Nas religiões e na filosofia
Segundo as ideias inspiradas no evolucionismo, a crença na independência e na imortalidade da alma, assim como a crença em Deus, surgiu gradualmente. Fatores como o culto aos ancestrais, a afeição por parentes mortos, o amor à vida e o desejo pela sua continuação, uma esperança por condições melhores de vida após a morte, o medo da punição e a esperança por uma recompensa teriam sido a causa do surgimento gradual na crença da imortalidade.
Em oposição a essa ideia, respeitados historiadores dizem que a crença na imortalidade pode ser observada em todos os povos e é parte inclusive das religiões mais primitivas, sendo considerada até mesmo como algo natural. Mais que isso, tem sido também considerado que todos os povos tiveram por certo que os seres humanos são por natureza imortais e que a morte, não a imortalidade, é que requer uma explicação.
Não apenas na religião, a ideia da imortalidade da alma também foi defendida por meio de argumentações filosóficas (v.g., Pitágoras, Heráclito, Empédocles e Platão). Sobretudo pela influência de Platão, a Teologia dedicou mais mais atenção à imortalidade da alma do que a Escritura, tendo-a defendido mais com base na razão do que na revelação. Os Pais da Igreja, p. ex., opuseram-se à noção platônica de pré-existência da alma (isto é, do seu caráter não criado) e, às vezes, evitaram afirmar que a alma é, por natureza, imortal. Isso porque labutaram com base no fato de que somente Deus é imortal e de que a alma não pode ser imortal por sua própria vontade.
A filosofia do século XVIII, deísta na melhor das hipóteses, nutria afeição pela imortalidade. Leibniz, Wolf, Mendelssohn e outros defenderam-na por meio de provas metafísicas, teológicas, cósmicas, morais e históricas, mas Kant questionou tais provas e, na filosofia idealista de Fichte, Schellinh e Hegel não houve mais lugar para a imortalidade. O caminho para o materialismo foi, enfim, pavimentado por Richter e Feuerbach, e sustentado posteriormente por Vogt, Moleschott, Buchner, Haeckel e outros, cujos argumentos conduziram ao abandono da crença da imortalidade da alma na filosofia.
As “provas” da imortalidade da alma
Os argumentos em favor da imortalidade da alma, na esteira dos argumentos em favor da existência de Deus, não são suficientemente seguros, mas não são desprovidos de valor. Tais argumentos não são provas no sentido de não admitirem contestação, mas testemunhos e indicações de que a crença na imortalidade da alma surge com naturalidade e espontaneidade da própria natureza humana. Observemo-los com atenção:
Argumento histórico (consensus gentium)
É notável que a crença na imortalidade da alma seja encontrada em todos os povos e em todas as fases do desenvolvimento humano, tratando-se de uma convicção que não é obtida pela reflexão e pelo raciocínio, mas que precede toda a reflexão e brota espontaneamente da natureza humana como tal. Ela é autoevidente e natural, encontrada em toda a parte onde as dúvidas filosóficas não a corroeram.
Argumento ontológico
A crença na imortalidade da alma não é arbitrária nem acidental, mas um fato da natureza humana, não extraída do mundo que a cerca, mas que é estimada na pessoa por sua própria natureza. Há dentro dos seres humanos uma percepção natural de que as pessoas não morrem como os animais.
Argumento metafísico
Deduz a crença na imortalidade da alma a partir da sua própria natureza. Nessa reflexão, às vezes quer-se dizer que a alma é inviolável pela morte porque é idêntica à própria vida; outras vezes se argumenta que a alma é a unidade da consciência do eu, sendo uma entidade simples, indivisível e sem composição, razão pela qual não pode sofrer decomposição; também se pondera que a alma permanece como ela é a despeito das mudanças físicas e materiais que acontecem. Esse argumento sofre severas objeções, sobretudo quando se considera que a alma nunca é idêntica à própria vida. Somente Deus é a vida em si mesmo e somente Ele é imortal (1Tm 6.16). A alma é criada e, por isso, finita e limitada e, se continua a existir, isso se deve ao poder onipresente e onipotente de Deus.
Argumento antropológico
Parte do princípio da singularidade da vida psíquica dos seres humanos para chegar à conclusão de que neles há existência espiritual distinta dos animais e das plantas. A alma animal é orientada pera o sensível e é tão restrita ao corpo que não pode viver sem ele. Os seres humanos, por outro lado, possuem, além de percepção e observação, intelecto e razão. Em síntese, a consciência racional, moral e religiosa dos seres humanos aponta para uma existência psíquica que alcança além do visível.
Argumento moral e da retribuição
Observa a desarmonia entre a moralidade (ethos) e a natureza (phisis) e conclui pela necessidade de outro tipo de existência na qual ambas sejam reconciliadas. A noção de justiça presente na psiquê humana, implantada pelo Deus justo, exige que a balança da justiça tenha o equilíbrio restabelecido. Essa noção de justiça não se reduz a mero egoísmo, mas indica uma ânsia pela harmonia e pela revelação das perfeições divinas.
A imortalidade da alma no Antigo Testamento
Pode parecer estranho, mas a Escritura nunca menciona explicitamente a imortalidade da alma, também nunca a anuncia como uma revelação divina. Mais que isso, a Escritura nunca tenta defender sua verdade contra aqueles que a rejeitam. Isso explica em parte a razão pela qual muitos estudiosos afirmaram que a doutrina da imortalidade da alma não ocorre no Antigo Testamento e que teria sido importada por Israel. Essa noção, entretanto, foi sendo gradualmente abandonada para chagar-se à conclusão que Israel cria na imortalidade da alma, assim como todos os outros povos.
É certo, pois, afirmar que já havia uma crença popular na imortalidade da alma quando Deus se revelou a Israel. O costume do sepultamento e a importância atribuída a ele é uma prova dessa crença. A cremação não era uma prática em Israel e só ocorria após uma execução (Gn 38.24; Lv 20.14; 21.9; Js 7.15). O valor do sepultamento como algo especial pode ser visto a partir da constatação de que ficar sem sepultura era considerado uma desgraça terrível (1Sm 17.44,46; 1Rs 14.11,13; 16.4; 2Rs 9.10; Sl 79.3; Ec 6.3; Is 14.19-20; Jr 7.33; 8.1-2; 9.22; 16.6; 25.33; Ez 29.5). Além disso, como uma pessoa morta não pertence mais à terra dos vivos, seus corpos devem ser escondidos da vista, o que explica a repugnância em relação a um corpo morto exposto.
Pela morte, todas as almas entram na residência dos mortos, o Sheol, localizado nas profundezas da terra (Nm 16.30; Sl 30.3,9; 55.15; Is 38.18), nos lugares mais baixos da terra (Sl 63.9; Ez 26.20; 31.14; 32.18), abaixo das águas e dos fundamentos das montanhas (Dt 32.22; Jó 26.5; Is 14.15). Embora estreitamente associado ao túmulo (qeber) e ao abismo (bôr), não são realidades idênticas, uma vez que os mortos que não foram sepultados estão no Sheol (Gn 37.35; Nm 16.32-33). Nada obstante, o Sheol e o túmulo pertencem aos lugares inferiores da terra, são representados como a morada dos mortos e repetidamente usados de forma intercambiável.
O Sheol, enfim, é o reino dos mortos, o lugar onde todos os mortos, sem exceção, se reúnem, “a casa destinada a todo vivente” (1Rs 2.2; Jó 3.13-19; 30.23; Sl 89.48; Is 14.9-18; Ez 32.18; Hc 2.5) e do qual ninguém retorna, a não ser por um milagre (1Rs 17.22; 2Rs 4.34; 13.21). Esse reino dos mortos é totalmente oposto ao reino dos vivos (Pv 15.24; Ez 26.20; 32.23-32). Nesse reino, os mortos continuam existindo e vivendo, sendo representados na forma como se mostravam na terra, como também são conhecidos uns pelos outros e provocados por esse encontro casual (1Sm 28.14; Is 14.9-17; Ez 32.18ss). Entretanto, entre os mortos há distinção, visto que cada um se junta aos seus pais (Gn 15.15; Jz 2.10) ou ao seu povo (Gn 25.8, 17; 35.29; 49.29) e os incircuncisos são reunidos (Ez 32.19).
Em seus aspectos negativos, o Sheol é descrito em contraste com a terra dos vivos, uma região de trevas e sombra da morte (Jó 10.21-22; Sl 88.11; 143.3), uma terra de descanso, silêncio e esquecimento (Jó 3.13; 17-18; Sl 115.17), onde os mortos não participam de mais nada que acontece debaixo do sol (Ec 9.5-6, 10), onde Deus não é mais louvado (Sl 6.5; 115.17), suas virtudes não são mais proclamadas (Sl 88.5,11-12; Is 38.18-19) e suas maravilhas não são mais testemunhadas (Sl 88.10,12). Assim, “Aquilo que as pessoas geralmente consideravam uma fraqueza da religião profética de Israel [a saber, que o além tem um espaço muito pequeno nela] era, na realidade, sua força característica. O Deus vivo que se revela em atos históricos nada tem em comum com as sombras do Sheol” (Pfleiderer, citado por Bavinck). O Deus de Israel não é um Deus de mortos, mas de vivos.
Como se percebe, o Sheol não é a aniquiliação da existência e nem tampouco da autoconsciência, mas representa uma diminuição da vida. No Antigo Testamento, não há lugar para contentamento com a imortalidade da alma e a morte física era veementemente concebida como resultado do pecado, algo antinatural (Gn 2.17), diretamente relacionada ao mal, assim como a vida está para o bem (Lv 18.5; Dt 30.15,20; Pv 2.18; 5.5; 7.27; 8.35-36; 9.18; 11.19; 12.28; 13.14; 14.27; 19.23).
A partir dessa perspectiva, os piedosos da nação frequentemente contemplavam o além do túmulo e antecipavam uma vida bem-aventurada de comunhão com Deus (Gn 49.18; Jó 14.13-15; 16.16-21; 19.25-27; Sl 16.9-11; 17.15; 49.15; 73.23-26; 139.18). Sabiam que Deus estava inclusive presente no Sheol com o Espírito (Sl 139.7-8), que o Sheol está aberto diante do Senhor (Jó 26.6; 38.17; Pv 15.11), que Deus é o Senhor soberano sobre a vida e a morte, que pode fazer descer a vida ao Sheol como também tirá-la de lá (Dt 32.39; 1Sm 2.6; 2Rs 5.7), que tomou a Enoque e a Elias para si sem que passassem pela morte (Gn 5.24; 2Rs 2.11). Sabiam também que Ele pode aniquilar a morte e triunfar sobre ela completamente, ressuscitando os mortos (Jó 14.13-15; 19.25-27; Ez 37.11-12; Dn 12.2; Os 6.2; 13.14).
A imortalidade da alma no Novo Testamento
No Novo Testamento também a morte é consequência e punição pelo pecado (Rm 5.12; 6.23; 8.10; 1Co 15.21), razão pela qual se estende a todas as pessoas (1Co 15.22; Hb 9.27), salvo Enoque (Hb 11.5) e aqueles que estarão vivos na segunda vinda de Jesus Cristo (1Co 15.51-53; 1Ts 4.14-17), de sorte que Cristo será juiz de mortos e vivos (At 10.42; 2Tm 4.1; 1Pe 4.5). Entretanto, a morte não é o fim. A alma não pode ser morta (Mt 10.28) e o corpo será ressuscitado (Jo 5.28-29; At 23.6; Ap 20.12-13), momento após o qual os crentes desfrutarão de uma vida indestrutível (Jo 3.36; 11.25).
Na senda do Antigo Testamento, no Novo Testamento todos os mortos ficarão no Hades, o reino dos mortos, até a ressurreição (Mt 16.18). Mas nessa última grande porção da Escritura, a distinção existente no Hades é mais clara. Em Lucas 16.23, Lázaro é levado ao seio de Abraão e o homem rico ao Hades, onde Hades não é a mesma realidade do lugar final de tormento, uma vez que se diz do rico: “estando em tormentos”. Jesus também experimentou o estado de morte (Hades), mas não pode ser mantido ali (At 2.27, 31; cf. Ef 4.9, onde se tem, possivelmente, “desceu às regiões inferiores da terra”). Observa-se que não apenas os ímpios, mas os crentes (os que morreram em Cristo) também se encontram no Hades após a morte (1Ts 4.16; cf. 1Co 15.18,23; Fp 2.10, onde ocorre katachtonion, “debaixo da terra”).
No momento da ressurreição, a morte, o mar e o Hades entregarão todos os mortos para que sejam julgados (Ap 20.13). A expressão “ressurreição dos mortos” (isto é, do reino dos mortos, e não “da morte” – Mt 17.9; Mc 6.14; Lc 16.30; Jo 20.9; Ef 5.14 etc.) reforça a ideia de que os crentes estão no Hades.
Porém, essa localização comum, no “estado de morte”, não exclui o fato de que o quinhão dos crentes e dos incrédulos é muito diverso. Em Lucas 16, Lázaro é levado a gozar de comunhão com Abraão (Mt 8.11). Nesse “estado de morte”, o lugar dos crentes é o “paraíso” (Lc 23.43, 46; cf. Ap 2.7; 22.2), o “terceiro céu” (2Co 12.2,4), o céu (At 7.59), é “estar com Cristo” (2Co 5.8; Fp 1.23). Em Apocalipse, as almas dos mártires estão debaixo do altar do templo celestial (Ap 2.7, 10, 17, 26; 3.4-5, 12, 21; 8.3; 9.13; 14.13; 15.2; 16.17; cf. Hb 11.10, 16; 12.23).
Para os crentes, segundo o Evangelho de João, a vida eterna começa aqui (Jo 3.15-21; 5.24), que já desfrutam uma comunhão com Cristo que não pode ser quebrada nem por sua partida (Jo 12.32; 14.23), nem pela morte (Jo 11.25-26). Um dia, essa comunhão será completa de modo que ficarão com Ele eternamente (Jo 6.39; 8.38-39; 14.3, 8, 19; 16.16; 17.24; cf. Rm 8.10; 1Ts 5.10).
Assim como imediatamente após a morte os crentes desfrutam de um estado temporário de bênçãos com Cristo no céu, assim também os incrédulos entram em um lugar de tormento (Lc 16.23; Jo 3.18,36; Hb 9.27), onde são mantidos em prisão (1Pe 3.19) ou no abismo (Lc 8.31). Mas esse lugar de tormento ainda não corresponde ao Geena ou “lago de fogo”, lugar de fogo inextinguível e eterno preparado para o Diabo e seus anjos (Mt 18.8; 25.41,46; Mc 9.43, 47-48; Ap 19.20; 20.10; 21.8; cf. 1Pe 2.17; Jd 13).
A diferença entre os estados dos ímpios e dos crentes não conflita com o fato de que uns e outros estão no Hades. Antes da ressurreição, todos pertencem ao reino dos mortos e somente por meio da ressurreição os crentes serão completamente libertos, corpo e alma, do domínio da morte (1Co 15.52-55; Ap 20.13).
Conclusão
Tanto no Antigo como no Novo Testamento a noção da imortalidade da alma está presente, embora não haja uma defesa explícita da ideia. O fato é pressuposto e visto como algo natural. A morte é que se interpõe como fenômeno antinatural, como consequência e punição pelo pecado.
Após a morte, todos seguem ao Sheol/Hades, ao reino dos mortos ou ao estado de morte, onde vivem os crentes e os incrédulos. O quinhão de uns e de outros é mais explicitamente diferenciado no Novo Testamento, onde se observa com mais clareza que, com a morte, os crentes já entram em um estado de bem-aventurança e os ímpios em um estado de tormento, ambos provisórios. Mas isso nos leva ao tema que será mais detalhadamente explorado no próximo estudo, o Estado Intermediário.