o corpo de Policarpo, razão pela qual foi morto com a espada.
Digna de nota também foi a perseguição movida pelo imperador Marco Aurélio (161-180), por creditar as calamidades que ocorreram em seu reinado (invasões, inundações, epidemias etc.) ao crescimento do cristianismo. Justo González propõe que, “talvez, como Plínio anos antes, Marco Aurélio pensasse que era necessário castigar os cristãos, senão por seus crimes, pelo menos por sua obstinação”. Nessa perseguição, Justino Mártir e Blandina foram martirizados.
Ainda nos dias de Marco Aurélio, as igrejas de Viena e Lyon, na Gália, em carta enviada às Igrejas da Frígia e Ásia Menor, em 177 d.C., comunicaram que a perseguição as alcançou “como um relâmpago”: “O adversário caiu sobre nós com todo o ímpeto de suas forças… Não somente fomos expulsos das casas, das termas e do foro, mas, inclusive, fomos proibidos de aparecer em público. Mas a glória de Deus pelejou conosco contra o diabo…”. Algumas pessoas não suportaram a tortura e renegaram a fé, mas os demais suportaram firmemente. “O cárcere estava tão cheio de prisioneiros, que muitos morreram asfixiados, antes que os verdugos pudessem aplicar-lhes a pena de morte. Alguns dos que antes haviam negado a sua fé, ao verem seus irmãos tão valorosos em meio a tantas provas, voltaram à sua antiga confissão e morreram também como mártires” (González).
Blandina foi a mais destacada desses mártires da Gália. “Depois de ter suportado açoites, a dilaceração das feras e a cadeira de ferro, ela foi presa numa rede e atirada a um touro. Depois de ser jogada para o alto por algum tempo pelo animal, mostrando-se muito superior aos seus sofrimentos pela influência da esperança, pela visão consciente dos objetos de sua fé e pela sua associação com Cristo, ela finalmente entregou o seu espírito” (John Foxe).
Nova perseguição ocorreu com o imperador Sétimo Severo (193-211), sobretudo no Egito e em Cartago, no norte da África, entre 202 e 206. Nesse período, um decreto imperial proibia a conversão ao cristianismo e ao judaísmo, e foram martirizados Irineu de Lyon (202 d.C.), Perpétua e Felicidade, despedaçadas por feras (203 d.C.). Em Alexandria, Leônidas, pai de Orígenes, foi decapitado.
A Perseguição até o Edito de Milão
Décio (249-251) promulgou um edito em 250 d.C. que exigia oferta anual de sacrifício aos deuses e ao imperador. Foi esse imperador que promoveu a primeira perseguição em todo o império romano. Nesse período, Orígenes sofreu torturas que mais tarde lhe causariam a morte e Fabiano de Roma foi martirizado (250 d.C.).
Após Décio, o imperador a empreender a perseguição seguinte foi Valeriano (253-260), que, no ano 257, levou ao martírio Cipriano, o bispo de Cartago, e Sexto, o bispo de Roma.
Entretanto, a mais dura perseguição oficial aos cristãos ocorreu sob os reinados de Diocleciano (284-305) e Galério (305-311). Numa série de editos promulgados a partir de 303, Diocleciano proibiu as reuniões cristãs e ordenou a destituição dos oficiais da igreja, a perseguição aos que perseverassem na fé e a destruição das Escrituras e dos templos construídos nos últimos e tranquilos 50 anos. Os cristãos foram punidos com o confisco de bens, prisões, exílios e execuções à espada ou por animais ferozes. As prisões ficaram tão cheias de líderes cristãos e crentes comuns que não havia lugar suficiente para criminosos, segundo Eusébio. “Em alguns lugares, os cristãos eram encerrados nos templos e, depois, ateavam-lhes fogo, com todos os membros em seu interior. Consta que o imperador Diocleciano erigiu um documento com esta inscrição: ‘Em honra ao extermínio da superstição cristã’” (Hurlbut). Essa feroz perseguição perdurou até 305 d.C., ano em que Diocleciano abdicou.
Após outros breves períodos de perseguição, o imperador Galério promulgou um edito, em 311, que estabelecia a tolerância ao cristianismo, sob a condição de que os cristãos não perturbassem a paz do império. Mas a perseguição só acabaria totalmente em 313, com o edito de Milão, promulgado por Constantino e Licínio (312-337), que garantia a liberdade de culto a todas as religiões.
Por sua importância, vale anotar breve extrato do Edito de Milão: “(…) Pareceu-nos [a Constantino e Licínio] justo que todos, cristãos inclusive, gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua preferência. Desta forma o Deus, que mora no céu, ser-nos-á propício a nós e a todos os nossos súditos. Decretamos, portanto, que, não obstante a existência de instruções anteriores relativas aos cristãos, aos que optarem pela religião de Cristo estão autorizados a abraçá-la sem estorvo ou empecilho, e que ninguém absolutamente os impeça ou moleste (…)” (com grifo nosso).
As Acusações
O cristianismo sofreu uma série de acusações por parte do populacho e dos escritores pagãos, dentre os quais Celso (de quem sabemos pela obra de Orígenes) e Cornélio Fronton (que foi mestre do imperador Marco Aurélio). Tais acusações estiveram em maior ou menor medida relacionadas com a perseguição sofrida pelo cristianismo.
A carta das igrejas da Gália dá-nos conta de diversas acusações lançadas sobre as igrejas de Lyon e Viena:
(…) Também foram presos alguns de nossos escravos que eram pagãos, porquanto o governador havia decretado que se nos procurasse a todos. Eles, temendo os tormentos que viam padecer os santos, impulsionados pelos demônios e instigados pelos soldados, acusaram-nos de comermos os nossos filhos, de termos relações sexuais com nossas próprias mães e de outras coisas das quais não é possível falar ou nelas pensar, pois não podemos acreditar que jamais tenham acontecido entre os seres humanos. Espalhadas estas coisas entre o vulgo, de tal modo enfureceram-se contra nós que, se alguns até então guardavam moderação com respeito a nós por motivos de parentesco, agora se iraram violentamente contra nós, agitados por grande indignação (in Documentos da Igreja Cristã).
Listaremos, a seguir, as acusações que em geral em lançadas sobre os cristãos. Vejamos.
Ateísmo
Os cristãos eram acusados de ateísmo. Os pagãos costumavam adorar a centenas ou milhares de deuses, tornando-se mesmo indiferentes ao acréscimo de mais um, e o comércio entre as nações era estimulado pela divulgação da fé de uma no território da outra, de modo que havia convivência consideravelmente harmônica entre as crenças. Por outro lado, a fé exclusivista dos cristãos levava-os à rejeição de qualquer adoração que não ao Deus Trino, fato que os fazia parecerem ateus à percepção os pagãos.
Subversão política
A recusa dos cristãos em prestar adoração ao imperador romano, como consequência do exclusivismo da sua fé, ensejava a atribuição aos cristãos da pecha de subversivos e rebeldes, sob o viés político. Para o império romano, o culto ao imperador estava diretamente relacionado à lealdade que se devia ao império pelos súditos. Assim, embora a rejeição em dar a César o que não era de César, por parte dos cristãos, tivesse motivação religiosa, a leitura oficial era diversa, concluindo tratarem-se os cristãos de uma ameaça política, realidade que não se podia tolerar. No dizer de Bruce L. Shelley, “o culto a César era basicamente um teste de lealdade política, que permitia saber se um homem era ou não um bom cidadão. Se alguém se recusasse a participar da cerimônia de reconhecimento de César, era automaticamente rotulado de traidor e revolucionário”.
Insociabilidade
Os cristãos eram tidos também como uma gente insociável, porque se recusavam a participar das cerimônias civis e encontros públicos, todos eles regados a sacrifícios aos deuses. Ouçamos o que diz Shelley a respeito:
Não se podia simplesmente rejeitar os deuses sem ser desprezado como um desajustado social. Para o pagão, cada refeição começava com uma oferta líquida e uma oração para os deuses pagãos. O cristão não podia compartilhar de tais práticas. A maioria das comemorações pagãs e festas sociais acontecia no templo após a realização de um sacrifício e, em seguida, vinha o convite para se jantar “à mesa” de algum deus. O cristão não participava desse tipo de festa. Inevitavelmente, quando recusava o convite para qualquer acontecimento social, era visto como uma pessoa rude e descortês.
Incompreensão de práticas e doutrinas cristãs
Algumas práticas religiosas dos cristãos foram mal interpretadas. Suas reuniões secretas, conhecidas como “festas do amor” (ágapes), despertavam na mente dos pagãos ideias relacionadas a orgias incestuosas entre “irmãos” e “irmãs”. A Ceia do Senhor, própria dessas reuniões secretas, suscitava a desconfiança de que os cristãos praticavam canibalismo. Imaginava-se que se punham meninos recém-nascidos dentro de um pão e que quando se ordenava que fosse cortado, devoravam o seu corpo.
Finalmente, havia perseguição também motivada por questões de ordem social e econômica. De uma banda, a prática cristã de nivelar os crentes como irmãos, seguindo a orientação geral do Novo Testamento e, especificamente, a orientação paulina a Filemon, rendia-lhes a má fama de perturbadores da ordem social. De outra, não faltaram episódios na História da Igreja nos quais a economia de uma província era abalada pelo abandono da idolatria, tal como se dera em Éfeso (At 19), ensejando nova onda de perseguição a cristãos.
As acusações dos pagãos cultos
Os pagãos cultos iam além dos boatos espalhados pela plebe e questionavam o cerne das doutrinas cristãs, acusando o cristianismo de religião de bárbaros. O Deus dos cristãos era considerado ridículo, segundo a argumentação pagã, posto que onipotente e ao mesmo tempo imiscuído no cotidiano dos homens. Jesus era tão somente um malfeitor, crucificado pelas autoridades romanas. Celso chegou a dizer que Jesus foi um filho ilegítimo de Maria com um soldado romano, e questionou: se era Deus, por que se deixou crucificar? Por fim, a crença na ressurreição era um grande escândalo para os pagãos.
Como veremos, homens cristãos desenvolveram uma farta literatura em defesa da fé, com base no Novo Testamento, demonstrando que, ao revés do que se divulgava, o culto e a moral cristãos eram superiores e que os seguidores de Cristo mereciam melhor tratamento.