O contraste entre as duas naturezas do Redentor – Gálatas 4.4
Segundo Sermão Natalino de 2020, Pregado na Primeira Igreja de Caruaru.
Decidimos que nos sermões natalinos de 2020 densificaríamos o diálogo em torno dos fatos e revelações da natividade e nos dedicaríamos ao tratamento da dupla natureza do Redentor. Na exposição anterior, tentamos esclarecer o fato de que a virgem concebeu um Ser completo, o Deus-homem, e que na concepção as duas naturezas do Redentor foram unidas para sempre no único Ente Jesus Cristo. Isso quer significar que, na concepção, o Espírito Santo uniu à natureza divina do Verbo eterno uma verdadeira humanidade, que passou a ser, além de verdadeiro Deus, verdadeiro homem.
Eis, por exemplo, o teor de Hebreus 10.5: “Por isso, ao entrar no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me formaste”. Percebamos que o texto se refere à natureza divina de Jesus com a expressão “ao entrar no mundo”, dando a entender a preexistência eterna do Filho de Deus. Mas, também, o texto fala sobre a recepção de um “corpo”. A linguagem aponta para algo extraordinário acontecendo. Um Ser preexistente recebe um “corpo”, ou seja, encarna, assume verdadeira humanidade.
Entretanto, deve-se pontuar que enquanto a natureza divina de Jesus Cristo é eternamente gerada do Pai (Ele é o Filho Unigênito!), a natureza humana de Jesus procede de Maria (Ele é o primogênito de Maria). É o que se pode concluir de Gálatas 4.4: “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”.
Paulo não diz exatamente como João, que o Verbo se fez carne (Jo 1.14), mas diz, nessa passagem, que “Deus enviou o seu Filho”. Esta frase nos leva a duas conclusões: primeiro, sobre a procedência divina da natureza divina de Jesus, já que Ele é o Filho de Deus. Jesus é o Filho de Deus de uma maneira exclusiva e eterna. Nunca houve um único instante em que Deus o Pai não tenha sido o Pai de Jesus e que Deus o Filho não tenha sido o Filho de Deus o Pai. E Jesus é chamado Filho de Deus porque gerado na eternidade por Deus; uma vez que Ele procede de Deus, é Filho de Deus.
Segundo, o texto nos leva à conclusão que Jesus sempre existiu, por isso diz que “Deus enviou o seu Filho”, frase que indica a preexistência eterna de Jesus e que Ele é Deus antes de assumir a natureza humana. Concluamos juntos, pois, que a frase “Deus enviou o seu Filho” informa sobre a natureza divina de Jesus e a procedência dessa natureza do Pai.
Mas, além disso, Jesus assumiu verdadeira humanidade. Isso também está no texto: “Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. A expressão “nascido de mulher” só pode significar que a natureza humana do Redentor é procedente de Maria.
A conclusão, portanto, é que Jesus possui duas naturezas inseparavelmente unidas desde a concepção no ventre da virgem: a divina é eterna e procede de Deus o Pai; a humana foi adquirida no milagre do Espírito na concepção virginal e procede de Maria.
Entretanto, uma natureza não se confunde com a outra nem é absorvida nem absorve a outra. Pelo contrário, elas permanecem, embora indissociáveis, inconfundíveis, conservando de forma intacta os atributos que lhe são particulares, embora, repito, unidas no único Ente Jesus Cristo.
Os pais declararam a respeito no Concílio da Calcedônia o seguinte:
Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de natureza de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência (hipóstasis); não dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu.
Concílio da Calcedônia
Bem, mas, qual a implicação prática de se afirmar que Jesus possui duas naturezas desde a concepção? O que significa dizer que Jesus Cristo é o Deus-homem, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem? Significa, sem querer ser redundante, que Ele possui todas as características que são próprias da divindade, porque é Deus (desde a eternidade), e todas as características que são próprias da humanidade, porque é homem (desde a concepção).
Para ilustrar esse mistério admirável, destacarei alguns contrastes entre as naturezas divina e humana de Jesus.
Porque Jesus é o Deus-homem, Ele é infinito e finito.
Jesus é infinito quanto ao tempo (eternidade) e quanto ao espaço (onipresença). Dizer que Jesus é eterno é dizer que nunca houve um “instante” em que Ele não tenha existido. E dizer que Ele é onipresente é dizer que nunca houve, não há nem haverá um “lugar” em que Ele estivesse, esteja ou venha a estar ausente.
Ao mesmo tempo, Jesus é finito quanto ao tempo. Houve um momento em que Ele não havia sido ainda concebido e, na concepção, Ele também se tornou finito quanto espaço, podendo ser percebido localmente, corporalmente localizado. A infinitude de Jesus não impediu Sua finitude nem foi absorvida por esta.
Então, porque Jesus é infinito, Sua glória sempre esteve inviolada em todo tempo e em todos os lugares e tanto é assim que nem a humanidade pode ocultá-la em todos os momentos (“vimos a sua glória”, disse João). Por outro lado, o Cristo infinito é também finito. Ele recebeu um corpo quando assumiu a nossa humanidade e poderia ser percebido em determinados lugares. João Batista viu a Jesus e disse: “Eis o cordeiro de Deus”. Os discípulos o viram subir quando da ascensão e lhes foi dito que o veriam voltar: “Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.11). Em uma passagem controversa, é dito que o Jesus que desceu do céu está no céu (Jo 3.13).
Porque Jesus é o Deus-homem, Ele é imutável e mutável.
A imutabilidade é própria da divindade. E a Bíblia diz que Jesus é imutável. O escritor aos Hebreus se refere a Jesus dizendo que Ele é “o mesmo ontem, hoje e o será para sempre” (Hb 13.8). Isso significa dizer também que Jesus é plenamente confiável e que Sua palavra jamais falhará ou será desmentida. Mas, por outro lado, Jesus se tornou também mutável à medida que se submeteu a todo o processo de sujeição ao tempo e ao espaço que é próprio da humanidade. Ele foi concebido, se desenvolveu como qualquer feto, nasceu e cresceu como qualquer criança, foi aperfeiçoado e amadureceu.
Porque Jesus é o Deus-homem, Ele é autoexistente, soberano e poderoso e, ao mesmo tempo, dependente, submisso e fraco.
A independência (decorrente da autoexistência) é um atributo incomunicável da divindade. Somente Deus possui a vida de si e por si mesmo e a Bíblia diz que Jesus é autoexistente, que Ele é a vida, que a vida estava nele, que ele tem vida em si mesmo (Jo 1.3; 5.26) – isso é autoexistência. É dito que Ele executa todas as coisas segundo o Seu querer e que, por exemplo, revela a verdade a quem quer (Mt 11.27), que ressuscita mortos (“o Filho vivifica a quem ele quer”, segundo João 5.21), que exerce o julgamento (Jo 5.27) que terá como base a observância das suas palavras (Mt 7.26,27) – isso é soberania, é exercício da autoridade plena. Além disso, a Escritura ensina que tudo foi feito por meio de Jesus, que sem Ele nada se fez e que Ele sustenta todas as coisas pela palavra do Seu poder (Jo 1.3; Hb 1.3) – isso é onipotência.
Mas, por outro lado, eis ali o Deus autoexistente, independente: um bebê recém-nascido na manjedoura de Belém, carecendo de todos os cuidados que qualquer recém-nascido carece, inclusive de ser protegido pelos pais da perseguição feroz de Herodes, e, por fim, pendurado numa cruz romana – isso é dependência. Ali estava o soberano, totalmente à mercê da vontade do Pai, sempre em oração e agindo no poder do Espírito (Lc 4.18,19; At 10.38) – isso é submissão. Também, ali estava o poderoso Criador e sustentador de todas as coisas, no céu e na terra, Aquele que transformou água em vinho, acalmou o mar e a tempestade, multiplicou pães e peixes… sentindo fome, sede e cansaço, dormindo, comendo, bebendo… e morrendo – isso é fraqueza.
Porque Jesus é o Deus-homem, Ele é onisciente e carente de conhecimento.
A onisciência é própria da divindade. Deus conhece todas as coisas passadas, presentes e futuras como se tudo estivesse perante Ele em um eterno instante, inclusive todas as coisas que poderiam ter ocorrido. Jesus, porque divino, coigual ao Pai e ao Espírito, é onisciente. Vislumbres da Sua onisciência fulguravam quando, v.g., via o que estava no coração das pessoas, lia seus pensamentos e antecipava suas indagações. Mas ali estava o onisciente, Aquele que sabia o que estava no coração dos homens, que conhecia as preconcepções do fariseu Simão, que viu Natanael debaixo da figueira (Jo 1.47,48; 2.24; Lc 7.39,40), precisando ser alfabetizado na língua aramaica, aprender o hebraico para ler as Escrituras e sem saber, até ali, o dia e a hora da Sua vinda (Mt 24.36).
Porque Jesus é o Deus-homem, Ele é intentável e tentável.
Porque Jesus é Deus, Ele é moralmente perfeito e possuidor de todas as coisas, sendo bastante em si mesmo, razão pela qual Tiago diz que “Deus não pode ser tentado pelo mal” (Tg 1.13). Isso quer significar que é impossível que Ele se veja atraído pelo pecado ou que o cobice em quaisquer de suas formas ou que deseje algo que não possui.
Entretanto, porque Jesus é homem, Ele foi, mas não só, tentado no deserto por Satanás em virtude da Sua natureza humana: Ele estava cansado, com fome e com sede e a tentação ocorreu no contexto dessas limitações que são próprias da humanidade (Mt 4). O escritor aos Hebreus afirma, nesse sentido, que “foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15).
Conclusão
Pois bem, muitas outras coisas poderiam ser ditas para ressaltar o contraste entre as duas naturezas do Redentor, inseparavelmente unidas na encarnação. Gregório de Nazianzo, bispo de Constantinopla entre os anos de 379 a 381, foi um articulador poderoso da doutrina ortodoxa da dupla natureza do Salvador contra os arianos. Ele disse, nesse sentido:
Ele foi batizado como homem – mas remiu os pecados como Deus. … Ele foi tentado como homem, mas venceu como Deus. … Ele teve fome – mas alimentou milhares. … Ele estava fatigado, mas é o descanso daqueles que estão cansados e oprimidos. Ele teve um sono pesado, mas caminhou levemente sobre o mar. … Ele pagou tributo, mas foi tirado de um peixe; sim, Ele é o rei daqueles que o requereram dele. … Ele ora, mas também ouve orações. Ele chorou, mas faz as lágrimas secarem. Ele perguntou onde puseram Lázaro, porque era homem; mas o ressuscitou porque era Deus. Ele foi vendido, e muito barato, pois foram somente trinta peças de prata; mas redimiu o mundo, pagando alto preço, pois o preço foi seu sangue. Como ovelha foi levado ao matadouro, mas Ele é o pastor de Israel e agora também de todo o mundo. … Ele foi traspassado e moído, mas cura toda enfermidade. Ele foi levantado e pregado no madeiro, mas, pela árvore da vida, Ele nos restaura. Ele morre, mas dá vida, e por sua morte destrói a morte (citado por Hall).
Chegamos, portanto, às seguintes conclusões:
- Jesus possui duas naturezas desde a concepção: a divina, procedente da divindade, é eternamente preexistente; a humana, procedente de Maria, decorrente do milagre do Espírito no ventre da virgem;
- Essas naturezas estão imutável e eternamente inseparáveis e unidas indivisivelmente no Ente Jesus Cristo. Os atributos da humanidade não afastam a divindade de Jesus, nem os atributos da divindade, Sua humanidade;
- No entanto, essas naturezas são inconfundíveis: uma natureza nunca se confunde com a outra nem nunca opera segundo a outra. Ou seja, a união das naturezas não anula a distinção que há entre elas, restando intactas as propriedades de cada uma.
Assim, quando quiserem “provar” ao leitor que Jesus é apenas Deus, apresentem as provas cabais da Sua humanidade – digam que Ele está no céu, à direita do Pai todo poderoso. E quando quiserem convencê-lo que Jesus é apenas homem, demonstrem que Ele possui atributos que somente Deus possui – que Ele habita entre nós e está conosco.
Nós precisamos do Deus-homem! Ele só é o Salvador todo poderoso, capaz de nos dá uma salvação eterna e toda suficiente, porque é o Deus-homem. É o que veremos nos próximos textos.