II – O Avanço do Cristianismo nos Primeiros Séculos

A Igreja em Jerusalém: período pentecostal

História da Igreja
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Debruçar-nos-emos, neste estudo, sobre o período compreendido entre os anos 30 a 100 d.C., que tem sido chamado de Período da Igreja Apostólica. Nesse lapso da história, o Cristo ressurreto ministrou aos discípulos pelo espaço de quarenta dias e ascendeu ao céu, deixando um grupo de crentes judeus esperando em Jerusalém o cumprimento da promessa quanto ao envio do Espírito, momento a partir do qual deveria testemunhar dele até aos confins da terra.

Observaremos que os “Atos” de Lucas (o segundo volume da obra “Lucas-Atos”) são a fonte de informação inspirada dos primeiros anos da Igreja neotestamentária. Os sete primeiros capítulos se ocupam com a igreja em Jerusalém, que se manteve como principal centro do cristianismo entre os anos 30 a 45. A chegada do evangelho por toda a Judéia e em Samaria é descrita nos capítulos 8 a 12. A partir do capítulo 13, Lucas relata como o cristianismo foi levado a outros povos, concentrando-se nas missões paulinas. Percebe-se que o desenvolvimento de Atos segue o esboço traçado em Atos 1.8, como veremos.

Na sequência, faremos breve registro da expansão do cristianismo nos séculos II e III que, a despeito do escasso relato de missionários como Paulo e Barnabé no período, testemunham o alcance da fé cristã em diversas regiões do Império Romano por meio de “cristãos anônimos”.

A Igreja em Jerusalém: período pentecostal 

Chegado o dia de Pentecostes, quando judeus, prosélitos e tementes a Deus de todas as partes do mundo conhecido se encontravam em Jerusalém, a dádiva do Espírito Santo foi realizada. A igreja formava uma pequena reunião de cento e vinte pessoas na ocasião em que Judas foi substituído (At 1.15), e seu número total não era muito superior a quinhentos cristãos (1Co 15.6). 

Dificilmente se pode superestimar os efeitos da descida do Espírito Santo, que passou a ser, desde então, não apenas uma possessão salvadora permanente da Igreja e de cada crente, individualmente considerado, verdadeiramente nascido de novo (1Co 12.13), uma realidade já experimentada na antiga aliança, mas a fonte extraordinária da força impulsionadora do corpo de Cristo no cumprimento da sua missão ao mundo. 

Jesse Lyman Hurlbut destacou o efeito tríplice do derramamento pentecostal com as seguintes palavras: “a) Iluminou a mente dos discípulos, dando-lhes um novo conceito de Reino de Deus; b) Compreenderam que esse reino não era um império político, mas um reino espiritual, na pessoa de Jesus ressuscitado, que governava de modo invisível todos aqueles que o aceitavam pela fé; c) Aquela manifestação revigorou todos, repartindo com eles o fervor do Espírito e o poder de expressão que fazia de cada testemunho um motivo de convicção naqueles que o ouviam”.  

Após as evidências visíveis da descida do Espírito Santo, Pedro pregou um “sermão de abertura”, no qual anunciou que Jesus de Nazaré é o Cristo e conclamou o povo ao arrependimento, momento em que se converteram três mil pessoas (At 2.41). A partir de então, o crescimento foi rápido e ininterrupto (At 5.14). O número dos convertidos logo chegou a cinco mil (At 4.4), incluindo conversões entre judeus helenistas (At 6.1) e até de “muitos sacerdotes” (At 6.7).

Lucas nos informa que o modelo de vida da igreja em Jerusalém era impressionantemente comunitário, tanto em seu espírito fraternal como na comunhão de bens (At 2.44-45; 4.32-35). Não havia Templos. As reuniões ocorriam nas casas e a Ceia do Senhor era partilhada no ambiente de uma refeição comunal (a festa ágape). A vida da igreja conquistou a simpatia do povo, trazendo como resultado evangelização eficiente (At 2.47b).

Analisando essa “forma primitiva de comunismo”, Robinson Cavalcanti concluiu: que “o modelo de vida da Igreja em Jerusalém não era normativo [para o mundo] (…)”; que “o modelo era uma opção da igreja”, não obrigatoriamente seguido pelas demais; que “viver o modelo era uma opção livre” de cada cristão; que o modelo poderia estar baseado em um equívoco escatológico: “a crença de que o Senhor voltaria logo, não valendo a pena gastar tempo com outras coisas”; e, que “o modelo fracassou, porque era um comunismo de bens e consumo, e não de bens e produção”.

Observando por outro ângulo, Russell Shedd atribui a comunhão vivida entre os irmãos primitivos ao poder do Espírito no seio da igreja recém-nascida. Shedd afirmou: “Um avivamento genuíno transforma esses meros ajuntamentos em comunhão de verdade, em linguagem do Novo Testamento, ou seja, koinonia”. 

Por fim, como Hurlbut pontuou, o “defeito” da igreja nesse período foi “a falta de zelo missionário”. Ela permaneceu em seu território enquanto deveria ter saído a outras plagas, o que não ocorreu até que uma severa perseguição a assolou.

A Igreja na Judeia, Samaria e até aos confins do Império: período de expansão 

Após uma queixa contra a maneira pela qual os apóstolos estavam distribuindo os alimentos, a igreja escolheu sete homens para o ministério, dentre eles Estevão (At 6.1-6). Não apenas dedicado ao serviço ao qual fora designado, Estevão se destacou como grande pregador e por sua visão clara quanto à universalidade do evangelho, fatos que o levaram ao martírio sob a supervisão de um jovem fariseu chamado Saulo, de Tarso (At 7.54-8.1). A morte de Estevão foi o ponto culminante de uma perseguição que se abateu sobre toda a igreja, levando-a a outras regiões (At 8.1-4; 11.19-20). 

A visita de Filipe a Samaria (At 8) foi a primeira investida cristã a um povo que não era judeu puro, trabalho que veio a ser supervisionado e chancelado por Pedro e João. Pedro foi também o primeiro a levar o Evangelho aos completamente gentios, ocasião em que, após uma revelação que pretendia dissipar seus preconceitos raciais e teológicos, pregou na casa de Cornélio (At 10-11). 

Percebe-se que nesses primeiros momentos os adeptos do cristianismo se sentiam tão somente uma parte do judaísmo. A maneira como tentavam conciliar a nova piedade com o Templo de Jerusalém demonstra isso (At 2.46), como também a resistência em divulgar as boas novas a não judeus (At 10.9-16; 11.19).

Foi somente em Antioquia que um grupo “mais aberto”, formado pelos que eram de Chipre e de Cirene, começou a pregar entre os gentios (At 11.20). Lucas deve ter registrado com muito prazer que “a mão do Senhor estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao Senhor” (At 11.21). Foi assim que nasceu a igreja que logo se tornaria o novo grande centro do cristianismo.

Ao lado da experiência de Pedro em Jope (At 10), a conversão de Paulo, o implacável perseguidor da Igreja, foi também relevante fator responsável pelo avanço extraordinário do cristianismo e, notadamente, da sua universalização. Após o encontro no caminho de Damasco com o Salvador ressurreto (At 9.1-9), Paulo se voltou a propagar ao máximo e com todas as suas energias aquilo que antes desejava aniquilar. Hurlbut assevera a respeito: “Em toda a história do cristianismo, nenhuma conversão a Cristo trouxe resultados tão importantes e fecundos para o mundo inteiro como a conversão de Saulo, o perseguidor, e, mais tarde, o apóstolo Paulo”. Cairns, de seu turno, observa que “como nenhum outro na Igreja Primitiva, Paulo entendeu o caráter universal do cristianismo e entregou-se à sua pregação aos confins do Império Romano (Rm 11.13; 15.16)”. 

Com os resultados frutíferos da evangelização em Antioquia, a igreja de Jerusalém enviou Barnabé para reforçá-la (At 11.22), o homem que integrou Paulo no ambiente cristão de Jerusalém (At 9.27) e que agora o buscaria para auxiliá-lo no serviço daquela importante igreja (At 11.25,26).

Na sequência, é para Paulo que se voltam as atenções de Lucas a partir do capítulo 13 de Atos, quando (à exceção do capítulo 15, que dedica à Assembleia de Jerusalém), narra três viagens missionárias (At 13.1-21.16), a prisão do apóstolo aos gentios em Jerusalém (At 21.17-23.22) e em Cesaréia (At 23.23-26.32) e sua viagem a Roma (At 27.1-28.15), onde permaneceu preso por dois anos (At 28.16-31). 

A Assembleia de Jerusalém

A Assembleia de Jerusalém merece uma atenção especial (At 15). Ela foi resultado de uma controvérsia a respeito da cada vez maior presença gentílica na Igreja Cristã. Para os judeus mais conservadores, os cristãos gentios deveriam observar as leis cerimoniais mosaicas (notadamente a circuncisão, as leis dietéticas e a guarda de dias – At 15.1,5; Gl 2.3,12; 4.8-11; 5.2) para, somente então, ingressarem na comunidade cristã.

Para o grupo liderado por Paulo e Barnabé, os cristãos são justificados pela fé somente, do mesmo modo como judeus o são, sem a necessidade de se tornarem judeus para serem cristãos. A Assembleia, após debates com a presença de todo o povo, decidiu no sentido de não sobrecarregar os gentios com leis cerimoniais, sendo-lhes tão somente admoestados a adotarem regras básicas sem as quais a convivência harmoniosa com os judeus seria impossível (At 15.20), quais sejam: a abstenção das contaminações dos ídolos (a carne oferecida aos ídolos e depois vendida no açougue); das ralações sexuais ilícitas (casamentos entre parentes próximos, conforme a previsão de Levítico 18.6-18); da carne de animais sufocados (um método de abate no qual o sangue permanece na carne); e do próprio sangue. 

A lição de Justo González nesse ponto é importante:

essas quatro proibições são exatamente aquelas que, de acordo com a lei de Moisés, eram impostas aos gentios que viviam em Israel (Lv 17.8-18.26). Se lermos o texto dessa forma, então o que Tiago está fazendo não é realmente impondo as regras aos gentios que desejam se tornar cristãos. Antes, ele está informando-os que, para poderem comungar com os judeus e ser como os gentios que, nos tempos antigos moravam no meio de Israel, eles só têm de seguir as mesmas diretrizes que, nos tempos antigos, eram aplicadas aos gentios. 

Missionários no primeiro século

Uma tradição que remonta Clemente de Roma (c. de 95 a.D.) informa que Paulo fez ministério profícuo após a soltura da sua primeira prisão em Roma, aquela narrada por Lucas em Atos 28. Nesse período, o apóstolo visitou igrejas, escreveu cartas (1Timóteo e Tito) e voltou a ser preso na onda de perseguição levantada por Nero (momento em que escreveu sua última Carta, 2Timóteo), sob quem foi martirizado em cerca de 65 ou 66.

Entretanto, certamente as missões cristãs do primeiro século não se resumiam ao ministério paulino. Tiago, o filho de Zebedeu e irmão de João, o primeiro dentre os apóstolos a sofrer o martírio, foi decapitado em 44, sob a ordem de Herodes Agripa I. Tiago, irmão unilateral do Senhor, tornou-se líder proeminente da igreja em Jerusalém (Gl 1.19), foi jogado do pináculo do templo e morto a pedradas. 

André, irmão de Pedro, pregou no Oriente Antigo. Judas Tadeu exerceu ministério na Pérsia, onde foi martirizado. Matias, o substituto de Judas Iscariotes, pregou na Etiópia, onde sofreu martírio. O nome de Mateus também é associado à Etiópia e há tradição que relaciona os nomes de Tomé e Bartolomeu com a Índia.

João, o outro filho de Zebedeu, é associado a Pedro no relato de Lucas. Longa tradição afirma que após o exílio em Patmos, sob o imperador Domiciano, João exerceu ministério em Éfeso e nas igrejas da Ásia até morrer. Foi, provavelmente, o único dos doze a não passar pelo martírio.

Expansão nos séculos II e III: os cristãos anônimos

O cristianismo, que começou com uma maioria esmagadora de judeus e concentrado na parte oriental do Império Romano, no segundo século já era composto predominantemente por gentios, alcançando regiões da Ásia, Europa e África em torno do mediterrâneo. A carta de Plínio a Trajano (sobre a qual voltaremos a falar) dá-nos conta de forte presença cristã na Ásia Menor: “Esta superstição contagiou não apenas as cidades, mas as aldeias e até as estâncias rurais”. 

Por volta do ano 200, “os cristãos se encontravam em todas as partes do Império”. O cristianismo floresceu no norte da África, e Cartago e Alexandria tiveram igrejas fortes. “Estimativas sobre a população da Igreja, por volta de 250, variam entre 4 e 15 por cento da população do Império, que girava em torno de 50 a 75 milhões” (Cairns).

Dentre os cristãos havia pessoas de todas as classes, desde nobres até escravos. Os escravos formavam a maioria da população do Império Romano, mas na Igreja todos recebiam o mesmo tratamento e, inclusive, havia escravos que chegavam a ser bispos, enquanto seu senhor permanecia na igreja como mais um dos seus membros.

Relevante, nesse ponto, é inquirirmos sobre como a Igreja Primitiva cresceu de maneira tão significativa. Justo González afirma que depois do Novo Testamento são escassos os dados históricos de missionários como Paulo ou Barnabé. Para ele, a difusão geográfica do cristianismo se deveu, principalmente, ao trabalho de “cristãos anônimos” que, em viagens “por diversas zonas”, levavam sua fé e faziam conversos.

As reuniões permaneceram concentradas nos lares e, em algumas ocasiões, com o crescimento das congregações, casas eram utilizadas exclusivamente para o culto. Os Templos cristãos mais antigos, pelo que se tem notícia, datam de meados do terceiro século. 

Por outro lado, o crescimento da Igreja nesse período não se deu sem dificuldades externas (perseguições e acusações) e internas (heresias e dissensões), fatos que analisaremos nos próximos estudos.

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