A Escatologia é o ramo da Teologia Sistemática que se debruça sobre as Escrituras Sagradas para estudar o que diz a revelação divina sobre os últimos acontecimentos da história humana em particular e da criação em geral.
A disciplina é estudada sob dois enfoques: a Escatologia Individual e a Escatologia Geral. Pela primeira, quer-se conhecer o que acontece com o homem após a morte, o que explica seu interesse na imortalidade da alma e no estado intermediário. Pela última, o olhar se volta para toda a humanidade e discute temas como a segunda vinda de Cristo e os sinais da sua vinda, a ressurreição dos corpos e o juízo final e o estado eterno. É no contexto desse último aspecto da Escatologia que são enfrentadas também as perspectivas milenaristas e o futuro do Israel étnico no plano de Deus.
A primeira colocação a ser feita sobre a nossa disciplina é que a Bíblia é escatológica desde o início. Deus planejou o fim desde o começo (Gn 1.1). Uma expectativa em relação ao futuro está presente desde o livro de Gênesis, pelo menos a partir de Gênesis 3.15.
Em Gênesis se diz que um povo seria instrumento da justiça de Deus contra os amorreus (Gn 15.16). Nesse cenário, o livro ensina sobre Deus e sobre a inimizade estabelecida pelo Senhor em Gênesis 3.15. O contexto maior, portanto, é a inimizade entre reinos tipificada nos relacionamentos de Israel com Egito e Canaã. Nesse cenário de inimizade surge a esperança messiânica, a partir da passagem denominada de “a promessa mãe” e “proto-evangelho” (Gn 3.15).
À luz dessa passagem, observa-se que a primeira promessa do Messias está na imagem do “descendente da mulher”, o que gera a expectativa nas mulheres de Israel de que gerariam o Messias e, no povo, no sentido de que Deus restauraria todas as coisas por meio do descendente prometido (cf. 1Sm 1.11).
A essa mensagem Adão reage manifestando esperança e fé, ao renomear a mulher de “Eva” (Gn 3.20). Eva também manifesta sua fé no contexto do conflito (Gn 4.1, 25). Observa-se também que, em Gênesis 2.15 e 3.23, a ideia de cultivar e lavrar a terra permanece, só que, após a Queda, fora do jardim. As pessoas expulsas do jardim eram pessoas redimidas, de posse da promessa messiânica escatológica de que o descendente prometido da mulher reverteria o mal causado pelo pecado, instrumento de Satanás e, por isso, seriam uma lâmpada ao mundo.
A Escatologia, registre-se, não serve à satisfação da curiosidade quanto ao futuro. Não tem por objetivo antecipar datas, nem relacionar antigas profecias com os acontecimentos noticiados nos jornais. Lamentavelmente, com base nesses “interesses escatológicos”, a palavra “apocalipse” ganha conotação de destruição e catástrofes naturais e posições escatológicas passam a ser defendidas como um torcedor que torce pelo seu time, com todo o elemento emocional que isso envolve. Não é com esse interesse que nos voltaremos à nossa disciplina porque, na realidade, existem boas razões para que a estudemos, o que passo a destacar.
Veremos ao longo dos estudos que a Escatologia é uma força transformadora do presente. Para os cristãos, Escatologia deve ser sinônimo de esperança (Ap 21.4) e, ao mesmo tempo, deve trazer sentido ao presente e à nossa existência terrena. Assim, Escatologia tem a ver com o presente, conforme pretendemos demonstrar.
Esperança e alegria
Nesse sentido, vale a menção à 1Pedro, que lida basicamente sobre como o passado e o futuro alimentam a esperança e a alegria presente. O cristão é, ao mesmo tempo, eleito e forasteiro (1.1,2). É possível exultar no tempo presente, apesar das provações, com base na esperança (1.3-6). Escatologia é o futuro alimentando o presente, mas, além disso, essa esperança é o poder transformador do presente. Quando bem entendida, a Escatologia é uma fonte de vida, de força, de ânimo, porque a esperança é uma força que impacta o presente. O “fim” não é, pois, um conceito esperado, é uma anergia que influencia o presente.
O fim já começou: o reino inaugurado, mas não consumado
Além disso, os tempos escatológicos já começaram. No Evangelho de Marcos, a primeira declaração de Jesus aparece em 1.15: “o tempo é cumprido (peplerotai ho kairós) e o reino de Deus está próximo” (cf. Gl 4.4). Isso quer dizer que a Escatologia está inaugurada. Mas há uma certa ambiguidade, porque embora o reino já estivesse presente, não estava consumado. O Rei estava presente, mas não havia sido ainda coroado.
Com efeito, o reino de Deus sempre esteve presente porque a criação é parte do reino “cósmico” de Deus. Deus é o Senhor de todas as coisas como Criador. Nesse sentido, o reino não precisa ser estabelecido. Deus permanece o Rei eterno como Criador (Ap 4).
Mas quando o Novo Testamento se refere ao reino de Deus, seu olhar está voltado à manifestação específica do reino “escatológico” de Deus na pessoa de Jesus, fazendo frente ao império parasita e retomando aquilo que pertence a Deus (Cl 1.13) em um processo de reconquista.
O reino “escatológico” de Deus veio para reconquistar aquilo que tinha sido perdido pela entrada do pecado no mundo. Jesus Cristo veio para triunfar sobre todos os demais reinos e poderes deste mundo. Esse reino escatológico, redentivo, jurídico, já veio e continuará a crescer até (re)tomar todas as coisas, até que o império parasita seja extirpado de toda a criação. Jesus é a encarnação do reino. Sua presença é o reino de Deus. Com a sua vinda, o reino foi inaugurado e será consumado na segunda vinda de Cristo.
Nessa perspectiva, o reino escatológico foi oficialmente inaugurado na primeira vinda de Cristo – nascimento, morte, ressurreição e ascensão (Ap 5), momento a partir do qual convém que Ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos seus pés (1Co 15.28).
Que o reino é presente e futuro, Lucas 17.20-25 o diz. Jesus responde ao “quando” (“Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus”) com o “como” (“não com aparência visível”; “o reino de Deus está dentro de vós”, entre os discípulos). Mas embora o reino já esteja aqui, “dentro de vocês”, uma segunda vinda aponta à consumação futura do reino. O reino presente é invisível (“Não vem o reino de Deus com visível aparência”); o futuro, visível (“porque assim como o relâmpago, fuzilando, brilha de uma à outra extremidade do céu, assim será, no seu dia, o Filho do Homem”). O reino de Deus opera de dentro para fora, do interior para o exterior, transformando o presente. A vinda futura do reino é amplamente visível, externa. O reino presente vem gradualmente (Mt 13.33); o futuro, catastroficamente, “como o relâmpago”. Observe-se que se pode afirmar que o fim transforma o presente. O reino presente transforma os crentes; o reino futuro transforma o mundo. Essas visões dos aspectos presente e futuro do reino se retroalimentam.
O poder do Espírito na escatologia inaugurada
O Pentecostes capacitou a Igreja a viver nesse novo cenário, de Escatologia inaugurada (At 1.8), e foi predito por Cristo como o cumprimento da promessa escatológica do Antigo Testamento (At 1.4, 5). Pedro entendeu que aquele era o começo do fim, era o início de um tempo escatológico (At 2.16-18).
O começo dos últimos dias, portanto, ocorreu na primeira vinda de Jesus. A partir do Pentecostes, Deus criou um reino de sacerdotes e profetas (1Pe 2.9; Ap 1.6; 19.10), por meio de quem compartilha as virtudes do Rei ao mundo.
Portanto, os últimos dias começaram. Falta o último dia dos últimos dias (1Pe 1.18-20; 1Co 10.11). Se alguém está em Cristo, é nova criação (2Co 5.17; Is 43.16-19; Jo 3.3; Tt 3.5; 1Pe 1.23). A velha ordem já passou (Rm 5.14,15). Agora já reinamos em vida (Rm 5.17), como resultado direto da vitória de Cristo sobre a morte, com impacto inclusive na forma de adoração da Igreja (Jo 4.19-26).
Sigamos, pois, em nossos Estudos de Escatologia, certos de que a presente investigação não pretende descobrir enigmas ocultos, nem desvendar os mistérios reservados aos arcanos de Deus, mas poderá encher nosso presente de alegria, fé e esperança, à medida em que nos compreendemos a nós mesmos como parte de uma Escatologia inaugurada e que segue sem qualquer obstáculo à consumação.
Registro minha dívida especial para com Herman Bavinck, notadamente com a Parte 3 (O Espírito Faz Novas Todas as Coisas) do Volume 4 da sua “Dogmática Reformada”, obra essencial lançada pela Editora Cultura Cristã e que deve estar na biblioteca dos estudiosos da Teologia Reformada. As outras referências bibliográficas serão mencionadas in loco, sem o rigor das regras que orientam trabalhos científicos.
Soli Deo Gloria.
Belém do Pará, julho de 2025.