29 de outubro de 2017,
1ª Igreja de Caruaru,
Ary Queiroz Jr.
Calvino: notícias breves da vida e obra
Estando a 2 dias de celebrarmos os 500 anos daquela data especialíssima – 31 de outubro de 1517 -, dia em que Lutero fixou na porta da sua igreja suas famosas 95 Teses, voltamo-nos para compreender quão central e norteadora foi a cruz de Cristo ao pensamento do reformador franco-genebrino, João Calvino.
Em diversos aspectos, Calvino e Lutero tinham muito em comum. Ambos desistiram do curso de Direito no meio da trajetória para se dedicar ao ministério. Ambos expunham as Escrituras versículo por versículo, deviam sua compreensão do evangelho em grande medida à Carta aos Romanos, tinham grande estima pelo livro dos Salmos e estudaram hebraico por conta própria. Ambos foram contrários aos adjetivos “luterano” e “calvinista”. Ambos não quiseram, a princípio, deixar a igreja católica, mas sonharam com um catolicismo reformado de acordo com a Escritura. Ambos tinham seus momentos de depressão.
Por outro lado, Calvino e Lutero eram diferentes em muitos aspectos, inclusive no campo teológico. Lutero nasceu no fim do século XV (em 10 de novembro de 1483), na vila de Eisleben, na Alemanha, e Calvino, no início do século XVI (no dia 10 de julho de 1509), em Noyon, na França. Veja-se que Calvino foi um reformador de segunda geração. Quando ele nasceu, Lutero já tinha 26 anos. Quando Lutero fixou suas teses na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, em 1517, Calvino tinha 8 anos. Quando Calvino passou por aquilo que denominou “súbita conversão”, em 1533, ele tinha 24 anos e Lutero, 50 anos.
Calvino distinguia-se de Lutero também quanto ao temperamento. Lutero era destemido e não media palavras quando queria atacar quem quer que fosse. Ele chamou o papa Clemente VII de “arquipatife”. Em sua obra Advertência a Seus Estimados Alemães, de 1531, Lutero disse que os papas “não têm juízo nem vergonha”, são “dez vezes piores que os turcos”, “verdadeiros diabos”, “miseráveis patifes”, “assassinos sanguinários”, “miseráveis inimigos de Deus”, etc. Calvino, por sua vez, era muito mais tímido, menos arrojado e muito mais interessado em estudar e escrever em lugar sossegado.
Um ano após ser obrigado a fugir de Paris, em 1534, Calvino encontrou refúgio em Basileia, onde, em março de 1535, aos 26 anos de idade, publicou a primeira edição das Institutas da Religião Cristã. Mas Calvino tinha em mente Estrasburgo, cidade que lhe parecia adequada aos propósitos de dedicar-se ao labor teológico e literário, longe dos conflitos e dos holofotes.
Calvino e Lutero jamais se encontraram na terra. Em 1545, Calvino, com 36 anos, escreveu a Lutero, com 62 anos. O jovem francês referiu-se ao veterano alemão como “excelentíssimo pastor da igreja cristã”, “celebérrimo senhor”, “notabilíssimo ministro do Criador” e “meu pai respeitadíssimo e sempre honorável”. Nessa carta, disse Calvino: “Quisera poder voar até você para desfrutar da felicidade de sua companhia ao menos por algumas horas e conversar com você acerca de várias questões”.
Lutero morreu em 18 de fevereiro de 1546, quando tinha 62 anos, em Eisleben, sua terra natal. João Calvino morreu 18 anos depois, em 27 de maio de 1564, faltando menos de dois meses para completar cinquenta e cinco anos.
A vida do reformador de Genebra após a “súbita conversão” foi de dedicação integral à divulgação do evangelho. Além das Institutas, sua obra mais importante, comentou todo o Novo Testamento, à exceção de Apocalipse, e quase todos os livros do Antigo Testamento, faltando somente 9 deles. Seu comentário mais longo foi o dos Salmos, com 2.600 páginas, quando tinha 48 anos, em 1557.
A partir de 1541, aos 32 anos, Calvino iniciou sua residência permanente em Genebra. Até sua morte, 23 anos depois, pregou mais de 3.500 vezes, em torno de 170 sermões por ano. Nos primeiros 8 anos dessa permanência, pregou três dias por semana e duas vezes aos domingos. A partir de 1549, passou a pregar todos os dias em semanas alternadas. Pregou sequencialmente a vida inteira. Foram 89 sermões no livro de Atos, entre 1549 e 1554; 149 sermões em Ezequiel; 159 em Jó; 200 em Deuteronômio; 353 em Isaías; 123 em Gênesis, etc.
Faltar-me-ia tempo para discorrer mais minunciosamente sobre a produção literária, os sermões e os empreendimentos de Calvino, a exemplo da fundação da Universidade de Genebra, em 5 de maio de 1559, e do envio de missionários para toda a Europa, chegando mesmo a enviar pastores ordenados ao Brasil.
Mas tudo isso não transcorreu em meio a uma vida tranquila, farta, isenta de oposições e saudável. Calvino teve enxaquecas por 20 anos. Sofreu de artrite, gota, malária e pedra nos rins. Foi tuberculoso por 5 anos. Ademais, Calvino viveu em um dos séculos que foram aterrorizados pela peste negra. Quando ele tinha 10 anos, a peste negra dizimou 25% da população de Zurique. Em sua segunda permanência em Genebra, a partir de 1541, a peste negra voltou a assombrar. O comércio e a escola fecharam as portas. As poucas pessoas que iam à igreja sentavam longe umas das outras, com receio que o irmão do lado estivesse contagiado.
A cruz e a vida cristã em Calvino
Por óbvio, ficamos a perguntar sobre quais os motivos que levaram o mestre por excelência da Reforma Protestante a labutar tanto, de maneira tão persistente e profícua, em tempos e condições tão adversas. A resposta, sem sombra de dúvida, pode ser extraída das suas famosas Institutas, sobretudo da parte final do Livro 4, em seu tratamento Sobre a Vida Cristã.
Ali, Calvino discorre sobre o método divino para a nossa nossa santificação e adentra ao conceito de abnegação cristã, para com os homens e para com Deus. Abnegação para com Deus implica, de um lado, em que não devemos esperar prosperar à parte da bênção de Deus, nem tampouco atribuir aos nossos próprios méritos as conquistas que experimentamos. De outro lado, caso não consigamos prosperar na medida esperada, e mesmo que venhamos a regredir a ponto de sermos deixados na pobreza, a abnegação evolve suportar todas as coisas com paciência e equilíbrio: “Porque o crente fiel”, ensina Calvino, “desconsidera com maior tranquilidade todas as riquezas e honras do mundo porque tem o consolo de saber que todas as coisas que decorrem da ordenação e direção de Deus visam a sua salvação”.
Pois bem, essa atitude deve ser estendida a todas as demais situações a que estamos sujeitos nesta vida, visto que “ninguém terá devidamente renunciado a si mesmo, enquanto não se render de tal modo a Deus que aceite de boa vontade que a sua vida seja governada por seu beneplácito. Quem tiver esta disposição de ânimo, aconteça o que acontecer, não se considerará infeliz, nem se queixará de sua situação lançando acusações sobre Deus (…). Em resumo, sabedor de que tudo provém da mão do Senhor, o que quer que lhe advenha o crente fiel receberá com coração sereno e não ingrato ou ressentido (…)”.
É nesse ponto que Calvino anuncia que Cristo chama o cristão a subir a um ponto ainda mais alto, convocando cada crente a levar a sua cruz. Com efeito, “todos quantos o Senhor adotou e recebeu na comunidade dos seus filhos devem dispor-se e preparar-se para uma vida dura, laboriosa e repleta de labutas e de infindáveis espécies de males”. O reformador diz que é da vontade de Deus exercitar os seus servos e prová-los, aduzindo que se com Cristo, Seu Filho amado e unigênito, Deus procedeu desse modo, também o fará com os filhos que adotou. Entretanto, aqui também reside a nossa consolação, porque se formos coparticipantes da cruz de Cristo, passando por todo o abismo repleto de males que Ele passou, também entraremos, como Ele entrou, na glória celestial, aonde chegaremos por meio de muitas tribulações.
Assim, cumpre responder por que devemos seguir este caminho da cruz e por que somos afligidos por Deus. Calvino nos dá respostas adequadas, quais sejam:
- Em primeiro lugar, o caminho da cruz é necessário por causa da nossa propensão à autoexaltação, à arrogância e ao pensamento tolo de que somos invencíveis frente a todas as dificuldades.
A cruz, então, é a maneira como somos advertidos sobre a nossa fraqueza, ensinados a não confiar em nossas próprias forças e levados a confiar somente na graça de Deus. É aí que, rendidos, sentimos a presença e o poder de Deus, nos quais encontramos refúgio seguro.
- Em segundo lugar, o caminho da cruz ensina ao crente que Deus de fato lhe socorre nas horas da tribulação: “a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança” (Rm 5.3-4).
O crente humilhado, desesperado dos seus próprios recursos, quando se percebe perseverando com paciência, tem a experiência, a prova, de que Deus lhe sustenta com Suas mãos quando ele mesmo não poderia suster-se. É daí que exsurge a esperança, visto que o crente fiel conclui: “se Deus cuidou de mim em meio à muita prova de tribulação, quando sei que eu mesmo não poderia fazê-lo, estou certo também que Ele estabeleceu como certa a Sua promessa quanto ao futuro”. Calvino conclui sobre “quão necessário é o exercício da cruz”: ele extirpa nosso amor próprio, faz-nos reconhecer a própria debilidade, faz-nos desconfiar de nós mesmos, pormos nossa confiança e nos apoiarmos em Deus para que, através do Seu auxílio, permaneçamos firmes em Sua graça, conheçamos Sua fidelidade e tenhamos nossa esperança fortalecida.
- Em terceiro lugar, o exercício da cruz também revela as graças e virtudes que Deus tem aperfeiçoado nos que Ele santifica.
É por isso que Deus prova os que são Seus, testando-lhes a fé como o fogo prova o ouro, para tornar manifestas as graças que tem concedido aos seus santos. Dessa maneira, Deus impede que os dons graciosos com os quais orna o caráter daqueles que nEle creem se tornem inúteis, porque fechados neles mesmos. Por essa razão, Deus envia aflições, sem as quais a paciência ou a perseverança seriam nulas.
- Em quarto lugar, o exercício da cruz visa também controlar o desejo da nossa carne pela independência de Deus.
Somos, segundo Calvino ponderou com base em Deuteronômio 32.15, como cavalos fogosos, que, se deixados ociosos, tornam-se indomáveis a ponto de desconhecerem o dono. Isso acontece por causa da nossa ingratidão, visto que, quando recebemos um tanto da benevolência de Deus, ao invés de considerarmos Sua bondade nos tornamos, ao contrário, mais corrompidos do que estimulados a servi-lO.
- Em quinto lugar, o caminho da cruz nos mantém em obediência a Deus, porque aflições nos fazem pensar sobre desobediências passadas e por meio delas Deus leva avante a nossa salvação.
Deus nos aflige, assevera Calvino, “não para nos perder ou destruir-nos, mas para nos livrar da condenação deste mundo”. É aqui que a Escritura faz diferença entre o filho e o bastardo, entre o escravo e o livre (Pv 3.11-12, Hb 12.8): os incrédulos, “semelhantes aos escravos, tendo natureza perversa, só pioram e se endurecem quando recebem açoites; estes [os crentes fieis], como filhos bem nascidos, aproveitam bem os açoites, arrependendo-se e corrigindo-se. Saibamos escolher agora entre quais deles queremos estar”.
Conclusão
Foram também suas convicções fortes sobre a centralidade da cruz na vida cristã que levaram Calvino a, não obstante seu renome, talento e influência, guardar-se por toda a vida de vil orgulho. Calvino morreu (lembre-se) em 27 de maio de 1564, a 44 dias para completar 55 anos. Seu corpo foi sepultado no dia seguinte, um domingo, envolto num lençol e posto em ataúde de madeira, uma hora antes do culto na Catedral de Saint Pierre, sem pompa ou qualquer aparato. Quando estudantes recém-chegados a Genebra foram visitar seu túmulo, nada encontraram além de uma placa com a seguinte inscrição: “Aqui jaz João Calvino”. Até hoje, passados 453 anos, ninguém sabe, por determinação dele, onde se encontram seus restos mortais.