O surgimento do purgatório na História da Igreja
Os Pais Apostólicos não esboçaram uma doutrina a respeito do Estado Intermediário. O ebionismo foi propenso ao milenarismo para corroborar os privilégios nacionais de Israel, enquanto o gnosticismo rejeitou totalmente a escatologia cristã e só alimentou a expectativa da libertação do espírito da prisão da matéria e sua admissão ao pleroma divino após a morte.
Irineu, Hipólito, Tertuliano, Novaciano, Comodiano, Vitorino, Ambrósio, Cirilo e Agostinho opinavam pela existência de vários “receptáculos” no Hades, onde os mortos esperam o último dia. Mas em Irineu, Tertuliano e outros os mártires entravam no céu imediatamente após a morte. Nesse sentido, a descida de Cristo ao Hades foi interpretada como significando uma ação libertadora que removeu os crentes do Antigo Testamento do limbo dos pais (limbus patrum) e os transportou ao céu. O Hades foi sendo gradativamente despovoado também com base na ideia de obras meritórias: os crentes que tinham se dedicado a Deus de forma especial também passaram a ser vistos como merecedores do gozo imediato da bem-aventurança.
O resultado é que somente os incrédulos permaneceram no Hades, conforme o imaginário da Igreja antiga, e o efeito desse pensamento foi fazer o Hades corresponder a um lugar de punição, equivalente à Geena e ao Tártaro. Quanto aos cristãos, somente aqueles que não progrediram suficientemente na santificação deveriam, imediatamente após a morte, passar algum tempo no Hades, para somente então entrar na glória do céu.
Ao longo da Idade Média, as ideias iniciais a respeito do Hades se transmutaram no dogma do purgatório. Orígenes desenvolveu a ideia de purificação pelo fogo. Nessa linha, mais tarde, os teólogos gregos passaram a defender que as almas de muitos mortos teriam de sofrer dores e só poderiam ser livres delas após a intercessão e pelo sacrifício dos vivos, mas somente a partir do Concílio de Florença (1439) concederam ao ensino ocidental quanto a um fogo purificador especial.
Foi no Ocidente que o fogo purificador de Orígenes foi transferido do juízo final para o Estado Intermediário (vide Agostinho). César de Arles e Gregório o Grande desenvolveram a ideia de que os pecados veniais poderiam ser expiados aqui e no porvir. Foi esse ensino, combinado com a prática eclesiástica de se fazer intercessões e sacrifícios pelos mortos (já relatada por Tertuliano), que gerou o dogma completo do purgatório.
O purgatório foi extensamente desenvolvido pela escolástica e transformado em uma doutrina da Igreja nos Concílios de Florença (1439) e Trento (1545-63). Segundo a doutrina do purgatório, as almas dos condenados entram imediatamente no inferno (Geena, abismo), onde são atormentadas por fogo inextinguível e eterno. As almas daqueles que após o batismo não são manchadas pelo pecado, ou que são purificadas aqui na terra, são imediatamente conduzidas ao céu. Por meio da descida de Cristo ao inferno, também as almas dos santos que morreram antes dessa época são transferidas do limbo dos pais (o seio de Abraão) para o céu. As crianças que morrem sem o batismo são enviadas às regiões inferiores (o limbus infantum), onde sofrem apenas uma “punição eterna de condenação” (aeterna poena damni), mas não uma punição físifica (poena sensa).
Entretranto, aqueles que cometeram pecados veniais após o batismo e não foram capazes de pagar a punição temporal apropriada nesta vida, não são nem suficientemente puros para serem imediatamente admitidos no céu, nem suficientemente impuros para serem irremediavelmente condenados. Eles vão para um lugar entre o céu e o inferno, para afastar os obstáculos que estão no caminho da entrada ao céu. O purgatório, portanto, não é um lugar de arrependimento, de prova ou de santificação, mas de punição, onde o fogo (isto é, o sofrimento) serve para causar impacto purificador nas “pobres almas”. Para ajudar essas almas, a Igreja pode fazê-lo por meio de intercessões, sacrifícios da missa, boas obras e indulgências. Para o imaginário Católico Romano, o purgatório é lugar superpovoado: a regra é que, com poucas exceções, como os mártires e os santos, a grande maioria dos fieis vai para lá.
O sono da alma
Seguindo alguns escritores cristãos antigos, os socinianos ensinavam que assim como os corpos retornam à terra, assim também as almas retornam para Deus e, ali, até a ressurreição, levam uma existência sem percepção ou pensamento, prazer ou desconforto.
Essa noção está diretamente relacionada à doutrina do sono da alma, que já hava sido defendida por certos hereges e pelos anabatistas, tendo encontrado aceitação novamente no século XVIII. Segundo esse pensamento, as almas, depois de separadas dos seus corpos, só capazes de viver uma existência adormecida.
Tudo parece sugerir que, após a morte, a alma fica em um estado adormecido e inconsciente, sobretudo pela dependência que possui dos sentidos para apreender o mundo exterior e pelo fato de a morte representar um rompimento absoluto com o presente. A doutrina do sono da alma parace ser também favorecida pelas Escrituras. O Antigo e o Novo Testamento se referem à morte como um sono (Dt 31.16; Jr 51.39,57; Dn 12.2; Mt 9.24; Jo 11.11; 1Co 7.39; 11.30; 15.6, 18, 20, 51; 1Ts 4.13-15; 2Pe 3.4 etc.). Além disso, Jesus fala sobre a noite da morte, na qual ninguém pode trabalhar (Jo 9.4), e as Escrituras não mencionam que aqueles que, como Lázaro e outros, retornaram da mortos, tenham relatado a respeito do que viram ou ouviram no Estado Intermediário.
Esses argumentos, entretanto, não são suficientemente convincentes para estabelecerem o psiocopaniquismo, pelas razões a seguir destacadas.
Em primeiro lugar, a dependência que a alma tem do corpo não exclui, necessariamente, sua independência. Não pode ser provado que a vida psíquica tem sua fonte e origem em fenômenos físicos. O pensar e o saber são atividades da alma. Não é o ouvido que ouve e o olho que vê, mas o “eu” psuíquico de um ser humano que ouve por meio do ouvido e vê por meio do olho. Não há, portanto, nenhuma evidência que estabeleça que a alma não pode continuar suas atividades sem o corpo. Se esse fosse o caso, que não há vida consciente no espírito sem o corpo, ter-se-ia que admitir que consciência e vontade seriam impossíveis para Deus e os anjos, postos que são espíritos.
Em segundo lugar, as Escrituras ensinam que a morte é o rompimento total em relação à vida terrena e, nesse sentido, é um sono, um descanso, um silenciar-se. A pessoa morta dorme porque a interação com este mundo termina. Mas nunca as Escrituras dizem que a alma dos mortos dorme, embora sempre apontem à continuidade de uma vida cosciente (Lc 16.26; Jo 11.25-26; Lc 23.43; At 7.59; 2Co 5.8; Fp 1.23; Ap 6.9; 7.9-10). O crente no corpo ainda está distante do Senhor e a Escritura indica a morte como o caminho para uma comunhão mais estreita com Cristo, não para uma comunhão inferior ou para a cessação de uma comunhão consciente.
Em terceiro lugar, é possível que aqueles que voltaram à vida terrena após morrerem não tenham sido autorizados a relatarem o que viram e ouviram, ou mesmo que não tenham sido capazes de fazê-lo. Moisés e os profetas são suficientes para nós (Lc 16.29; cf. 2Co 12.4).
Contato com os vivos?
É antigo o pensamento segundo o qual as almas dos mortos mantêm alguma espécie de contato com a vida na terra, ideia que pode ser encontrada entre judeus, no Budismo e no Islamismo. Essa noção penetrou no culto cristão já no século II, a partir de quando os mártires da Igreja passaram a ser ovjeto de veneração religiosa. Depois do século IV, a veneração a Maria, aos anjos, patriarcas, profetas e mártires passou a incluir bispos, monges, eremitas, virgens e uma variedade de santos, suas relíquias e imagens. Mas a Igreja Católica insiste que há diversidade nessa veneração: a adoração (latria) é devida somente a Deus, Maria recebe a adoração “hyperdulia” e, os santos, a veneração (dulia).
Com efeito, práticas supersticiosas estão presentes em todos os povos, inclusive naqueles com os quais Israel manteve contato (Gn 41.8; Êx 7.11; Dt 18.9,14; Dn 1.20; 2.2). Essas práticas também foram introduzidas e floresceram em Israel (1Sm 28.9; 2Rs 21.6; Is 2.6), dentre as quais a consulta aos mortos, e os que a praticavam eram chamados de médiuns (obôt; 1Sm 28.5,9; 2Rs 21.6; 2Cr 33.6; na LXX: engastrimuthos, “ventríloco”) e adivinhos (yiddeon’m; Lv 19.31; 20.6, 27). Acreditava-se que o espírito que habita uma pessoa (ôb; cf. Lv 20.27; 1Sm 28.7-8) e que é consultado por alguém (1Sm 28.8), pode ser trazido dos mortos (1Sm 28.9), para, supostamente, anunciar oráculos (Is 8.19; 19.3; 29.4; Dt 18.11).
No entanto, a Lei e os Profetas se opuseram a essa prática e chamaram o povo de volta à revelação (Ex 22.18; Lv 19.26, 31; 20.6, 27; Dt 18.11; 1Sm 28.9; Is 8.19; 47.9-15; Jr 27.9; 29.8; Mq 3.7; 5.12; Na 3.4; Ml 3.5), noção corroborada no Novo Testamento (Lc 16.29; At 8.9ss; 19.13-20; Gl 5.20; Ef 5.11; Ap 9.21; 21.8; 22.15). Em nenhum lugar as Escrituras flertam com a possibilidade da invocação dos mortos, trazê-los de volta ou fazê-los aparecer. O relato do monte da transfiguração foi um feito exclusivamenre divino, sem nenhuma mediação humana (Mt 17; Mc 9; Lc 9).
Em 1Samuel 28, também há uma aparição real e objetiva do profeta. Saul não vê Samuel (v. 14). O horror da mulher está mais relacionado ao fato de ela ter reconhecido Saul (v. 12). Saul é que dá à mulher a impressão de que Samuel surgiu da terra e apareceu, e somente então esse espírito fala a Saul por meio da mulher (v. 13).
Na realidade, toda a Escritura parte da compreensão de que a morte representa um rompimento total com a vida terrena (Ec 9.5-6, 10; Jó 14.21). Em nenhum lugar há sinal de que os mortos estejam em contato com os vivos. Aqueles pertencem a outro reino, separado da terra. Tampouco Hebreus 12.1 ensina que os mártires nos veem e cuidam de nós em nossas lutas, mas que são testemunhas de fé que servem para nos encorajar. Não há lugar para invocação e veneração de santos, posto que as Escrituras nunca mencionam que os crentes fazem pedidos aos mortos para que intercedam por eles. É notório também que anjos e homens se recusam a receber a veneração religiosa que é devida somente a Deus (Dt 6.3; 10.20; Mt 4.10; At 14.10ss; Cl 2.18-19; Ap 19.10; 22.9).
Não há como demonstrar, a partir das Escrituras, que os santos que morreram podem conhecer nossas orações e, portanto, interceder a Deus por nós. Teólogos católicos romanos têm proposto meras conjecturas: que nossas orações são comunicadas a eles pelos anjos; ou que os santos são como os anjos, que podem viajar em velocidades miraculosas, de onde se infere que possuem, em certo sentido, uma onipresença; ou que os santos são informados pelo próprio Deus; ou que não sabem tudo, mas têm uma ideia geral das nossas necessidades.
Por outro lado, embora não haja nada estranho na ideia de que os anjos e os bem-aventurados, apesar de não terem qualquer contato com o mundo dos vivos, fazem intercessões pelas pessoas que estão na terra, a Escritura nunca pronuncia uma única palavra sobre essa intercessão.
Conclusão
Adentramos no grande tema relacionado ao Estado Intermediário, mas, por ora, discutimos apenas sobre o estado de (in)consciência das almas dos que morreram (quando tratamos da doutrina do sono da alma) e sobre a (im)possibilidade de contato dos mortos com os vivos. Estamos prontos, pois, para seguirmos nossa abordagem da Escatologia Bíblica e verificarmos o que as Escrituras ensinam sobre a condição de vida e as relações travadas na existência após a morte. É o faremos no próximo estudo.
1 Bavinck aborda no quinto tópico do Capítulo 13 do Volume 4 o tema da “corporeidade intermediária” (p. 624-626), negando essa possibilidade: “Conhecemos apenas espírito e matéria. Uma “corporeidade imaterial” é uma contradição que foi desafortunadamente assimilada da teosofia na teologia cristã e tenta, em vão, conciliar o falso dualismo entre espírito e matéria, tese e antítese”.