O estudo relacionado ao futuro de Israel está entrelaçado com os temas do milênio, do reino de Deus e, especificamente, com a interpretação de Romanos 11. É sobre o que trataremos neste ponto da nossa sequência.
No tempo de Jesus, Israel esperava um reinado messinânico terreno, conforme descrito nas formas e imagens da profecia do Antigo Testamento. Essas formas e imagens passaram a ser interpretadas literalmente. “A concha foi interpretada como o núcleo, a imagem pela coisa e a forma pela essência. O reino messiânico tornou-se o governo político de Israel sobre as nações – um período de prosperidade e crescimento externos (…)”, tempo após o qual haveria a ressurreição geral e o juízo universal.
Esse pensamento pode ser encontrado no Apocalipse de Baruque e em 4Esdras, nos quais se colhe a informação de que depois de um período específico de tempo, estimado, por exemplo, no Talmude, em quatrocentos ou mil anos, esse reino daria lugar à bem-aventurança celestial no reino de Deus. A conclusão a que se pode chegar é que “o quiliasmo não tem uma origem cristã, mas judaica e persa”.
Entretanto, ao quiliasmo aderiram judeus e muitos cristãos e pode ser encontrado em Cerinto, nos Testamentos dos Doze Patriarcas, no pensamento dos ebionitas, na Epístola de Barnabé, em Papias, Irineu, Hipólito, Apolinário, Comodiano, Lactâncio e Vitorino. Outros gnósticos, os teólogos de Alexandria e, especialmente, Agostinho, resistiram ao milenarismo. Na época da Reforma, o quiliasmo reviveu entre os anabatistas e os socinianos. Nos séculos XVIII e XIX, voltou a ser abraçado por seguidores de Swedenbrog, Darby, Irwing, mórmons, adventistas e outros, como também recebeu guarida entre teólogos nas igrejas da Reforma.
Quiliasmos: conceito e variações
A título de aproximação, observamos que o quiliasmo consiste na expectativa de que pouco antes do retorno de Cristo haveria uma conversão nacional de Israel, um retorno dos judeus à Palestina que, sob o governo de Cristo, governariam as nações. Esse processo, acredita-se, já estaria em fase de cumprimento, uma vez que um Estado de Israel independente já se tornou realidade desde o século passado. Alguns, assim, estão aguardando o incremento do sionismo, a retomada do templo pelos judeus e a restauração dos serviços do templo e, por fim, uma conversão em massa da nação judaica a Cristo.
O tempo presente, segundo a interpretação de muitos quiliastas, é a era neotestamentária intermediária na qual a Igreja, composta por gentios, foi tomada por Deus em uma espécie de desvio de curso, uma vez que Israel rejeitou o Messias. Nessa senda, o verdadeiro cumprimento da profecia antigotestamentária só recomeçará com a Segunda Vinda de Cristo.
Para os quiliastas, há um duplo retorno de Cristo e uma dupla ressurreição. Em seu primeiro retorno, Cristo vencerá as forças do anticristo, amarrará Satanás, ressucitará os crentes que estiverem mortos e reunirá a Igreja ao seu redor e a comunidade de Israel, agora já de volta à Palestina. De dentro dessa comunidade, Cristo governará o mundo todo e introduzirá um período de prosperidade material e prevalência de valores morais e espirituais cristãos em todas as nações.
O milênio seria um estado transitório entre este mundo e o próximo, no qual os crentes são preparados para a contemplação de Deus (Irineu) e desfrutam de tranquilidade e paz, sem serem totalmente livres do pecado e da morte. Nesse reino, a natureza (Irineu) e as pessoas (Lactâncio) serão, acredita-se, extraordinariamente férteis e a Igreja cumprirá sua missão em relação à humanidade. No fim desse período milenar, ele retornará uma vez mais para ressuscitar todos os seres humanos, julgá-los e decidir seu destino eterno.
Houve também quem dissesse que, antes do estabelecimento de um reinado de mil anos, não haveria um retorno de Cristo (Kurtz), ou, pelo menos, não haveria um retorno visível (Darby), ou haveria um retorno visível somente aos crentes (Irwing).
Para alguns, Cristo permaneceria na terra em seu primeiro retorno; para outros, Cristo parmeneceria na terra somente por um breve momento, para estabelecer seu reino e, depois, retornaria ao céu; e, para outros ainda, o governo milenar de Cristo seria conduzido do céu. Aqueles que admitem que Cristo permanecerá na terra após seu primeiro retorno, fixam Jerusalém como o lugar da sua residência. Para os montanistas, o lugar seria Pepuza, na Frígia, e, para os mórmons, no vale de Salt Lake. Em regra, as ideias de restauração do templo e dos serviços do templo são rejeitadas, mas foi defendida pelos ebionitas e, atualmente, pelos dispensacionalistas.
O Quiliasmo e o Antigo Testamento
Sequer no Antigo Testamento o quiliasmo consegue se manter de pé. Segundo essa primeira porção das Escrituras, o reino messiânico não é provisório e temporário, mas o fim e o resultado final da História da Humanidade (Dn 2.44).
Nada há ali que fundamente um duplo retorno de Cristo e uma dupla ressurreição dos mortos. Esse cenário final (não transitório, ressalte-se), tal como contemplado no Antigo Testamento, inclui a conversão de Israel e das nações, o retorno à Palestina, a reedificação do templo e a restauração dos sacrifícios e do sacerdócio levítico etc. A decisão sobre o que é “literal” e o que é “espiritual”, a partir das profecias veterotestamentárias, tem estado a cargo do subjetivismo de cada intérprete, quando, na verdade, toda aquela imagem é parte de um todo indiviso do olhar profético.
O melhor caminho é admitir que o futuro foi descrito no Antigo Testamento a partir do contexto histórico da época, quando aquilo que é terreno foi usado como imagem do que é celestial e, o que é transitório, como analogia do que é eterno. A antiga interpretação prevalecente em Alexandria se equivocou não porque admitiu a analogia quando exigida pelas próprias Escrituras, mas quando atribuiu significados estranhos ao texto, de caráter puramente subjetivo.
Mesmo no Antigo Testamento, contudo, aquelas imagens terrenas são vistas como realidades espirituais para as quais sinalizam. A verdadeira circuncisão é a do coração (Dt 10.16; 30.6; Jr 4.4). Os sacrifícios agradáveis a Deus são o coração quebrantado e o espírito contrito (1Sm 15.22; Sl 40.6; 50.8ss; 51.17; Is 1.11ss; Jr 6.20; 7.21ss; Os 6.6; Am 5.21ss; Mq 6.6ss). O verdadeiro jejum é desatar os laços da injustiça (Is 58.3-6; Jr 14.12). A essência da dispensação futura consiste em que o Senhor fará uma nova aliança com o seu povo, na qual Ele lhe dará um novo coração e derramará nele o seu Espírito (Dt 30.6; Jr 31.32-34; 32.38ss; Ez 11.19; 36.26; Jl 2.28; Zc 12.10).
O Futuro de Israel nos Evangelhos
Com muito mais clareza o Novo Testamento resiste à expectativa quiliasta. Embora João Batista não tenha chegado à mais apurada compreensão do reino de Deus que anunciava, ele já o antevia de forma diversa dos seus contemporâneos, não como um domínio político garantido a uma etnia, mas como um domínio ético-religioso, razão pela qual ensinou que o pertencimento à descendência física de Abraão não bastava. Era preciso apresentar frutos dignos de arrependimento (Lc 3.7-8). João gradualmente reuniu um grupo de discípulos que separou do povo judeu por meio do batismo, no que foi seguido por Jesus (Jo 4.1-2; 8.33-47).
Essa separação entre os judeus e a ekklesia como verdadeiro povo de Deus foi se tornando cada vez mais nítida no Novo Testamento. Embora muitos judeus tenham crido em Jesus, para a maioria deles ele era “ruína” e “alvo de contradição” (Lc 2.34). Ele veio para os seus, mas os seus não quiseram (Jo 1.11). Jesus constantemente percebia que os judeus não o queriam (Jo 5.37-47; 6.64; Mt 13.57) e testificou que morreriam em seus pecados (Jo 8.21), que eram filhos do diabo (Jo 8.44) e que eram plantas não plantadas pelo Pai (Mt 15.13-14).
A incredulidade da nação foi considerada por Jesus como o cumprimento da profecia (Mt 13.13-15; Jo 12.37-40). O futuro que aguardava os judeus incluía a destruição de Jerusalém e do templo (Mt 22.7; 23.37-39; 24; Lc 19.41-44; 23.28). A maldição da figueira na segunda-feira da semana da paixão é sintomática desse futuro sombrio (Mc 11.12-14). O reino de Deus seria tirado de Israel e dado a um povo que produziria o fruto do reino (Mt 21.43). A vinha seria alugada para outros trabalhadores (Mt 21.41; vide, nesse sentido, Mt 8.10-12; Jo 10.16).
Esse cenário parece indicar que a nação judaica já não seria a representação visível do povo de Deus na terra, nem tampouco expressão do reino messiânico que o Cristo inaugurou.
A natureza do reino de Deus em Atos 1.6-8
Após a ressurreição, Jesus apareceu aos discípulos por espaço de quarenta dias, oportunidade em que deu mandamentos por intermédio do Espírito, falou sobre o “reino de Deus” e disse que aguardassem em Jerusalém o cumprimento da “promessa do Pai” (At 1.2-5).
Os versículos seguintes (6-8) apresentam o último diálogo de Jesus com os discípulos antes da escensão. Nesse diálogo, os discípulos perguntaram: “será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” (v. 6). A pergunta, como se percebe, assim como a resposta de Jesus nos versículos 7 e 8, revelam o equívoco dos discípulos em relação ao tempo da consumação, à natureza do reino, ao modo da sua expansão e à sua abrangência. Explique-se.
Em relação ao tempo, os discípulos revelaram uma curiosidade pecaminosa (v. 7; Mt 24.36), como também confundiram o cumprimento da “promessa do Pai”, que se daria em uma semana, com a consumação do reino de Deus no fim dos tempos. A resposta do v. 8 explica que o cumprimento da promessa do Pai é a capacitação para o início da missão aos confins da terra e que o reino não seria consumado até que a missão estivesse concluída (cf. Mt 24.14).
Quanto à natureza do reino, os discípulos ainda o confundiam com o reino político de Israel, equívoco evidenciado pela palavra “restaurar” e pelo uso do temo “reino a Israel”, quando, na verdade, todo o ensino de Jesus foi sobre o “reino de Deus”. Eles olvidaram que Jesus ensinou sobre um reino que não é deste mundo (Jo 18.36), que é dos humildes (Mt 5.3, 10), no qual o maior é o menor (Lc 22.26) e que o reino a ser buscado (Mt 6.33) tem uma criança como seu cidadão-modelo (Mt 18.3) e que consiste de paz, justiça e alegria no Espírito Santo (Rm 14.17).
Um equívoco sobre a natureza do reino conduz a dois outros: quanto ao modo de expansão e quanto à abrangência. Quanto ao modo de expansão, imaginaram que seria pela força (Lc 22.35-38; Jo 18.10, 36), quando o reino de Deus seria expandido pela atividade missionária do Espírito Santo (v. 8). Quanto à abrangência, limitavam o reino a Israel, no que também se equivocaram, uma vez que o reino de Deus é de abrangência universal (Dn 7.27; Is 49.6; Mt 13.31-33; Lc 13.29; Jo 4.20-24), envolve até aos confins da terra (v. 8).
O futuro de Israel em Paulo
Os apóstolos vieram a apreender a mesma mensagem de Jesus a respeito de Israel. Como vimos, eles deveriam começar sua obra em Jesusalém e seguirem até aos confins da terra (At 1.8). Pedro leva o evangelho aos judeus (At 2.14; 3.19; 5.31), mas após uma visão compreendeu que, independentemente de pertencimento ao Israel étnico, aquele que teme a Deus é aceitável a Ele (At 10.25, 43).
Com Paulo não é diferente. Ele sempre começa sua pregação entre os judeus (At 13.46; 18.6; 28.25-28): “primeiro ao judeus, depois ao grego” (Rm 1.16; 1Co 1.21-24). Ambos, judeus e gentios, são merecedores da mesma condenação e precisam do mesmo evangelho, o único caminho para judeus e gentios serem aceitos por Deus (Rm 3.9-31; 4; Gl 3).
Os judeus que rejeitam a Cristo não são verdadeiros judeus (Rm 2.28-29). Esses tais devem ser calados (Tt 1.10-11). Eles mataram os profetas e o Senhor Jesus e, no tempo do apóstolo, perseguiam os crentes (1Ts 2.14; Ap 2.9; 3.9). Os verdadeiros judeus são os crentes em Jesus Cristo, a descendência espiritual de Abraão (Rm 9.8; Gl 3.7-14, 26-29).
Por fim, parece-nos que Paulo (e o Novo Testamento como um todo) não ensina a noção de substituição de judeus por gentios, mas afirma que o reino de Deus é representado visivelmente não pelos judeus como nação-estado, mas por um povo internacional constituído de gentios e judeus. Não se trata de substituição, mas de junção de dois povos em um só (Ef 2.11-3.12).
Entretanto, a questão que ainda se impõe é se há ainda uma obra divina de salvação especificamente voltada aos judeus étnicos no tempo do fim (o que veremos no próximo tópico) e se esse plano inclui um reinado terreno de Cristo na terra a partir de Jerusalém (tema do próximo estudo).
A salvação de “todo o Israel” em Romanos 11
Voltamo-nos agora para tratar da salvação da plenitude de Israel, apenas referido de passagem quando estudamos os sinais da Segunda Vinda. Em certo sentido, a pregação do evangelho a Israel é parte da proclamação do evangelho a todas as nações, aspecto anteriormente discutido. Entretanto, Romanos 11.25, 26 parece apontar a salvação de “todo o Israel” como um sinal específico dos tempos.
Avivamos que, especialmente, a cláusula “E, assim, todo o Israel será salvo” é objeto de variadas interterpretações pelos eruditos. Dentre as principais posições interpretativas da passagem, três merecem destaque: (1) a primeira entende que a salvação de “todo o Israel” significa a salvação do número total dos eleitos judeus, realizada ao longo da História (Herman Bavinck, Loius Berkhof, O. Palmer Robertson etc); (2) à segunda, a expressão seria indicativa da salvação de todos os eleitos, incluindo judeus e gentios, também realizada ao longo da História (Calvino).
A terceira interpretação (3) compreende a cláusula como significando uma atividade divina salvadora voltada ao Israel étnico no fim dos tempos. Mas essa perspectiva também comporta diferentes conclusões, a depender da escola escatológica do intérprete.
Para os dispensacionalistas (3.1), significa que, após o arrebatamento da Igreja (composta hegemonicamente de gentios), Deus voltará sua atenção a Israel que, como nação, será convertida, seja imediatamente antes da Segunda Vinda, seja no momento em que ela estiver ocorrendo. Após isso, Cristo instalará seu governo sobre a nação judaica convertida e, a partir de um trono em Jerusalém, governará o mundo por mil anos.
Há também teólogos pré-milenistas, mas não dispensacionalistas (3.2), que aguardam uma conversão futura de Israel como nação e, outros ainda, nem pré-milenistas, nem dispensacionalistas (3.3), esperam uma conversão da plenitude de Israel a ser realizada no fim dos tempos.
Em suma, a controvérsia em torno da passagem “E, assim, todo o Israel será salvo” gira em torno de três questões cruciais: (a) se a passagem diz respeito especificamente aos judeus ou à salvação de judeus e gentios (posições “1” e “3” ou “2”); (b) se a passagem se refere a uma ação divina no final dos tempos ou se designa a salvação efetuada na História da Igreja (posições “1” e “2” ou “3”); e (c), caso se refira à salvação dos judeus, no fim dos tempos (posição “3”), se pressupõe um arrebatamento secreto da Igreja e a instalação de um governo terreno de Cristo na terra por mil anos (posições “3.1” e/ou “3.2” ou “3.3”). Essa última discussão será o tema do próximo estudo, conforme antes anunciamos.
O nosso entendimento se revelará à medida em que formos analisando a passagem, mas já adiantamos que nos filiamos à interpretação “3.3”, ou seja, entendemos que a salvação da plenitude de Israel é um sinal do fim dos tempos e diz respeito a uma conversão extraordinária dentre os judeus, sem que isso pressuponha um milênio terreno, tampouco um arrebatamento secreto dos gentios. Passo a explicar.
Para entendermos Romanos 11.25, 26, é necessário ter em mente o propósito dos capítulo 9-11 da Carta aos Romanos. Nesses capítulos, Paulo enfrenta o problema da incredulidade de Israel, fato que provoca no apóstolo “grande tristeza e incessante dor no coração” (9.2) e o leva a uma “súplica a Deus a favor deles (…) para que sejam salvos” (10.1), sendo ele próprio um israelita.
No capítulo 9, ele esclarece que a incredulidade de Israel não é completa, mas que os verdadeiros israelitas são salvos e pela salvação desses o propósito de Deus para com os filhos da promessa é cumprido (vs. 6, 8). Embora a salvação dos verdadeiros israelitas seja atribuída à livre graça de Deus no capítulo 9 (vs. 14-24), no capítulo 10 Paulo afirma que os israelitas perdidos são responsáveis por sua própria incredulidade (v. 3), razão pela qual deveriam culpar apenas a si mesmos por terem rejeitado o evangelho.
No capítulo 11, Paulo demonstra que a rejeição de Israel nem é absoluta, porque sempre houve um remanescente (vs. 2-4; cf. 9.27) segundo a eleição da graça (vs. 5-10), nem permanente, de acordo com os versículos 11-26a. Assim, ficamos com o seguinte quadro: a rejeição de Israel nem foi completa, mas parcial, nem foi final, mas temporária. Vamos à análise dos versículos 11-26a.
Com a pergunta “tropeçaram para que caíssem?” (v. 11), o apóstolo não quer negar que a maioria do Israel étnico realmente tropeçou (cf. 9.32, 33) e colheu graves consequências (cf. 11.7-10). Ele tem em vista questionar o propósito último do plano de Deus para esse tropeço, daí que sua negativa enfática “de modo nenhum” pretende informar que Israel não “tropeçou” para que “caísse”. A razão última pretendida por Deus foi comunicada na parte final do versículo 11: a salvação dos gentios. Entretanto, o plano de Deus inclui mais. Se pela transgressão de Israel veio salvação aos gentios, a salvação dos gentios, ainda no escopo do plano de Deus, servirá como meio de “pô-los em ciúmes”. A suma é que não há qualquer incompatibilidade entre a salvação dos gentios e a de Israel. Pela incredulidade de Israel, veio a salvação dos gentios; pela salvação dos gentios, Deus promove a fé em Israel.
No versículo 12, a “transgressão” é o tropeço de Israel, o fato de que a maioria do Israel étnico caiu, tropeçou. “Abatimento” é esse tropeço retratado em termos de uma derrota militar, ocorrida quando o reino lhe foi tirado e dado aos gentios (cf. Mt 8.12; 21.43; At 13.44-48; 18.6; 28.23-28). Pela transgressão, veio “riqueza para o mundo”, expressão equivalente à “salvação aos gentios” (v. 11). Dito de outro modo: seu “abatimento” resultou em “riqueza para os gentios”. Ora, eis o raciocínio do apóstolo: se a derrota de Israel resultou em riqueza para os gentios, “quanto mais sua plenitude”. Se “tropeço”, “transgressão” e “abatimento” são os modos como Paulo descreve a incredulidade da maioria da nação teocrática, é de se esperar que “plenitude” também se refira à maioria étnica desse povo, só que agora restaurada e reinserida nas bênçãos do pacto pela fé em Cristo.
Nos versículos 13-15, Paulo se dirige diretamente aos gentios. Ele é “apóstolo dos gentios” (cf. Rm 1:5; 12:3; 15:15, 16; Gl 2:2, 7-9; At 18:6; 22:21; 26:17, 18; Ef 3:1, 8; I Tm 2:7; II Tm 4:17). E, como disse (“glorifico o meu ministério”), ele promovia a exaltação de seu ministério entre os gentios, mas o fazia com o propósito de alinhar-se ao propósito mais amplo de Deus (v. 11). Ele desejava, em seu ministério, levar alguns dos judeus à conversão mediante ciúmes.
No v. 15, a ideia do v. 12 é reiterada, mas com outros termos. “Rejeição” é o equivalente de “tropeço”, “transgressão” e “abatimento”. “Reconciliação ao mundo” ressalta o fato de que os gentios, anteriormente alienados de Deus, situação ora experimentada por Israel, foram reconciliados (cf. II Co 5:18-20). “Restabelecimento” é a reinserção de Israel nas bênçãos da salvação. O raciocínio é do menor para o maior: se a rejeição de Israel trouxe reconciliação aos gentios, muito mais o seu restabelecimento trará: “vida dentre os mortos”.
A expressão “vida dentre os mortos” é indicativa de um despertamento sem igual da verdadeira piedade, acompanhado com uma grande expansão da pregação evangélica, isso em decorrência da conversão da maioria do Israel étnico. “Se Deus usou a tragédia da rejeição de Israel para salvar os gentios, quanto mais capaz seria ele de enriquecer o mundo por meio da aceitação e plenitude de Israel?” (John Stott).
Paulo, no versículo 16, expõe a relação dos gentios com Israel a partir de duas metáforas. “Primícias” e “raiz” parecem simbolizar os patriarcas (cf. 11.28), e, sendo este o caso, o apóstolo estaria acentuando o caráter permanente das promessas divinas a eles relativas. Em toda essa passagem, Paulo deseja estabelecer que não existe provisão salvadora de Deus, quer em favor de judeus, quer de gentios, à parte da aliança estabelecida com os patriarcas de Israel.
A metáfora das primícias foi abandonada e o escritor prosseguiu com a da raiz e dos ramos nos versículos 17-24, mas agora sabemos tratar-se de uma oliveira, símbolo usual para Israel na Escritura (cf. Jr 11:16, 17; Os 14:6). Na metáfora, Israel é a oliveira cultivada e os gentios, a brava (v. 17). Os ramos naturais foram “quebrados”, uma referência ao tropeço, rejeição e abatimento de Israel. Os gentios (a oliveira brava) foram enxertados “em meio deles”, uma clara alusão à sua inclusão nas bênçãos da salvação. É porque está “em meio deles” que os gentios se tornaram participantes “da raiz e da seiva da oliveira”. É dizer, os gentios são lembrados que só participam da graça porque foram ligados aos patriarcas, sendo eles a raiz da oliveira.
Paulo entende que é correto afirmar que “alguns ramos foram quebrados para que eu fosse enxertado”, mas jamais aceitaria transformar essa verdade em motivo de arrogância antissemita (vs. 18-21). Até porque a causa da rejeição de Israel é a incredulidade, enquanto os gentios foram enxertados e firmados tão somente pela fé, fato que exclui toda a noção de mérito (cf. 9.32; 11.6). Para aplacar definitivamente qualquer pretensão orgulhosa por parte dos crentes gentios, o apóstolo os exorta a considerarem “a bondade e a severidade” de Deus (v. 22-24).
Nos versículos 25-27, Paulo permanece exortando os gentios a não se ensoberbecerem contra Israel, com base na incredulidade desse povo, como se pode deduzir facilmente da cláusula “para que não sejais presumidos em vós mesmos”. “Não quero, irmãos, que ignoreis” (v. 25) é uma forma comum em Paulo de chamar a atenção dos leitores para aquilo que será dito (cf. 1.13; 1Co 10.1; 12.1; 2Co 1.8; 1Ts 4.13). Ele tem em vista um “mistério”, vocábulo que significa aqui, como em Efésios 3.9 e Colossenses 1.26, 27, uma verdade que Deus revelou aos apóstolos (cf. Ef 3.5), e que só se tornou conhecida porque Deus a revelou. É, no dizer de Mark A. Seifrid, “a revelação da verdade acerca da qual a Escritura já dá testemunho. O conhecimento do ‘mistério’ acarreta o entendimento da mensagem da Escritura, a qual, embora presente, antes estava oculta e desconhecida”.
O conteúdo desse “mistério” está na segunda parte do versículo 25: “veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a plenitude dos gentios”. Novamente, Paulo volta a ressaltar que a rejeição de Israel é parcial, não total (“em parte”), e temporária, não final (“até que haja entrado a plenitude dos gentios”). “Em parte” implica dizer que nem todos do Israel étnico foram rejeitados, visto que Deus reservou para Si o remanescente. Mais ainda. Que o endurecimento parcial é apenas temporário, Paulo nos diz, inclusive informando o “evento” que demarca o termo final: a “entrada da plenitude dos gentios”.
Se, para entendermos o que significa “plenitude dos gentios”, levarmos em conta o modo como o vocábulo “plenitude” foi usado no versículo 12, descartaremos a ideia de que a expressão significa “o número completo dos gentios eleitos”, como quer Hendriksen. Ali, no v. 12, a palavra plenitude é contrastada com “transgressão” e “abatimento”, para referir-se ao alcance de uma ampla maioria do Israel étnico pela graça de Deus. Se esse é o caso, aqui (no v. 25) “plenitude dos gentios” é a salvação de um número extraordinário dentre eles. Portanto, o dies a quo do endurecimento parcial do Israel étnico é o derramamento de bênçãos incomparáveis sobre os gentios, para o qual os grandes despertamentos espirituais ocorridos ao longo da história são típicos, “E, assim, todo o Israel será salvo”.
Seguimos, pois, a posição de John Murrai (como também de F. F. Bruce, John Stott etc.), no sentido de que “todo o Israel será salvo” indica uma época futura em que grande parte do Israel étnico, em contraponto a uma minoria judaica crente (o remanescente) dos dias de Paulo (e dos nossos), será restabelecida à obediência da fé. Murrai afirma: “‘todo o Israel será salvo’ deve ser interpretada em termos da plenitude, do acolhimento, do recebimento, do enxertar Israel como um povo, de sua restauração às bênçãos e ao favor do evangelho e do seu retorno à fé e ao arrependimento”.
Nesse sentido, Paulo está dizendo que as grandes bênçãos vividas pelos gentios (a plenitude dos gentios) demarcariam o termo final do endurecimento parcial do Israel étnico e inaugurariam bênçãos maravilhosas experimentadas pelos judeus (todo o Israel será salvo). O “mistério”, portanto, reside exatamente no fato de que o endurecimento parcial de Israel não é final e que chegará um dia em que “todo o Israel será salvo”.
Assim, “todo o Israel” não significa cada um dos descendentes de Abraão de todos os tempos, nem cada um dos descendentes de Abraão eleitos de todos os tempos, tampouco cada um dos descendentes de Abraão na época futura em foco. Como pontua F. F. Bruce: “‘Todo o Israel’ é expressão que aparece repetidamente na literatura judaica, onde não significa necessariamente ‘todo judeu sem uma única exceção’, mas, ‘Israel como um todo’”.
Talvez a expressão aponte para uma época futura em que a Igreja deixará de ser o ajuntamento composto de uma maioria esmagadora de gentios.