Introdução
Ainda antes de nos debruçarmos sobre os artigos do Credo dos Apóstolos, devemos nos certificar que o faremos com um olhar profundamente enraizado na ortodoxia, isto é, naquele conjunto de verdades emanadas das Escrituras, conforme nos legaram os antigos mestres cristãos, e que constitui o eixo central da fé cristã. Refiro-me aos dogmas mais caros de toda a cristandade, aos relacionados à Trindade Santa.
No enfrentamento desse palpitante assunto, devemos necessariamente tratar da diversidade de Pessoas na unidade da essência divina. Eis o desafio da presente lição, visto que, sem dúvida alguma, estamos a analisar uma das verdades mais misteriosas reveladas nas Escrituras e de mais difícil apreensão pela mente humana.
Advirto o leitor ainda que para nos aproximarmos de tema tão solene, importa considerarmos dois pontos importantes, quais sejam:
A necessidade de humildade
Concordamos com Paulo Anglada, quando afirma que “A doutrina da Trindade é uma verdade concebível apenas porque foi revelada – a mente humana jamais poderia imaginá-la”, razão pela qual devemos nos aproximar de tema tão sublime com “espírito de humildade” e permitindo que a Escritura ensine à razão e determine seu conteúdo.
Consciência da fundamentalidade do dogma trinitário
Não apenas com “espírito de humildade”, devemos nos aproximar do estudo da revelação acerca da Trindade cientes de quão essencial ela é a todas as demais doutrinas cristãs, tanto quanto à vida cristã prática.
Lutero a teve como “o maior artigo [de fé], do qual todos os outros derivam”, sem o qual nem sequer conhecemos o Deus verdadeiro. Calvino, por sua vez, avivou que se quisermos conhecer o Pai, devemos nos colocar ao lado dAquele que pode nos fazer conhecê-lo (Mt 11.17, Lc 10.22), acrescentando ainda: “Porque, como foi dito que é necessário que sejamos atraídos pelo Espírito do Pai para sermos incitados a buscar e receber a Jesus Cristo, assim, por outro lado, precisamos entender que não devemos procurar o Pai, que é invisível, de outra forma que não seja em Jesus Cristo, que é a sua imagem”. Conhecer a Deus é conhecer a Trindade!
O sentido bíblico da Trindade
A formulação clara da doutrina, conforme já exposto nas lições anteriores, remonta às lutas da Igreja nos primeiros séculos da era cristã, quando necessitou, para fazer frente às heresias então emergentes, defender o claro ensino das Escrituras a respeito. Nesse sentido, os Credos de Nicéia (de 325), o Niceno (de 381) e o de Atanásio (de data incerta).
A palavra “Trindade”, usada pela primeira vez por Tertuliano, designa a “tri-unidade” de Deus e indica que há um único Deus, indivisível em Sua essência, substância ou natureza, mas que subsiste em três pessoas distintas entre Si: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Isso quer significar que, quanto à essência, o Pai é o Deus verdadeiro, o Filho é o Deus verdadeiro e o Espírito Santo é o Deus verdadeiro, e que tudo quanto pode ser afirmado (quanto à essência) pertence igualmente ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.
Por outro lado, aquilo que é dito sobre cada pessoa da divindade não pode ser dito acerca da essência, visto que quanto à subsistência, Deus o Pai não é Deus o Filho, Deus o Filho não é Deus o Espírito Santo e Deus o Espírito Santo não é Deus o Pai – aqui reside a diversidade de pessoas na unidade da divindade.
Diz-se em teologia, a propósito da distinção entre as pessoas, que Deus o Pai é a pessoa não gerada, sendo a fonte eterna das demais subsistências; que Deus o Filho é a pessoa não criada e eternamente gerada do Pai; e que o Espírito Santo é a pessoa eternamente procedente do Pai e do Filho.
Cumpre-nos apontar, oportunamente, que as pessoas da divindade colaboram uma com as outras em todas as obras divinas, não sendo exagero afirmar que todas elas são trinitárias – do Pai, do Filho e do Espírito Santo. É porque há tal cooperação que a Bíblia afirma que o Pai ressuscitou a Jesus Cristo (Rm 4.24), que o Espírito Santo ressuscitou a Cristo (Rm 8.11) e que Jesus Cristo ressuscitou a Si mesmo (Jo 2.19, 10.17-18).
Sob outro ângulo, porque existem subsistências distintas, cada pessoa possui maneira própria de atuar, motivo pelo qual certas obras são mais estritamente atribuídas a uma das pessoas, e não às demais. Assim, embora se possa com toda a justeza afirmar que nossa salvação é trinitária, assumir a natureza humana foi ato especial do Filho, designar a assunção da natureza humana pelo Filho foi ato do Pai e formar uma natureza humana para o Filho foi ato do Espírito.
A Tri-unidade nas Escrituras
No Antigo Testamento, Deus Se revelou basicamente como o Deus único: “ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6.4; cf. Ex 20.3; Is 44.6). Entretanto, já ali encontramos robustos indícios de que há diversidade de pessoas na unidade do Seu ser. O emprego do nome plural “Elohim” para Deus, com verbos e adjetivos no singular (Gn 1.1), e o uso de verbos no plural, como em Gênesis 1.26, ilustram o ponto.
No Novo Testamento, a noção quanto à unidade de Deus é corroborada pelo testemunho de Jesus Cristo (Mc 12.29; Mt 4.10) e dos apóstolos (1Co 8.4; Ef 4.5-6; Tg 2.19). Todavia, é nessa última grande parte das Escrituras que Deus nos dá a conhecer de forma mais evidente que na unidade do Seu ser há três subsistências, pessoas ou hipóstases distintas entre Si. Essa realidade é apresentada graficamente, v.g., na cena do batismo de Jesus (Mt 3.16-17), na grande comissão (Mt 28.19), na promessa do outro Consolador (Jo 14.16-17; 15.26) e na bênção apostólica (2Co 13.13).
“Trindade ontológica” ou “existencial” e “Trindade econômica” ou “revelada”
Importa saber, nesse momento, em que sentido o Filho e o Espírito Santo estão subordinados ao Pai. Para responder essa questão, faz-se necessário distinguir o estudo da Trindade Ontológica ou Existencial da Trindade Econômica ou Revelada.
Na primeira perspectiva, a conclusão é que não há subordinação do Filho e do Espírito em relação ao Pai. Explique-se. Visto que se reconhece que as três pessoas coexistem na unidade da divindade, tudo que se diz acerca da essência de uma pessoa (espiritualidade, eternidade, infinidade, imutabilidade etc.), aplica-se às demais, como antes anotado. Nesse sentido, o Pai não é maior do que o Filho, nem o Filho maior do que o Espírito (Jo 10.30). Ou seja, na eternidade não há um único resquício de subordinação entre as pessoas santíssimas da divindade.
Por outro lado, no estudo da Trindade Econômica, observa-se como as pessoas da Trindade se relacionam entre Si com vistas à realização das obras da criação, da providência e da redenção. Nessa perspectiva, a conclusão inevitável é que um plano de ação foi traçado em que o Pai é a fonte, o Filho é o agente do Pai e o Espírito Santo, o agente do Pai e do Filho (Jo 14.28). No que tange à redenção, por exemplo, o Pai é a fonte e o autor da salvação da Igreja; o Filho, agindo em inteira dependência do Pai, é o agente que conquista a redenção da Igreja; e, o Espírito, em consonância com o que recebeu do Pai e do Filho, é o regenerador e santificador da Igreja.
Conclusão
Fundamentados naquele conjunto de verdades que nos chegaram pelos esforços dos antigos cristãos – a ortodoxia –, prontos estamos para avançar em nossos estudos e nos debruçarmos sobre as cláusulas do Credo dos Apóstolos, o que faremos nas lições seguintes.
À guisa de conclusão, porém, proponho ao leitor duas considerações preliminares importantes da lavra de Calvino. A primeira é que o Credo contém a confissão de duas espécies de realidades, umas visíveis e outras invisíveis. “O poder de Deus, o Espírito Santo, a remissão dos pecados, e outros artigos semelhantes, são realidades espirituais que não se vêm com os olhos da carne”. Por outro lado, “o nascimento, a morte, a ressurreição de Cristo, e sua ascensão ao céu, foram coisas vistas concretamente pelos homens”.
A segunda consideração inicial do reformador diz respeito à divisão do Credo dos Apóstolos. Ele o dividiu em quatro artigos. Os três primeiros recitam a crença do Pai e do Filho e do Espírito Santo e o quarto mostra os vários aspectos da nossa salvação. Os três primeiros artigos “constituem o seu fundamento e a sua substância essencial, a saber, a grande bondade e ternura do Pai… a obediência do Filho… e o poder do Espírito Santo…”. Colocado o fundamento, seguem as realidades salvadoras expressas “no tocante à igreja, à remissão dos pecados, à ressurreição do corpo e à vida eterna – que constituem a quarta parte do Símbolo”.
Podemos discordar de Calvino quanto ao modo de dividir os artigos do Credo, contanto que concordemos com ele que a fé trinitária é o fundamento de todas as realidades da nossa salvação.