Escatologia

O Estado Intermediário: Parte 2

Teologia Sistemática
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Modo noturno

O que acontece após a morte

Neste passo dos nossos estudos, estamos prontos para entender como acontece a vida após a morte, no Estado Intermediário. Longe de uma vida adormecida, inativa e sem memória, os mortos continuam a se lembrar das coisas que lhe aconteceram na terra. Tanto o homem rico quanto Lázaro sabiam quem tinham sido e sob quais condilões tinham vivido na terra (Lc 16). Também não pode haver dúvida sobre se os mortos reconhecem aqueles que conheceram na terra. Nesse sentido, os habitantes do mundo inferior saúdam zombeteiramente  o rei da Babilônia (Is 14). Do meio do Sheol os poderosos chefes se dirigem ao rei e ao povo do Egito (Ez 32.21). O homem rico reconhece Lázaro (Lc 16) e os amigos que fizemos na terra nos receberão com alegria nos tabernáculos eternos (Lc 16.9).

Certo, pois, é que a vida após a morte existe não apenas em um estado, mas também em um lugar, uma vez que as almas que ali residem não se tornam eternas e onipresentes. Como os anjos, eles têm um paradeiro definido (ubi defitinivum) e não podem estar em dois lugares ao mesmo tempo. Tampouco são elevadas acima do tempo, porque têm um passado do qual se lembram, um presente no qual vivem e um futuro para o qual se dirigem. Há vida consciente intensa: as almas sob o altar enseiam pelo dia da vingança (Ap 6.10), a noiva espera pela vinda so Senhor (Ap 22.17), aqueles que vêm da tribulação servem a Deus de dia e de noite (Ap 7.15) e não há descanso nem de dia nem de noite para aqueles que adoram a  besta (Ap 14.11). 

Aqueles que morreram sem a fé em Jesus Cristo já entram imediatamente em um lugar de tormento, como o homem rico (Lc 16), de modo que podemos afirmar, com certeza, que se aqui a ira de Deus já pesa sobre os incrédulos, quanto mais intensamente ela não pesará sobre eles após a morte, quando todas as distrações da vida terrena estarão ausentes e sua existência nua for cheia com nada menos do que a consciência e a noção dessa ira?

Quanto aos crentes em Jesus Cristo, eles já recebem em vida todos os benefícios da salvação, imediatamente, em um sentido jurídico: em Cristo, têm direito a todos os benefícios da aliança, a toda a salvação. Mas na terra ainda não entram em plena posse desses benefícios. É certo, porém, que os crentes deixam de ser peregrinos e entram em sua pátria na morte. Os crentes sempre expressam sua expecativa de que, com a morte, alcançarão o fim da sua peregrinação e a entrada na bem-aventurança do céu (Sl 73.24-25; Lc 23.43; At 7.59; 2Co 5.1; Fp 1.23; 2Tm 4.7). Após a morte não há mais santificação, porquanto já tem início um estado de santidade no qual os espíritos dos justos se tornam perfeitos (Hb 12.23) e são vestidos com longas vestimentas brancas diante do trono do Cordeiro (Ap 7.9,14).

A morte serve como um meio para o aperfeiçoamento das almas dos justos, não no sentido platônico, como se decorresse da libertação do corpo, posto que o pecado está enraizado exatamente na alma. A morte para o crente é, na realidade, uma morte para o pecado, de modo semelhante ao que ocorre na “morte ética” operada na regeneração e na conversão (Rm 6.6-11; 8.10; 1Pe 2.24). Essa morte ética culmina na morte física (Rm 7.24; 2Co 5.1; Fp 1.21, 23). Portanto, não é estranho que, assim como Deus usa o sofrimento para o aperfeiçoamento dos crentes (Hb 12.10), use a morte como meio para a santificação da alma do crente e para purifificá-la de todas as manchas do pecado.

Os crentes no céu

Os crentes já partem, com a morte, para a experiência de uma alegria indizível no céu, que consiste sobretudo de comunhão com Cristo, mas também de comunhão entre os bem-aventurados. Essa comunhão (com Cristo e entre os crentes) que tem início na terra, embora imperfeita, é enriquecida na vida após a morte em uma medida excepcional. O mais elevado desejo de Paulo era partir e estar com Cristo (Fp 1.23; 1Ts 4.17). Mas, além disso, Jesus representa a elegria no céu usando a imagem de um banquete no qual todos os convidados se sentam com Abraão, Isaque e Jacó (Mt 8.11; Lc 13.28).

Também não é absurdo pensar que os bem-aventurados no céu têm saudades dos crentes que estão na terra, até porque eles guardam na memória as pessoas e condições que conheciam na existência terrena (Lc 16.27-31). As almas sob o altar clamam por vingança por causa do sangue que foi derramado (Ap 6.10) e, a noiva, isto é, a comunidade dos crentes, no céu e na terra, ora pela vinda do Senhor (Ap 22.17). 

De forma alguma as almas dos crentes são descritas como estando inativas. Embora Jesus tenha dito que na noite da morte ninguém pode trabalhar (Jo 9.4) e a bem-aventurança celestial seja com frequência dita em termos de um estado de repouso (Hb 4.9-10; Ap 14.13), isso não pode significar absoluta inconsciência e inatividade. Não é incoerente dizer que Deus descansou da obra da criação e, no entanto, que trabalha (Gn 2.2; Jo 5.17), nem que Cristo realizou sua obra na terra (Jo 17.4) e ainda prepara um lugar no céu para os crentes (Jo 14.3). Assim também as Escrituras dizem que os crentes que partiram descansam dos seus labores e, contudo, servem a Deus no seu templo de dia e de noite, em comunhão com Jesus e uns com os outros, clamando, orando, prestando adoração (Fp 1.23; Ap 6.10; 7.9, 10, 15; 22.17). 

Ademais, assim como há distinção de lugar e tarefa entre os crentes na terra, após a morte seus dons e suas obram os seguem, sem que essa diversidade seja aniquilada. Ao contrário, ela é purificada em tudo aquilo em que estava mesclada de pecado e abundantemente multiplicada (Lc 19.17-19). Há diferença, pois, de grau, de dons e serviços no céu, mas essa distinção não dominui em nada a bem-aventurança que cada um desfruta de acordo com a graça recebida, pois todos estarão em casa com o Senhor (2Co 5.8), serão levados para o mesmo céu (Ap 7.9), desfrutarão do mesmo descanso (Hb 4.9) e encontrarão alegria no mesmo serviço (Ap 7.15).

Há uma segunda oportunidade?

Haveria uma segunda chance de arrependimento para aqueles que partiram sem ouvir o evangelho ou o ouviram apenas vagamente? Clemente e Orígenes foram os primeiros a darem resposta afirmativa à pergunta, e o fizeram com base em 1Pedro 3.18-19. Embora Agostinho e outros tenham refutado, a ideia continuou voltando e encontrou guarida no século XIX, sobretudo quando o número de não cristãos começou a se expandir. 

Fato é que é da maior importância que tenham existido, existam e venham a existir milhões de pessoas que nunca tiveram qualquer contato com a mensagem do evangelho e, por isso, nunca tiveram oportunidade de abraçá-lo ou rejeitá-lo. Essas pessoas não podem ser contadas entre os incrédulos em um sentido estrito e as Escrituras dizem que elas devem ser julgadas por um padrão diferente do de judeus e cristãos (Mt 10.15; 11.20-24; Lc 10.12-24; 12.47-48; Jo 15.22; Rm 2.12; 2Pe 2.20-22).

Disso não segue que haja uma pregação do evangelho após o túmulo, uma vez que a Escritura nunca se refere, nem em uma só vez, a essa possibilidade. Ezequiel 16.53-63 não serve como texto-prova. Na passagem, Sodoma e Samaria, cidades outrora destruídas, são tipos de todas as nações gentílicas (cf. v. 61), nada sendo dito sobre uma pregação no Sheol para errependimento dos mortos.

E quanto a 1Pedro 3.18-22 e 4.6? Eles ensinam que Cristo pregou no Hades após a ressurreição aos contemporâneos de Noé? Se isso ocorreu, disso podemos concluir que há uma pregação contínua no Hades para todos os que não ouviram o evangelho na terra? Primeiro, observemos que os contemporâneos de Noé não eram pessoas que nunca ouviram a Palavra de Deus na terra. Pelo contrário, eles ouviram a mensagem de Noé e conscientemente a rejeitaram (2Pe 2.5). Além disso, o aoristo ekeruxen, em 1Pe 3.19, indica que a pregação feita por Cristo ocorreu uma única vez, em nada sugerindo uma contínua pregação no Hades.

O que diz, então, 1Pedro? Que os nekroi (mortos) são aqueles que estão mortos, mas que ouviram o evangelho quando estavam vivos. Cristo pode ser tido como competente para julgar vivos e mortos porque, assim como  ele é pregado aos vivos hoje, no passado foi pregado às pessoas que agora estão mortas, de forma que, embora pudessem, de fato, morrer na carne [como acontece com todas as pessoas], elas agora vivem, no espírito, na presença de Deus.

O purgatório, a intercessão pelos mortos e a comunhão com a Igreja Triunfante

A Escritura nada tem a dizer sobre a doutrina católica romana do purgatório. Mateus 5.22 refere-se ao Geena, assim como a prisão de Mateus 5.25. Mateus 12.32, quando diz que a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada nem neste mundo, “nem no porvir”, apenas enfatiza o caráter imperdoável do pecado contra o Espírito e não pressupõe a possibilidade de perdão no Estado Intermediário. 1Coríntios 3.12-15 menciona o fogo do juízo no futuro dia do Senhor, não havendo qualquer menção ao fogo do purgatório que purifica os crentes antes do juízo final.

Se a doutrina do purgatório é insustentável, todas as ofertas, sacrifícios e orações pelos mortos caem com ela. O Antigo e o Novo Testamento nada dizem sobre essa intercessão pelos mortos. E o que dizer sobre 1Coríntios 15.29, onde Paulo menciona aqueles que tinham sido batizados pelos mortos (huper nekron)? De plano, verifica-se que não há qualquer evidência de que essa prática existisse no tempo de Paulo ou depois dele. Tertiliano afirmou que a prática podia ser encontrada entre os seguidores de Cerinto e Marcião, mas, além de a precisão do relato está sujeita à dúvida, o certo é que, se estiver correta, apenas diz que a prática era herérica e que jamais encontrou aceitação na Igreja. Na passagem, Paulo cita os mortos como a razão do batismo pelos vivos e conclama aos que mantinham a prática ao seguinte raciocínio: “os que morreram em Cristo realmente serão ressuscitados e a essa conclusão posso chegar até mesmo a partir da prática de vocês, quando se batizam pelos mortos, porque, se não houver rerssurreição, qual seria a necessidade de se batizar pelos mortos?”

Embora não haja lugar para veneração aos santos e intercessão pelos mortos, ainda assim é preciso concluir que há uma comunhão entre a Igreja militante sobre a terra e a Igreja triunfante no céu que não pode ser rompida. Os crentes na terra, quando se convertem, vão para a Jerusalém celestial e se unem inclusive à assembleia dos primogênitos, isto é, aos santos do Antigo Testamento, como também aos espíritos dos justos, isto é, aos cristãos que já morreram (Hb 12.22-24). 

Essa comunhão, entretanto, não implica a existência de interação direta entre os membros dos seguimentos das Igrejas militante e triunfante, mas que os crentes são membros de uma santa Igreja cristã católica. Essa unidade está ancorada em Cristo, na comunhão com o mesmo Pai e na posse do mesmo Espírito. O amor que permanece une todos os crentes com Cristo e uns aos outros. Há uma esperança de reunião após o túmulo que está em harmonia com a Escritura. A alegria no céu consiste, antes de tudo, na comunhão com Cristo, mas também na comunhão dos crentes entre si. 

Conclusão

Há vida além do túmulo, a crentes e incrédulos. Vida consciente. Os incrédulos já partem para uma experiência de sofrimento, ainda que temporária. Os crentes já entram imediatamente, após a morte, no gozo celestial, para uma vida dinâmica, ativa, quando passam a um estado de perfeição quanto à alma, cessando, em relação a ela, o processo de santificação. Essa existência pós morte de crentes e incrédulos, entretanto, não é o estado final, como veremos. 

Não há espaço, conforme o ensino das Escrituras, para a doutrina católica romana do purgatório, tampouco para a intercessão pelos mortos. A Palavra de Deus menciona apenas dois destinos após a morte, não três, e afirma não haver possibilidade de comunicação nem de transferência entre os residentes de um lugar para outro. 

Por fim, existe, à toda evidência, uma comunhão entre os seguimentos das Igrejas militante e triunfante, mas que não implica em interação direta entre os respectivos grupos.

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