Introdução
Calvino defendeu a Igreja como objeto de fé, “no sentido de que creiamos que toda a multidão de cristãos se faz una pelo bem da fé, e se reúne formando um povo, cujo príncipe e comandante é o Senhor Jesus; igualmente se une num corpo, cuja cabeça é Cristo” (Ef 1; Gl 4.1-6). Com isso, julgou válida a expressão “Creio no Espírito Santo, na santa Igreja Católica”, aduzindo que não é apenas adequado falar “creio na igreja”. Mais que isso. É necessário crer na Igreja, visto que é ela que nos concebe e nos nutre como uma mãe a seus filhos, sendo mesmo a mãe de todos nós (Gl 4.26).
Por outro lado, para o reformador, há motivos para dizermos “creio a igreja”, expressão acatada por Cipriano e Agostinho, que rejeitaram, julgando-a inadequada, a cláusula “creio na igreja”, ao argumento de que quando afirmamos que “cremos em Deus” estamos a dizer que o nosso coração se firma nele, coisa inadequada a ser dita com relação à Igreja. É a alternativa aceita por este escritor.
Ademais, a opção aqui abraçada lembra que aquilo que dissemos sobre as operações do Espírito Santo na graça especial, no estudo anterior, não encerra a obra dessa pessoa bendita da Trindade. Há mais, muito mais, uma vez que o Espírito faz avançar em cada crente genuíno a imagem da perfeita humanidade de Jesus Cristo no contexto de uma corporação internacional de todos os legítimos discípulos do Senhor e, especificamente, de uma comunidade de fé. O Espírito Santo não apenas santifica os cristãos, individualmente considerados. Ele os torna uma unidade orgânica universal que se manifesta nos pequenos rebanhos espraiados por toda a terra.
A Igreja no Antigo e Novo Testamento
Se por “Igreja” entendermos a reunião dos salvos pela graça mediante a fé no evangelho, é certo afirmarmos que ela nasceu no Jardim que Deus plantou no Éden. Após a queda, Adão e Eva ouviram e creram (?) no proto-evangelho (Gn 3.15). Ao longo dos séculos, entretanto, a Igreja foi assumindo formas variadas até alcançar a sua plenitude no Novo Testamento.
No Antigo Testamento, o nome do Senhor começou a ser invocado pelos setitas (Gn 4.26). No período patriarcal, as famílias dos crentes eram comunidades religiosas lideradas pelos pais, que atuavam como sacerdotes (Jó 1.5), até que Deus chamou a Abraão (Gn 12.1-3), através de quem separou para si um povo-nação, que assim permaneceu por séculos. A Igreja, na maior porção da narrativa do Antigo Testamento, foi ao mesmo tempo uma comunidade religiosa e nacional.
Ali, duas palavras foram utilizadas para designar Israel como Igreja: “kahal”, que significa “chamar” e designava a reunião do povo; e “edhah”, que “denota sociedade propriamente dita, formada pelos filhos de Israel ou por seus chefes representativos, reunidos ou não” (Berkhof). A expressão “kahal edhah” ocorre com a tradução “ajuntamento da congregação” (Ex 12.6). Em Deuteronômio, por exemplo, “kahal” significa “toda a congregação reunida para completar a aliança do Sinai (Dt 9.10; 10.4). Aqui, a palavra representa o povo que Javé convocou, e que se obriga a observar as regras que Ele deu” (L. Coenen, in Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento). “Edhah” ocorre pela primeira vez em Êxodo 12.3 e, segundo Coenen, expressa o conceito de “unidade da comunhão”.
No Novo Testamento, as palavras usadas são “synagoge” e “ekklesia”. O vocábulo “synagoge” (sinagoga) ficou restrito aos encontros religiosos dos judeus e ao lugar onde esses encontros ocorriam (Mt 4.23; At 13.43; Ap 2.3; 3.9). É somente em Tiago 2.2 que a palavra é usada para descrever a reunião dos seguidores de Jesus. O termo “ekklesia” é o que predominantemente designa a Igreja no Novo Testamento. A palavra é formada pela preposição “ek” (para fora) associada ao verbo “kaleo” (chamar ou convocar) e, além do uso que nos interessa nesse passo, há algumas ocorrências em que ela se refere às assembleias civis populares (At 7.38; 19.32,39,41).
Para designar a Igreja, Jesus Cristo foi o primeiro a fazer uso da palavra “ekklesia” (Mt 16.18; 18.17), no que foi seguido pelos escritores do Novo Testamento. Portanto, o vocábulo designa um círculo de crentes congregados em uma casa particular – uma igreja local (Rm 16.23; Cl 4.15; Fm 2), os crentes de uma localidade definida, congregados (At 11.26; 1Co 11.18; 14.19,28,35) ou não (At 5.11; 1Co 16.1), e um grupo de igrejas locais de certa região ou regiões (At 9.31; Fp 3.6). A palavra também é usada para se referir a todos os crentes do mundo inteiro (1Co 10.32; 12.28) e ao conjunto de todos os eleitos na terra e no céu que estão e estarão unidos a Cristo (Ef 1.22; 3.10,21; 5.23-25,27,32; Cl 1.18,24).
A santa Igreja católica
O Credo dos Apóstolos traz a confissão de que a Igreja é una, santa e católica. A Igreja é, noutro dizer, uma realidade santa e universal que existe na unidade de todos os que estão “em Cristo”.
Quanto à unidade, é importante sublinhar que há apenas uma Igreja, razão pela qual ela é descrita como “corpo”, “noiva” e “plenitude” de Cristo (Ef 1.22,23; 5.24-30; 1Co 12.12-31). A princípio, essa unidade é espiritual e se refere à unidade dos crentes entre si no corpo místico de Cristo, do qual ele é a cabeça. Mas, tal unidade que a priori é interior se expande e ganha expressão visível na “comunhão dos santos” (Ef 4.4-16).
Por outro lado, deve-se acrescentar que a única Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo se manifesta na pluralidade das igrejas locais, sendo cada uma delas “um microcosmo, uma especializada localização no corpo universal da Igreja”, como afirmou M. Porto Filho. Para esse ministro congregacional, as igrejas locais “não são unidades que, somadas, formam a Unidade Maior, mas pontos em que a Igreja se manifesta em Sua plenitude de significado, natureza e missão (1Co 1.2; 1Ts 1.1)”. Nesse sentido, o Dr. Herman Bavinck anotou que “cada igreja local é o povo de Deus, o corpo de Cristo, edificada sobre o fundamento de Cristo (1Co 3.11,16; 12.27), porque nessa localidade ela é a mesma coisa que a Igreja é em sua inteireza, e Cristo é, para essa igreja local, aquilo que é para a Igreja universal”.
A santidade da Igreja, por sua vez, deve ser observada sob a perspectiva dupla da santidade em sentidos absoluto e relativo. Por um ângulo, a Igreja é absolutamente santa, quando observada do ponto de vista da justificação, quando ela é considerada por Deus como “justa”, pela imputação da perfeita santidade de Jesus Cristo por meio da fé somente.
Por outro, a Igreja é relativa e subjetivamente santa, face à mudança do princípio interior da vida dos crentes na regeneração e do processo de santificação que se segue. A luta da Igreja pela santidade prática é sempre um esforço para ser aquilo que Deus já a considera (1Co 1.2). Por essa razão, em sentido ético, ela difere do mundo que lhe cerca na medida em que cresce em semelhança com o seu Senhor e em obediência a Deus (Fp 2.14,15). A igreja, pois, é chamada santa, visto que todos os eleitos foram e são santificados por Deus mediante a regeneração espiritual para serem nela incorporados (Jo 17; Ef 1.3-6; 5.1,2).
A Igreja também é dotada de catolicidade, termo que em geral remete à ideia de universalidade do cristianismo e ao seu caráter de religião internacional. Essa Igreja é chamada católica ou universal, segundo Calvino, porque “todos os eleitos de Deus estão de tal forma unidos e ligados em Cristo que, como dependem de uma só cabeça, também são incorporados num só corpo, entrelaçados como verdadeiros membros. E (…) com uma mesma fé, esperança e amor, eles vivem do mesmo Espírito de Deus (…).” (Rm 12; 1Co 10.17; 12; Ef 4.1-16).
A comunhão dos santos
A expressão “comunhão dos santos”, conforme Calvino, leva-nos a definir a natureza da igreja local como sendo “a agremiação na qual Jesus Cristo uniu os seus fieis” e onde “eles coparticipam de todos os bens”. Nessa comunhão, cada crente recebe graças diferentes (1Co 12), mas para serem compartilhadas com os demais membros da comunidade cristã.
Ser membro de uma igreja local é um caminho natural para todos aqueles que Deus chama para serem parte da sua família. Lucas, após descrever as atividades da igreja em Jerusalém (At 2.42-47), observou que “enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At 2.47b). É dizer, em regra, não existem (ou não devem existir) cristãos genuínos à margem de uma igreja local, que simplesmente decidem não mais compartir os frutos da fé e da vida em Cristo com seus irmãos (Hb 10.24,25).
Aqueles que compõem a Igreja, ou as igrejas, foram designados no Novo Testamento de “cristãos” (At 11.26; 26.28; 1Pe 4.16), “irmãos” (Fm 16,17; 1Ts 5.26; Fp 4.8); “crentes” ou “fiéis” (1Tm 4.12), “escravos” de Jesus Cristo (Rm 1.1; 1Co 6.20; 1Pe 1.18; 2.9), “eleitos” ou “escolhidos” (Ef 1.3-6; 1Pe 1.2; 2.9) e “discípulos” (Mt 28.18-20; Jo 13.35; 15.8).
John Stott, em sua obra de despedida (O Discípulo Radical), pondera que as palavras “cristão” e “discípulo” indicam relacionamento com Jesus, mas aviva que “’discípulo’ talvez seja mais forte, pois inevitavelmente implica relacionamento entre aluno e professor”, para em seguida sugerir lamentando que “talvez, de alguma forma”, devêssemos “ter continuado a usar a palavra ‘discípulo’ nos séculos seguintes, para que os cristãos fossem discípulos de Jesus de maneira consciente e levassem a sério a possibilidade de estar ‘sob disciplina’”.
Outras expressões denominam os cristãos no Novo Testamento. Eles são chamados também de “peregrinos” e “forasteiros”, porque ainda distantes do seu lar verdadeiro (1Pe 1.17; 2.11,12; Hb 11.13-16; Fp 3.20), e “sacerdotes”, visto que oferecem sacrifícios espirituais por meio de Jesus Cristo (1Pe 2.4,5,9). A expressão “os do Caminho” ocorre exclusivamente em Atos (9.2; 19.9,23; 22.4; 24.14,22) e designa “o cristianismo” como o caminho de Deus para a salvação. I. Howard Marshall explica: “Deus indicou o caminho ou modo de vida que os homens devem seguir se desejam ser salvos (cf. Mc 12.14); a declaração dos cristãos de que o caminho deles era aquele indicado por Deus levou ao uso absoluto do termo, como aqui [em At 9:2]”.
Finalmente, os discípulos de Cristo foram chamados “santos” e “santificados” (At 9.32,41; 1Co 1.2; 2Co 1.1; Ef 1.1; Fp 1.1; Cl 1.2). As palavras envolvem as ideias posicional, de separação para Deus, e ética, de caráter moral diferenciado. A Igreja é santa por ser uma comunhão de santos, em ambos os aspectos.
As marcas de uma verdadeira igreja
A Igreja como instituição organizada andou perdendo gradativamente sua importância na vida das sociedades contemporâneas. Em parte, isso resulta do ambiente externo que a cerca, radicalmente secularizado, no qual imperam o relativismo e o materialismo. Mas parte do problema vem de dentro das próprias igrejas, notadamente do seu distanciamento das Escrituras como a fonte única de autoridade e do flagrante analfabetismo bíblico dos líderes em particular e dos cristãos em geral. Quando nos afastamos das Escrituras, abre-se espaço aos subjetivismos e às interpretações particulares, que geram inevitavelmente a fragmentariedade que faz os cristãos, as igrejas e as denominações parecerem ao mundo como uma massa amorfa e acéfala.
Nesse ambiente pouco confiável, como achar uma verdadeira igreja de Jesus Cristo, onde podemos ser nutridos na fé dos eleitos de Deus? Antes de tudo, consideremos com Calvino que “se quisermos pensar unicamente numa igreja perfeita de um a outro extremo, não acharemos nenhuma”. Não há sobre a terra uma igreja local perfeita, completa em todos os seus deveres e que cumpra as exigências de Deus, na doutrina e na vida prática, inteiramente.
Entretanto, se uma igreja nega aquilo que é essencial, parte do núcleo inegociável da fé cristã, então concluiremos que se trata de uma “não-igreja”, visto que uma “igreja falsa” não pode existir, seria uma contradição de termos, o equivalente de “igreja não-igreja”. Nesse sentido, Herman Bavinck observou que ““verdadeira igreja” se tornou o termo usado para designar não a verdadeira igreja à exclusão de todas as outras, mas uma variedade de igrejas que ainda sustentavam os artigos fundamentais da fé cristã, mas, quanto ao resto, diferiam muito entre si em graus de pureza”.
Dentre aqueles artigos que constituem o núcleo inegociável da proclamação de uma verdadeira igreja, podem ser citados os seguintes: a triunidade de Deus, a dupla natureza de Cristo, a justificação pela graça e mediante a fé somente, a ressureição final na vinda do Senhor em glória e a autoridade exclusiva das Escrituras em assuntos doutrinais. Não olvidamos que há espaço para diferenças de opinião em questões secundárias, a exemplo de detalhes relacionados a eventos escatológicos, à forma de governo da igreja e ao batismo cristão. Mas os artigos essenciais do cristianismo bíblico são mantidos de pé por todas as legítimas igrejas de Jesus Cristo e em torno deles a fraternidade entre as igrejas e denominações deve ser fomentada.
Tem-se, pois, que podemos conhecer uma verdadeira igreja por aquilo que ela professa. Mas não só. Também, ao escolhermos uma igreja para congregar, devemos verificar o modo como vivem seus membros e os princípios que defendem. Conforme Calvino observou, o dado indiscutível é que saber quais são os eleitos é prerrogativa exclusivamente divina (2Tm 2.19), verdade corroborada pelo fato de que alguns que nos parecem irremediavelmente perdidos são trazidos à piedade, enquanto outros aparentemente firmes, vêm a tropeçar. Isso nos ensina que somente Deus conhece aqueles que hão de perseverar até o fim (Mt 24.13, 22-24,31,42-51), “o que constitui o fim principal da nossa salvação” (Mt 16.18,19).
Todavia, segundo o reformador, Deus acomodou em nossa capacidade uma forma pela qual devemos considerar certas pessoas como seus filhos. Ele nos deu “um julgamento caridoso, segundo o qual devemos reconhecer como membros da igreja todos aqueles que, pela confissão ou profissão de fé, pelo bom exemplo de vida e pela participação nos sacramentos, reconhecem conosco o mesmo Deus e o mesmo Cristo”.
Para Calvino, pois, a igreja é definida nos seguintes termos: “em toda parte onde vemos que a Palavra de Deus é pregada e ouvida com pureza, e os sacramentos são administrados conforme a instituição de Cristo, de modo algum se deve duvidar de que ali está a igreja, pois a promessa a nós feita não pode falhar: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles”” (Mt 18.20).
Conclusão
É verdade que a Igreja não goza do melhor conceito no tecido social. É verdade também que a sociedade não possui o melhor discernimento para distinguir entre igrejas e não-igrejas, o que não raro dificulta o testemunho do evangelho e põe em xeque a credibilidade e relevância de uma igreja organizada. Além disso, as igrejas contêm incrédulos, pessoas que adoram a Deus com os lábios, mas seus corações estão longe dele. Escândalos são inevitáveis. Muitas atrocidades foram cometidas ao longo da história em nome dela da Igreja. Permanece o fato de que somente Deus conhece os que lhe pertencem.
Nada obstante, a Igreja é a instituição mais importante do mundo. Não é possível verificar nenhum avanço significativo da humanidade nas relações sociais e no trato entre os homens que não tenha origem, para dizer o mínimo, em um princípio cristão.
Mais do que isso. Deus mesmo quis que sua presença e seus dons magníficos fossem partilhados no encontro singelo de duas ou três pessoas habitadas pelo Espírito, onde também deseja ser adorado. É ali, na reunião da família de Deus, que fruímos a sua influência como em nenhum outro lugar e conhecemos e aprovamos a sua vontade.
James Bannerman, citado por R. C. Sproul, diz que a natureza do evangelho torna o cristianismo uma religião social e não solitária. Na obra da redenção, Deus reconcilia o pecador consigo ao mesmo tempo em que remove os obstáculos que impediam sua união com outros homens, “e, na comunhão de uma só fé e um só Senhor, ele descobre um novo e mais poderoso vínculo de apego e união com seus irmãos na fé”. Bannerman arrematou acrescentando que mesmo que a Igreja não fosse ordenada pela Escritura, “a dinâmica da salvação a tornaria uma necessidade inevitável”.