Introdução
Já temos percebido que o modelo divino de tomar um povo santo para si ocorreu, no Antigo Testamento, por meio de famílias discipuladoras. A revelação foi dada a famílias (“a nós e a nossos filhos”) e deveria ser ensinada de uma geração a outra (“tu as inculcarás a teus filhos”). O caráter corporativo do modelo é evidente.
Por outro lado, afirmamos também que a face comunitária deveria ser sopesada com a responsabilidade individual, sendo certo que a geração meramente natural não garantia necessariamente a geração espiritual (“O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito”).
A promessão da reunificação do povo de Deus
Na dispensação da nova aliança não é diferente. Cada indivíduo deverá responder pessoalmente ao evangelho por meio da fé pessoal no Salvador poderoso, mas permanece o fato que Deus continua lidando com um povo constituído de pequenas igrejas que, por sua vez, nada mais são do que um corpo consistente de unidades familiares.
Nesse sentido, os profetas predisseram a nova aliança como a reunificação do povo de Deus: “firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá… esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias…” (Jr 31.31, 33, com grifos). A nova aliança promete a reunificação de todo o povo de Deus: “Naqueles dias, naquele tempo, diz o Senhor, voltarão os filhos de Israel, eles e os filhos de Judá juntamente; andando e chorando, virão e buscarão ao Senhor, seu Deus” (Jr 50.4, grifei).
A inclusão dos gentios
O Novo Testamento, todavia, amplia esse povo de Deus beneficiário do novo pacto para incluir os gentios: “Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor” (Jo 10.16, com grifo). Paulo escreve sobre esse aspecto da nova aliança como um mistério outrora oculto, mas agora revelado, qual seja, “que os gentios são coherdeiros, membros do mesmo corpo e coparticipantes da promessa em Cristo” (Ef 3.2-6).
É notável, semelhantemente, a forma como o apóstolo João entendeu a declaração de Caifás sobre a morte de um homem pela nação: “Caifás, porém, um dentre eles, sumo sacerdote naquele ano, advertiu-os, dizendo: Vós nada sabeis, nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo e que não venha a perecer toda a nação. Ora, ele não disse isto de si mesmo; mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus estava para morrer pela nação e não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus, que andam dispersos” (Jo 11.49-52, com grifo).
Para João, a declaração de Caifás foi uma profecia e, na interpretação do apóstolo, reaparecem o aspecto corporativo do povo de Deus (“profetizou que Jesus estava para morrer pela nação”) e a inclusão dos gentios no povo de Deus (“e não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos de Deus, que andam dispersos”). Eis, pois, a novidade extraordinária do Novo Testamento: que Deus, sem abandonar o modelo de lidar com famílias e pequenas comunidades, inclui os gentios no povo da aliança.
A ideia é corroborada em Atos 2.39: “Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar”. Há de se concluir que quando os judeus ouviram Pedro dizer que a promessa é “para vós” e “para vossos filhos”, eles perceberam que Deus não havia desistido de lidar com famílias a partir das quais retiraria para si um povo santo. A novidade esteve na parte final da fala (“para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar”), que claramente se refere ao chamado dos judeus da diáspora e daqueles que não eram parte do Israel étnico, dos gentios.
Tu e tua casa
Outras situações particulares mencionadas no Novo Testamento recordam claramente o antigo modelo divino de lidar com famílias e de incluí-las no contexto do povo da nova aliança, conquanto se mantenha a necessidade de apropriação de Jesus Cristo pela fé individual.
O caso do carcereiro de Filipos, tratado em Atos 16.31-34, é digno de atenção: ele deveria crer para ser salvo – “tu e tua casa” (v. 31); Paulo pregou a Palavra de Deus a ele “e a todos da sua casa” (v. 32); o carcereiro foi batizado “e todos os seus” (v. 33); e todos se alegraram por terem crido (v. 34). Note-se que o Salvador é oferecido ao carcereiro e a toda a sua casa, mas que, por outro lado, cada membro da família deve percorrer o mesmo caminho e nesta ordem: ouvir a Palavra, crer em Jesus e ser batizado. A fé do carcereiro não tornou cristã no sentido estrito, de maneira automática, toda a sua casa.
Veja-se também o que Lucas disse sobre Crispo, o principal da Sinagoga de Corinto: ele “creu no Senhor, com toda a sua casa” (At 18.8). Em 1Coríntios 1.16, Paulo diz que batizou a “casa de Estéfanas”.
Mas há distinções
Digno de nota, por fim, é a diferença entre os sinais da antiga e da nova aliança. Na antiga, Deus instituiu a circuncisão como o selo da aliança (Gn 17.1-14). Tão próximo estava o sinal da coisa significada que o próprio sinal foi chamado de “minha aliança” (v. 9). O sinal da aliança consistia na circuncisão do macho ao oitavo dia de nascido (v. 10-12), para sinalizar que Deus garantiria certas bênçãos transitórias aos descendentes naturais de Abraão (v. 6-8), não que toda a descendência étnica do patriarca corresponderia necessariamente ao povo eleito de Deus para receber as bênçãos da vida eterna (cf. Rm 9.6, 7).
Na nova aliança, por sua vez, não há exatamente bênçãos terrenas garantidas por meio de um pacto. Jesus prometeu aos seus discípulos pouco mais que o necessário para viver dignamente (Mt 6.25-34) e advertiu que no mundo sofreriam aflições (Jo 16.33). Ao povo da nova aliança é assegurada a posse da vida eterna em Jesus Cristo, cujos sinal e selo são o batismo. Não há, por isso, segundo pensamos, um sinal correspondente na nova aliança a ser aplicado a crianças recém-nascidas, filhas dos crentes, mas o batismo a ser ministrado aos crentes, a homens e mulheres que depositam fé pessoal no Salvador (At 8.12, 38; 9.18).
É verdade que há um paralelismo entre o batismo e a circuncisão, na medida em que ambos os ritos foram designados por Deus para sinalizar certas promessas ao seu povo em períodos distintos da história. Não se pode esquecer, todavia, a assimetria estabelecida no Novo Testamento, segundo a qual a circuncisão é tratada como uma figura da regeneração e, o batismo, como sinal da nova aliança, aplicado àqueles que receberam “a circuncisão de Cristo”: “Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo, tendo sido sepultados, juntamente com ele, no batismo, no qual igualmente fostes ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os mortos” (Cl 2.11, 12; cf. Gl 6.15; Fp 3.2, 3).
Note-se que o “batismo” e a “circuncisão de Cristo” se relacionam como o sinal e a coisa significada, de modo que Paulo pode dizer que ao serem batizados (o sinal) os crentes foram circuncidados (a realidade sinalizada), isto é, que o “batismo” indica que a “circuncisão de Cristo” ocorreu. O batismo, pois, como sinal da nova aliança, indica que o batizando foi regenerado e é, portanto, membro do povo do pacto.
Conclusão
A partir do que foi dito, é possível chegarmos às seguintes conclusões:
- Primeiro, o sinal da circuncisão estabelecia que bênçãos transitórias (assim como a maldição da lei) alcançavam a descendência do patriarca Abraão, só por esse fato, razão pela qual era aplicado a todo o macho recém-nascido;
- Segundo, que Deus continua lidando com famílias na nova aliança e que o aspecto corporativo do Antigo Testamento não foi abandonado, razão pela qual os crentes da nova aliança têm razões robustas para nutrir a firme expectativa de que seus filhos são ou se tornarão filhos de Deus;
- Terceiro, que isso não significa, como no Antigo Testamento não significava, que filhos de crentes são, por esse fato, crentes, como se houvesse uma promessa a garantir que os nossos filhos todos sejam ou venham a ser necessariamente filhos de Deus;
- Quarto, o sinal da nova aliança é o batismo, que indica que houve “a circuncisão de Cristo”, a ser aplicado aos crentes professantes.