X – As Controvérsias Antropológica e Soteriológica dos Séculos V e VI

Agostinho e Pelágio e o semipelagianismo

História da Igreja
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No século V todos os debates acerca da Trindade e da dupla natureza do Redentor ocorreram principalmente no Oriente. Foi somente quando essas controvérsias teológicas e cristológicas estavam bem avançadas que a Igreja, especialmente no Ocidente, concentrou-se em questões tão práticas e subjetivas quanto os efeitos da Queda e o modo como os homens são salvos. Como Earle E. Cairns observa, a “mente grega deixou sua contribuição no campo do pensamento; a mente prática romana, por sua vez, preocupou-se mais com assuntos da vida prática da Igreja”.

Nessa última esfera de debates, os principais pensadores envolvidos nas contendas doutrinárias foram Agostinho (354-430), Pelágio (c. 360-420) e João Cassiano (c. 360-435). A versão do evangelho apresentada por Pelágio sequer pode ser propriamente assim designada. Na verdade, tratava-se de uma negação absoluta do evangelho de Jesus Cristo, razão pela qual, no dizer de Benjamin B. Warfield, era uma proposta ainda mais danosa à fé cristã do que as apresentadas nas controvérsias teológicas e cristológicas anteriores, visto que, nesse último caso, “a substância prática do cristianismo estava em perigo”. Nesse sentido, Warfield concluiu: “A verdadeira questão em pauta era se havia alguma necessidade do cristianismo; se por seu próprio poder o homem não poderia alcançar a felicidade eterna; se a função do cristianismo era salvar ou apenas tornar uma eternidade de felicidade mais facilmente alcançável pelo homem”.

A controvérsia pelagiana

A disputa teológica mais importante de Agostinho se deu com um homem chamado Pelágio (c. 360-420), com quem debateu sobre as ideias relacionadas à natureza humana, aos impactos da Queda, ao livre-arbítrio e ao próprio significado da graça de Deus e sua relação com a salvação.

Pelágio chegou a Roma em cerca de 380 d.C., onde se tornou um professor popular, vindo originalmente da Grã-Bretanha, segundo Agostinho e Jerônimo. Ele e seu discípulo Celéstio deixaram a capital ocidental entre 409 e 411, em torno do ano da invasão do visigodo Alarico a Roma, e rumaram à África. Pelágio logo partiu para a Palestina, mas Celéstio se estabeleceu em Cartago e foi com ele que os debates ficaram mais acalorados. 

Pelágio e Agostinho tinham pensamentos diametralmente opostos e que foram construídos independentemente. Quando o encontro de ambos ocorreu na África, em torno de 410, o choque de ideias foi inevitável. 

A doutrina de Pelágio

Pelágio se sentiu especialmente ofendido, a ponto de quase se envolver em uma briga, quando lhe foram apresentadas as seguintes palavras de Agostinho: “Não tenho a mínima esperança, a não ser em tua misericórdia. Concedes o que exiges e mandas o que for do teu agrado…” (Confissões, citado por Bettenson). Para o monge britânico, o homem não foi criado portador de santidade positiva, mas neutro, com capacidade para fazer o bem e o mal. O pressuposto fundamental de Pelágio era a plena capacidade do homem, estando o homem capaz de fazer tudo o que a justiça de Deus exige, “não apenas sua própria salvação, mas também sua própria perfeição” (B. B. Warfield).

Para Pelágio, para que uma boa obra aconteça (o ato, “actio”, “esse”), uma pessoa precisa da capacidade (“possibilitas” ou “posse”) e do desejo (ou vontade, “voluntas” ou “velle”). Ele argumentou que Deus dá aos seres humanos a capacidade de fazer o bem, mas são eles que escolhem desejar e fazer o bem se tornar realidade. Em uma passagem de Pelágio (preservada por Agostinho), ele diz: “Nós nos concentraremos em três coisas em ordem de importância. Primeiro, colocamos capacidade; segundo, desejo; e terceiro, realidade. A capacidade tem a ver com a nossa natureza. O desejo está relacionado com a nossa vontade. E a realidade diz respeito ao que realmente acontece. A capacidade é creditada a Deus, que dá e concede às suas criaturas e à sua criação. Os outros dois, desejo e realidade, são creditados ao ser humano” (citado por David L. Eastman).

A partir dessa suposição básica, três consequências lógicas foram ensinadas por Pelágio. A primeira é que os homens vêm ao mundo sem qualquer consequência do pecado de Adão e sem qualquer fraqueza moral decorrente dos atos passados dos homens. Quando Adão livremente escolheu pecar, tal decisão não afetou sua natureza em nada, tampouco a da sua descendência. 

Segundo Pelágio, “Antes da ação de sua própria vontade só existe no homem aquilo que Deus fez. Afirmou que “Assim como somos criados sem virtude, também somos criados sem vício”. Em outras palavras, “Nada do que é bom e do que é mau – por causa dos quais somos louváveis ou censuráveis, nasce conosco – é, antes, feito por nós; pois nascemos com capacidade para qualquer um dos dois, mas não somos providos de nenhum” (citação de B. B. Warfield). Assim, os homens, como Adão, estão inteiramente livres para escolher, a qualquer momento, o bem e o mal.

Nesse sentido, cada filho de Adão nasce como o pai da raça foi criado, sem culpa e sem natureza depravada, isto é, sem tal coisa conhecida como “pecado original”, e sem a inevitabilidade de pecar. Na prática, a única diferença entre Adão e seus descendentes – e, para Pelágio, é isso que explica a universalidade do pecado -, é que contra todos os filhos de Adão pesam a educação errada, o mau exemplo e o hábito de pecar.

Para explicar a força do hábito no mundo, Pelágio divide a história em períodos progressivos marcados pela manifestação da “graça de Deus” (meramente externa, como veremos). Primeiro, os homens podiam ser perfeitos moralmente somente por meio da luz da natureza, mas com a corrupção dos costumes Deus concedeu a lei. Mas após a lei os maus hábitos voltaram a crescer e a lei se tornou insuficiente para curar a humanidade, momento em que Jesus Cristo foi dado para perdão de pecados, para exortar com o seu ensino e para ser exemplo de vida santa.

Observa-se que Pelágio consente com a realidade da deterioração progressiva do comportamento da humanidade, a ponto de vir a ser conveniente, como uma espécie de reforço, a doação da lei e a vinda de Cristo, mas sem jamais admitir qualquer corrupção da natureza.

Como é fato evidente que todos os homens morrem, e os pelagianos não podiam consentir que a morte era a consequência do pecado, sob pena de inevitavelmente admitir que o pecado de Adão alcançou todos os homens, afirmaram que o primeiro pai foi criado mortal e que a morte física é própria da natureza humana, de forma que morreria, quer tivesse pecado, quer não.

A segunda consequência lógica da doutrina fundamental de Pelágio é a sua afirmação de que todos os homens poderiam ser sem pecado, caso desejassem. Ele afirmou consistentemente que muitos santos, mesmo antes de Jesus Cristo, tinham de fato vivido livres do pecado. Com efeito, os pelagianos se gabavam por afirmar a plena integridade do livre-arbítrio para escolher o bem, que, segundo Juliano, está “tão completo após o pecado quanto era antes do pecado” (citação de Warfield).

Assim, uma vez que o homem não nasce em pecado e pode realizar a sua salvação e perfeição moral, caso queira, disso exsurge a terceira consequência lógica: o homem não depende da graça de Deus para fazer a vontade do Criador, se isso significa algum tipo de operação prévia divina ou assistência sobrenatural para capacitá-lo à obediência de todos os ditames da justiça. Conforme lição de J. N. D. Kelly, a palavra graça para Pelágio compreende: “(a) o próprio livre-arbítrio ou a possibilidade de não pecar com que Deus nos dotou no momento de nossa criação; (b) a revelação da lei de Deus, por intermédio da razão, que nos instrui naquilo que devemos fazer e nos apresenta as sanções eternas; e (c) desde que isso ficou obscurecido devido a costumes errados, a lei de Moisés e o ensino e exemplo de Cristo”.

Em síntese, o sistema defendido de Pelágio consistiu em afirmar: (1) que o homem pode observar todos os mandamentos de Deus, sem pecar, porque, segundo ele, ninguém pode dizer que é incapaz de fazê-lo, uma vez que Deus concedeu essa “capacidade”; (2) que essa “graça” (que para Pelágio nada mais é do que a capacidade de desejar e realizar a vontade de Deus) é oferecida a todos, indistintamente, mas alguns apenas optam por não colocá-la em ação; (3) e que a predestinação é realizada na medida em que Deus prevê a obediência das pessoas, que resulta de sua exclusiva vontade.

Essa “leitura surpreendentemente nova da condição, dos poderes e da dependência do homem para a salvação foi o que se abateu como um raio sobre a Igreja Ocidental no início do século V”, observou Warfield, fato que “a forçou a reconsiderar, a partir dos fundamentos, todo o seu ensino sobre o homem e sua salvação”.

Agostinho de Hipona (354-430)

Agostinho nasceu em 13 de novembro de 354 d.C., em Tagaste (atual Souk Ahras, na Argélia), época em que o cristianismo era legalizado e em via de se tornar a religião oficial do império, o que ocorreu em 380 a.D. Seu pai, Patrício, divisava interesses apenas seculares para Agostinho e estava sempre o impulsionando à vida pública. Sua mãe, Mônica, era uma cristã fervorosa e sempre preocupada com os rumos que a vida do filho foi tomando, sem jamais desistir de influenciá-lo para a fé cristã.

Aos dozes anos, Agostinho foi enviado à cidade de Madauro, onde recebeu educação de qualidade. Retornou a Tagaste apenas para uma breve estada e, em 371, aos dezessete anos, foi estudar retórica na grande e desenvolvida Cartago. Nessa cidade, conforme narra em suas “Confissões”, adentrou no submundo dos prazeres sensuais e, ao mesmo tempo, interessou-se mais pela filosofia, notadamente por Cícero.

Nessa época também, além de perder o pai, aderiu ao maniqueísmo, religião que misturava elementos do cristianismo com outras religiões, especialmente o zoroastrismo, fé que manteve por nove anos. Paralelamente, quando tinha cerca de dezoito anos, sua namorada deu à luz um filho. Cansado da vida em Cartago, partiu para Roma levando o filho e a namorada com o propósito de ali fundar uma escola de retórica.

Quando Agostinho retornou à África, sofreu o forte impacto de testemunhar a morte de um amigo próximo, que tinha se convertido do maniqueísmo à fé cristã. Ele ficou inconsolável. Sua cidade natal tinha se tornado para ele “uma câmara de tortura”, onde ele se sentia consumido pela tristeza. Nem o maniqueísmo nem a filosofia ofereciam as respostas para a questão (suscitada pela morte de um amigo da sua idade!) que mais o angustiava: a mortalidade e a fragilidade humana. Viver tinha se tornado um fardo, mas a morte lhe parecia assustadora. Foi nessa época que ele começou a se afastar do maniqueísmo.

Em 384, pouco antes de completar trinta anos, Agostinho se mudou para Milão, para achar trabalho como professor de retórica. Em Milão, começou a ouvir o bispo local, Ambrósio, a princípio apenas pelo domínio da arte retórica do pregador, e talvez por influência de Mônica, que o havia seguido. Mas nesse período ele ainda esperava encontrar a felicidade nos prazeres da vida desregrada, quando fez a conhecida oração: “Peço castidade e pureza, mas não para hoje!” (Conf. 8.7).

Foi também naquela altura que chegou à conclusão que a posição que havia conquistado e a sabedoria que tinha adquirido não eram suficientes para fazê-lo feliz. Mas somente em 15 de agosto de 386 veio finalmente à experiência de conversão. Em uma certa tarde, ele se achou em lágrimas, sob total desespero por não achar solução para seus conflitos internos, quando, de repente, ouviu a voz de uma criança cantando: “Toma e lê, toma e lê”. 

Ele concluiu que Deus estava falando para ele abrir as Escrituras e ler a primeira passagem em que pusesse os olhos. Agostinho pegou uma coleção das Cartas de Paulo e, quando abriu, seus olhos pararam sobre Romanos 13.13,14. Pronto, aquela leitura o convenceu que tudo o que ele precisava era confiar somente em Deus. Em suas Confissões, Agostinho lamenta por ter resistido à fé por tanto tempo: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova. Tarde te amei” (Conf. 10.27).

Agostinho foi batizado por Ambrósio em Milão, na Páscoa de 387. Seu filho morreu nessa época e não mais ouvimos falar sobre sua namorada. Convertido e batizado, decidiu seguir a vida de monge, voltou para a África e fundou um mosteiro, tendo inclusive estabelecido um conjunto de regras para os monges. Séculos depois, em 1244 d.C., com a permissão do Papa Inocêncio IV, um grupo de religiosos fundou uma ordem religiosa que seguiria as regras estabelecidas por Agostinho. Nasceria a Ordem de Santo Agostinho, cujo monge mais famoso talvez seja Martinho Lutero, da qual também viria o Papa Leão XIV, eleito pelo conclave em 8 de maio de 2025, o primeiro Papa agostiniano.

Entretanto, contra a sua vontade, em cerca de 396, uma década após sua experiência de conversão, aos quarenta e dois anos, ele foi nomeado bispo de Hipona (atual Annaba, na Argélia), cidade da costa do Mediterrâneo, onde serviu até sua morte, em 430. A partir de 410, voltou-se com todas as energias à controvérsia pelagiana, combatendo a heresia de Pelágio por meio de sermões, cartas e tratados. Quando faleceu, o Concílio Ecumênico de Éfeso (431) estava em via de se realizar, momento em que o pelagianismo foi condenado no mundo inteiro.

A doutrina de Agostinho

Agostinho nutria compreensão diametralmente oposta à de Pelágio, e bem antes do surgimento da controvérsia. Para ele, Adão foi dotado de retidão e perfeições positivas e com acesso permanente à imortalidade pelo alimentar-se da árvore da vida. Deus criou Adão moralmente íntegro, dotado de livre-arbítrio, e lhe concedeu a graça pela qual ele era capaz de manter sua integridade (Sobre Repreensão e Graça). Adão possuía liberdade no sentido de posse non peccare (capacidade para não pecar), embora não tivesse o non posse non paccare (não posso não pecar). Isso quer significar que Adão era capaz de permanecer de pé, se quisesse, mas também de cair, caso usasse o livre-arbítrio para tanto.

Ocorre que Adão usou seu livre-arbítrio para pecar e, quando e porque caiu, morreu física e espiritualmente. De tão grave seu pecado, toda a raça foi nele implicada, tornando-se ela mesma pecadora (massa damnata) e atingida por aquela dupla morte. O elo entre o pecado de Adão e a atual condição da humanidade, para o bispo de Hipona, está em sua doutrina do “pecado original”, que consiste em que todos os homens participaram da decisão de Adão realmente e, por isso, são corresponsáveis por ela. Em razão dessa solidariedade, a consequência da Queda é que toda a raça humana está escravizada à ignorância, concupiscência e morte, e não desfruta mais do posse non peccare

A doutrina do pecado original, para Agostinho, implica dizer que ninguém gerado a partir de Adão está livre e que ninguém pode escapar dessa escravidão a não ser pela regeneração em Jesus Cristo. Sobre como o pecado do primeiro pai é transmitido à sua descendência, Agostinho tem menos certeza (pode decorrer de alguma unidade misteriosa, como se a raça fosse um único homem; ou o pecado de Adão corrompeu a natureza, a mesma que desde então é comunicada; ou por mera hereditariedade; ou por causa da concupiscência de algum modo presente em todo ato de procriação), mas o certo é que o pecado é propagado e toda a humanidade se tornou pecadora em Adão, desde a concepção. Com base em Romanos 5.12, o bispo de Hipona ensinou que todas as pessoas pecaram “em Adão” pelo fato de serem sua descendência. 

De todo modo, há uma relação entre o pecado original e a raça humana por meio da reprodução natural, e Agostinho se valeu de concepções em franco desenvolvimento na época. Para ele, todo ato sexual envolve luxúria, sendo esta uma das consequências do pecado de Adão. Por isso também, todo e qualquer ato sexual no casamento não seria pecaminoso somente se ocorresse com o exclusivo propósito de procriação e, mesmo assim, nenhum ato de procriação poderia ocorrer sem concupiscência. David L. Eastman faz importante advertência no sentido de que Agostinho não era contrário ao casamento, mas que, na verdade, “ele estava defendendo o valor do casamento contra alguns extremistas que argumentavam que o verdadeiro cristianismo requer total abstinência sexual mesmo dentro dele”. 

Em consequência, o pecado de Adão se torna o nosso pecado e é transmitido a toda a progênie do primeiro pai porque todos estamos (geneticamente) ligados a ele. O resultado é que perdemos a imagem divina, embora não de tal forma que nada restou dela, e que nos tornamos incapazes de fazer algo verdadeiramente bom por nós mesmos. Outra implicação lógica é que bebês não nascem inocentes e essa foi a motivação para o batismo infantil, com base no seguinte raciocínio: o bebê nasce pecador; o batismo opera a regeneração, expurgando a culpa do pecado original; logo, um bebê deve ser batizado o quanto antes. Pelágio também praticou o batismo infantil, mas por outra razão. Enquanto Agostinho o fez por conceber que o batismo salva a criança da maldição do pecado original, Pelágio, por acreditar que o batismo torna as crianças (que não nascem pecadoras) ainda melhores. 

E quanto à liberdade da vontade, tão importante para Pelágio? Após a Queda, conforme Agostinho, o homem permanece portador de livre-arbítrio (liberum arbitrium), no sentido de poder escolher o caminho pelo qual andará. Entretanto, como a vontade não opera independentemente de motivos, e esses estejam infectados pela natureza corrompida, “ainda que teoricamente esteja livre, o homem caído, respirando a atmosfera da concupiscência, na verdade só escolhe objetivos pecaminosos” (J. N. D. Kelly). Fica claro que Agostinho distingui vontade como faculdade e vontade no sentido estrito de escolher ou não o bem. A vontade como faculdade permanece mesmo após a Queda, mas esta faculdade não opera independentemente do homem, que a usa conforme sua natureza. Assim, quando o homem caiu, embora permaneça com a faculdade da vontade, passou a fazer uso dela somente para o mal.

Noutras palavras, a Queda provocou uma mudança no homem, corrompendo-o, de modo que ele, embora permaneça usando o seu livre-arbítrio, o faz sempre de acordo com a sua natureza, agora degenerada, escravizada. Ou ainda: o homem tem livre-arbítrio e a permissão para usá-lo como quiser, mas por meio dele não escolhe nada além do mal. Conclusão: o livre-arbítrio é útil, mas somente para pecar.

Eis a razão pela qual sem a graça de Deus, que para Agostinho é “um poder interno e secreto, maravilhoso e inefável”, o livre-arbítrio serve apenas para conduzir ao pecado. Assim, a graça é o poder – na realidade, a presença do Espírito Santo – que opera no coração dos homens e que os ajuda em sua fraqueza. A graça espiritual inclui toda a ajuda externa que Deus concede ao homem para realizar a obra da salvação (a lei, o evangelho, o exemplo de Cristo, o perdão dos pecados), mas, acima de tudo, inclui a assistência que Deus dá por meio do seu Espírito Santo, que opera internamente uma mudança de disposição, por meio da qual “passamos a amar e escolher livremente, em cooperação com a ajuda de Deus, exatamente as coisas que até então não tínhamos sido capazes de escolher por estarmos presos ao pecado”.

Essa graça é preveniente (ela age antes, para que o homem possa enfim querer e usar seu livre-arbítrio para o bem). Ela é necessariamente gratuita, dada “com base na infinita misericórdia e no favor imerecido de Deus” (Sobre a graça de Cristo), visto que não há nada no homem que o torne merecedor dela. Essa gratuidade da graça resulta em ser ela uma dádiva livre da soberania de Deus, que concede a uns e não a outros. Essa graça é também irresistível e infalível, significando dizer que aquele que recebe o dom da fé vem de fato a crer e aquele que a recebe persevera até o fim.

Em síntese, como decorrência necessária da sua compreensão da natureza humana, da necessidade da graça e da própria natureza da graça de Deus, para Agostinho, a graça eficiente (adiuntorium quo) é irresistível e concedida somente àqueles que foram livre e incondicionalmente predestinados à salvação. Para ele, os pelagianos eram inimigos da graça de Deus e culpados por não darem a Ele o devido crédito. Ele diz, com efeito: “Esses homens são tão inimigos da graça de Deus […] que acreditam que o ser humano é capaz de obedecer a todos os mandamentos de Deus sem ela […] Deus simplesmente nos assiste por sua lei e ensino para que possamos aprender o que devemos fazer e esperar, não para que possamos realmente realizar fazer o que aprendemos que devemos fazer” (Haer. 88, citado por David L. Eastman).

Como a graça é preveniente, gratuita, irresistível, infalível e resulta de concessão livre e soberana de Deus, segue-se que o Deus eterno previu tudo desde o início. Presciência é Deus conhecer previamente aquilo que Ele mesmo fará, como escreveu em sua De Dono Perseverantiae: “Ousará alguém afirmar que Deus não conheceu antecipadamente aqueles a quem concederia a fé? Se antecipadamente os conheceu, também previu certamente sua própria benevolência mediante a qual se digna a nos resgatar. Isso, e não outra coisa, é predestinação dos santos, a presciência de Deus e a determinação de sua condescendência através da qual certamente são salvos todos os predestinados” (citado por Bettenson). 

Assim, aos que conheceu de antemão e os predestinou soberanamente à salvação, Deus concede a graça da perseverança para que verdadeira e certamente sejam salvos: “No caso dos santos predestinados ao Reino de Deus pela graça divina, a ajuda concedida para que perseverassem não foi aquela dada a Adão, mas uma ajuda especial, comportando forçosamente a perseverança de fato, (…) sendo de tal maneira forte e eficaz que os santos não podiam fazer outra coisa senão perseverar de fato”  (citação de Flanklin Ferreira). 

Para Agostinho, a salvação é uma operação de Deus, do início ao fim, da eternidade passada à eternidade futura.

Agostinho certamente cometeu os equívocos próprios do seu tempo, quando a Igreja aceitava largamente os sacramentos como meios exclusivos da concessão da graça de Deus. Isso o levou a concluir que embora houvessem batizados não salvos, não haveriam salvos sem o batismo (inclusive dentre os bebês). Mas, advirta-se, essa compreensão não se deveu à sua teologia da graça, mas à crença universalmente aceita da necessidade do batismo para a remissão de pecados. Nada obstante, B. B. Warfield afirma que “Nenhum outro dos pais elaborou tão conscientemente sua teologia a partir da Palavra revelada; nenhum outro deles excluiu tão severamente os acréscimos humano”.

Para facilitar a compreensão, segue uma tabela em que contrasto as ideias de Agostinho e de Pelágio. Vejamos:

O semipelagianismo

A partir de um certo momento, por razões que desconhecemos, Pelágio desapareceu do debate público e, após as controvérsias com Celéstio, seu pensamento seguiu sendo defendido por Juliano, bispo de Eclano, no sul da Itália, que se tornou o grande expoente do partido pelagiano. Warfield o descreve como “o mais corajoso, o mais forte, ao mesmo tempo o mais perspicaz e o mais ponderado de todos os disputantes de seu partido”. 

Apesar de o pelagianismo ter sido condenado no Concílio local em Cartago, em 418, e no Concílio ecumênico de Éfeso, em 431 (o mesmo que condenou o nestorianismo), no sul da Gália um grupo de monges tentou encontrar uma solução intermediária, contemplando tanto a graça auxiliadora da doutrina de Agostinho como a autodeterminação humana para o bem, conforme a concepção de Pelágio. Esse pensamento mais tarde veio a ser conhecido como “semipelagianismo” (e “semiagostinianismo”), exatamente por propugnar uma espécie de meio-termo.

Esse grupo aparece pela primeira vez em 428 d.C., em uma carta de Próspero e Hilário endereçada a Agostinho. Eles consentiam com o pecado original e a necessidade da graça, mas afirmavam que os homens começam a se voltar para Deus e ele os ajuda no início. Diziam que todos os homens são pecadores, que seu pecado deriva de Adão e que eles precisam da graça para se salvar. Afirmavam que os homens não podem merecer a graça (ela é gratuita), mas que ela não é irresistível. Sua concessão pode ser dependente da atitude dos homens em relação a Deus e que, embora não seja dada por causa do mérito, é dada de acordo com ele, seja real ou previsto.

O pensador mais destacado do grupo foi João Cassiano, aluno de Crisóstomo, o famoso monge de Marselha. Ele era um “erudito monge oriental” que tinha sido “enviado a Roma como embaixador por volta do ano 404 d.C., e acabou permanecendo no Ocidente, onde fundou dois mosteiros no sul da Gália, perto de Marselha” (David L. Eastman). Cassiano foi seguido por Fausto de Régio na defesa do semipelagianismo.

Em síntese, João Cassiano passou a argumentar que as posições de Agostinho e de Pelágio eram extremas. Contra as ideias de Agostinho, ele cria que os efeitos da Queda não foram tão graves a ponto de podermos dizer que a vontade humana está morta; ela está apenas doente, e a função da graça é restaurá-la, cooperando com ela. Portanto, “a natureza humana caída retém certo elemento de liberdade, em virtude do que pode cooperar com a graça divina” (Berkhof).  Em oposição a Pelágio, João Cassiano sugeriu que uma pessoa não poderia seguir o caminho da santidade e da prática das obras com base em sua própria vontade, e que o livre-arbítrio não pode levar ninguém a Deus. 

Para o monge de Marselha, Deus deseja que todos os homens sejam salvos. Em consequência, a predestinação ocorre a partir do conhecimento prévio que Deus possui quanto à qualidade do comportamento dos homens.

Louis Berkhof avalia o semipelagianismo da seguinte forma: “Para dizer a verdade, essa posição intermediária serviu para frisar claramente – como nenhuma outra coisa poderia ter feito – que somente um sistema como o de Agostinho, com sua forte coerência lógica, poderia manter-se firme contra os assaltos de Pelágio. O semi-pelagianismo fez a fútil tentativa de evitar todas as dificuldades dando lugar tanto à graça divina quanto ao livre-arbítrio humano como fatores coordenados da renovação do homem, e alicerçando a predestinação sobre a fé e obediência previstas”.

O semipelagianismo foi analisado no II Concílio de Orange, no sul da França, reunido sob a presidência de Cesário em 3 de julho de 529 (cerca de cem anos após as mortes de Agostinho e Cassiano), para examinar as controvérsias envolvendo Agostinho e seus oponentes nos debates antropológicos e soteriológicos. Orange condenou o pelagianismo e o semipelagianismo, afirmando que Agostinho estava certo quanto ao pecado original, mas também não adotou inteiramente suas ideias, tendo concluído que as afirmações do bispo de Hipona quanto à predestinação (para a condenação, especialmente) tinham ultrapassado limites.

Warfield afirma que os “artigos moderados” de Orange afirmaram “um agostinianismo ansiosamente resguardado, um tanto enfraquecido, mas ainda assim um agostinianismo distinto; e, até onde uma condenação formal poderia chegar, o semipelagianismo foi suprimido por eles em toda a igreja ocidental”. 

A posição de Orange foi chamada por Berkhof de “agostinianismo moderado”, cujas proposições estabelecidas foram resumidas por J. N. D. Kelly da seguinte forma: “(a) como resultado da transgressão de Adão, tanto a morte como o pecado passaram a todos os seus descendentes; (b) por conseguinte, o livre-arbítrio do homem ficou tão distorcido e enfraquecido que ele é incapaz de crer em Deus e muito menos de amá-lo, a menos que para isso seja despertado e ajudado pela graça; (c) os santos do Antigo Testamento deviam seus méritos exclusivamente à graça e não à posse de algum bem natural; (d) a graça do batismo capacita todos os cristãos a cumprir, com a ajuda e a cooperação de Cristo, os deveres necessários para a salvação, contanto que façam os devidos esforços; (e) deve-se anatemizar com repulsa a predestinação para o mal; e (f) em toda boa ação, o primeiro impulso provém de Deus, e é esse impulso que nos instiga a buscar o batismo e, ainda com a ajuda dEle, a cumprir nossos deveres”.

Apesar de condenados o pelagianismo e o semipelagianismo, João Cassiano e Fausto mantiveram grande influência e “a doutrina [agostiniana] da graça irresistível da predestinação foi suplantada pela ideia da graça sacramental do batismo… Gradualmente, o declínio geral que houve na igreja católica romana a conduziu na direção descendente do semipelagianismo, que desde há muito garantira base segura no Oriente” (Berkhof). 

Na Reforma, os debates sobre pecado original, graça e salvação reacenderam, no contexto dos quais se destacou o reformador franco-genebrino João Calvino, que se insurgiu contra as decisões do II Concílio de Orange. 

As ideias dos reformadores em geral (e de Agostinho, em particular) sobre aqueles temas, por sua vez, foram anatemizadas no Concílio de contrarreforma em Trento. Os Cânones IV e V, produzidos na Sexta sessão de Trento merecem transcrição, para melhor compreensão do leitor: “IV. Quem quer que diga que o livre-arbítrio do homem, movido e instigado por Deus, não coopera de forma alguma com Deus quando instigado e movido, de forma que ele possa dispor-se e preparar-se para a obtenção da graça da justificação, e que ele não pode discordar, mesmo que queira, mas como algo inanimado não faz absolutamente nada, e age meramente de forma passiva, que ele seja anátema. V. Quem quer que diga que o livre-arbítrio do homem foi perdido ou extinto depois do pecado de Adão, ou que é algo meramente nominal, ou tão somente um termo, ou ainda, mera invenção introduzida na Igreja por Satanás, que ele seja anátema”. 

Mesmo no contexto das Igrejas Reformadas, Jacob Arminius questionou as noções calvinistas sobre salvação monergística e predestinação, no ambiente da Igreja da Holanda. A resposta às ideias de Arminius e seus discípulos, os “remonstrantes”, ocorreu no Sínodo de Dort e está registrada nos famosos “Cânones de Dort”. 

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