Escatologia

O Amilenismo

Teologia Sistemática
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Modo noturno

Nesse passo, tentarei esclarecer o que tem sido ensinado sob o título de escatologia amilenista. 

Para o amilenismo, estamos hoje vivendo o reino milenar, que começou na primeira vinda de Cristo e terminará pouco antes da Segunda Vinda, quando a missão da Igreja estiver cumprida e Satanás for solto por um pouco de tempo para um período em que coincidem a grande tribulação, a apostasia final e o aparecimento do Anticristo. 

Na presente era, Satanás está preso, no sentido de que não poder impedir a propagação do evangelho. São as bênçãos do milênio, portanto, que tornam possíveis os avanços evangelísticos e missionários da Igreja. Enquanto a Igreja na terra avança, os crentes que já morreram estão vivendo e reinando com Cristo, no céu, aguardando o dia da ressurreição dos corpos. Seu estado atual é de bem-aventurança indizível, embora não completa até que ressuscitem em seus corpos.

Os sinais que precederão a Segunda Vinda do Senhor são, em verdade, intensificações de acontecimentos e realidades que a Igreja vem experimentando em toda a História, tais como a apostasia, a perseguição, o surgimento do Anticristo e a pregação do evangelho a todas as nações. Com efeito, nenhum desses fenômenos são novos. Mas, quanto mais nos aproximamos da Segunda Vinda do Senhor, tais sinais vão sendo intensificados e universalizados em uma proporção ainda não vista.

A Segunda Vinda de Cristo será um evento único, ocasião em que ocorrerá uma ressurreição geral, de crentes e descrentes. Os crentes vivos nesse dia serão subitamente transformados, glorificados (1Co 15.51, 52), e, juntamente com os crentes que morreram, então ressurretos, arrebatados ao encontro do Senhor. 

O arrebatamento será para todos os crentes, com o propósito de retirar a Igreja para que não colha a ira de Deus que será derramada sobre o mundo impiedoso, momento após o qual segue-se o juízo. Após o julgamento, instala-se o Estado Eterno. Os descrentes serão afastados eternamente da presença graciosa de Deus e lançados no inferno. Os crentes, em estado glorificado, viverão as riquezas da Nova Terra e do Novo Céu (sobre as quais comentaremos no próximo estudo) em corpos glorificados. 

Essa foi a corrente escatológica aceita, em geral, pelos reformadores. Quanto a isso, Berkhof esclarece que “no tempo da reforma, a doutrina do milênio foi rejeitada pelas Igrejas Protestantes, todavia reviveu em algumas seitas, tais como entre os anabatistas mais fanáticos e os da Quinta Monarquia. Lutero rejeitou com desprezo o “sonho” de que havia um reino de Cristo na terra antes do dia do juízo”. O autor corrobora sua asserção mencionando a Confissão de Augsburgo (confissão luterana) e a segunda Confissão Helvética (Igreja Reformada da Holanda). A esses documentos, acrescentamos a Confissão de Fé de Westminster (subscrita pelos presbiterianos) e a Confissão de Fé Batista de 1689.

O amilenismo e os congregacionais

Dentre os congregacionais, a Declaração de Savoy dá forte testemunho do amilenismo. O capítulo XXXII, que trata “Do Estado dos Homens e da Morte e da Ressurreição dos Mortos”, afirma que: “No último dia, os que se encontrarem ainda vivos não morrerão, mas serão transformados; e todos os mortos ressuscitarão com seus mesmos corpos, e não outros, ainda que com propriedades diferentes, os quais se unirão novamente às suas almas, para sempre. Os corpos dos injustos, pelo poder de Cristo, ressuscitarão para desonra; os corpos dos justos, pelo seu Espírito, ressuscitarão para honra e para serem feitos semelhantes ao próprio corpo glorioso de Cristo”.

“A Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo” – a Confissão histórica dos congregacionais brasileiros -, em seu artigo 27, afirma que Cristo, em sua Segunda Vinda, julgará todo o mundo, com a seguinte dicção: “Nosso Senhor Jesus Cristo virá do céu como homem, em sua própria glória e na glória de Seu Pai, com todos os santos e anjos e assentar-se-á no trono de sua glória e julgará todas as nações”. Vê-se claramente que a Segunda Vinda de Cristo, conforme a Breve Exposição, não trará a instalação de um reino milenar terreno, mas o juízo final.

O artigo 28, indubitavelmente, ensina a existência de uma única ressurreição geral, para crentes e descrentes, in verbis: “Vem a hora em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e ressuscitarão; os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Os crentes que nesse tempo estiverem vivos serão mudados e sendo arrebatados estarão para sempre com o Senhor. Os outros também ressucitarão, mas para a condenação”. 

A Dra. Joyce Elizabeth Winifred Every-Clayton, em sua tese de doutorado, afirma não perceber sinais de uma interpretação dispensacionalista por parte de Robet Kalley, o missionário fundador do congregacionalismo brasileiro. Assevera que, “igualmente, não se encontra nele qualquer referência a uma tribulação de três anos e meio”. Adiante, continua afirmando que “o não dispensacionalismo de Kalley se faz evidente também por meio de uma ausência total de detalhes sobre o milênio, e em seu ensino sobre o Reino não há nenhuma referência ao mesmo”. Por fim, a Dra. Joyce cita as palavras do próprio Kalley: “Me parece que o essencial deste reino em nosso mundo é sempre uma forma de governo divino… Esta forma de governo para com os criminosos (o poder de Deus para salvar, não podia estabelecer-se senão sobre esse (…) alicerce de justiça e santidade… Os termos desta forma de governo foram determinados pelo Pai, Filho e Espírito Santo antes de haver mundo, mas não foram de facto (…) realizados até a morte de Jesus. A esta consumação da Sua missão a alma do Salvador olhava com desejos ardentes. E me parece razoável que era a este estabelecimento do reino que Se referia. Era essencialmente a mesma coisa como o cumprimento do tipo pascal”.

Parece-nos evidente que sobre as mesmas bases é possível afirmar não apenas o “não dispensacionalismo” de Kalley, mas igualmente o seu “não pré-milenismo”.

A interpretação do Apocalipse: o “paralelismo progressivo”

Apocalipse é, em geral, um Livro de símbolos, que devem ser interpretados à luz de outros textos apocalípticos da Escritura, quando o significado literal não for informado pelo próprio texto. Pode ocorrer de o próprio texto dizer qual é o significado do símbolo, caso em que se diz que esse significado indicado é o literal. Conferir, por exemplo, os versículos 12 e 16 com o 20, do capítulo 1 do livro, caso em que há verdadeira interpretação autêntica, visto que o texto não requer que busquemos o significado em outro lugar da Escritura, muito menos que imponhamos significado estranho a ela. Outro exemplo de interpretação autêntica está em 12.9: não há dúvidas sobre quem é o “grande dragão”.

Encotra-se também no livro referências espaço-temporais que requerem uma interpretação literal. Quando João diz “achei-me na ilha chamada Patos”, não pode haver dívida que ele estava se referindo ao lugar onde teve suas visões (1.9). O mesmo pode ser dito quanto à ordem de escrevê-las às sete igrejas (1.11). Nesses casos, “Patmos” não pode significar outra coisa além da ilha onde o apóstolo estava exilado, nem as sete igrejas tampouco pode significar períodos sucessivos da História da Igreja, noção completamente estranha à passagem.

Por outro lado, “Achei-me em espírito” (1.10) certamente aponta à experiência espiritual de João. Ou seja, a visão que deve ser enviada às sete igrejas literais é de natureza espiritual. João não viu coisas literais; ele teve visões espirituais. Aquilo que faz parte da visão propriamente dita é espiritual (vide vs. 12-16), simbólico. 

Sendo o Apocalipse um livro de visões espirituais, consistentes de símbolos de realidades espirituais, por que deveríamos interpretar o “milênio” literalmente? Faz mais sentido interpretar Apocalipse 20 compreendendo-o à luz das conquistas de Cristo e do reinado inaugurado na primeira vinda. Desde então, Cristo já possui toda a autoridade nos céus e na terra, sobre os quais reina absoluto (Mt 28.18; At 2.36). Um reino terreno a partir de Jerusalém seria uma diminuição do reino que Cristo exerce desde então. Jesus já reina sozinho, porque o seu reino é um reino mediador, messiânico, redentor, por meio do qual Cristo está submetendo os inimigos sob seus pés até seu completo esmagamento. Assim, repita-se, por que deveríamos interpretar Apocalipse 20 literalmente?

Mas não só. O estilo literário do livro de Apocalipse exige uma interpretação simbólica, como também o estilo literário de Apocalipse 20. É um equívoco fazer uma leitura cronológica de Apocalipse 19 e 20. Esse equívoco acontece porque os intérpretes olvidam que o Apocalipse de João faz sucessivas recapitulações da presente era, não se tratando de uma história linear. Ele possui ciclos que recapitulam a História da Igreja. O primeiro inérprete a entender esses ciclos foi Vitorino de Petóvio (falecido em 303 ou 304 d.C.), conhecido como o primeiro comentarista do Apocalipse de João. 

Mais recentemente, quem melhor elucidou a interpretação do Apocalipse, segundo nosso juízo, foi William Hendriksen com o seu “paralelismo progressivo”. Para Hendriksen, Apocalipse consiste de sete seções paralelas entre si, cada uma delas descrevendo a História que se passa entre a primeira vinda e a Parousia de Cristo. As seções, embora sejam paralelas – isto é, narrem simbolicamente o mesmo período histórico -, são progressivas. Isto é, a seção seguinte não meramente repete a anterior, mas descreve o mesmo período com mais clareza até nos conduzir ao clímax apresentado completamente na última seção.

As sete seções estão agrupadas em duas grandes divisões principais. A primeira (capítulos 1-11) concentra-se na perseguição que a Igreja padece sob o sistema do mundo e dos ímpios. O conflito dar-se entre os homens e o mundo ataca a Igreja, que é protegida e vingada. A segunda seção (capítulos 12-22) apresenta o pano de fundo espiritual da perseguição contra a Igreja, o que está subjacente a essa perseguição. A perseguição perpetrada pelos ímpios contra  Igreja, conforme nos é revelado na última grande seção, é apenas a manifestação da fúria do dragão contra Filho de Deus e da frustração pela derrota sofrida, que, para tanto, congrega os esforços das bestas e da grande meretriz, todos finalmente derrotados na Segunda Vinda do Senhor.

As seções paralelas de Apocalipse são as seguintes: 

(1) Apocalipse 1-3 (Cristo no meio dos candeeiros). Cristo é descrito como Aquele que morreu, ressuscitou e voltará. Ele tem o controle das igrejas em suas mãos. Aqui, há um anúncio da segunda vinda (1.7), mas sem referência ao juízo final.

(2) Apocalipse 4-7 (a visão do céu e dos sete selos). Cristo tem o controle da História em suas mãos. Sua morte é contemplada e a seção termina com uma cena da Segunda Vinda e do juízo, momento em que os ímpios se quedam aterrorizados ante a ira do Cordeiro.

(3) Apocalipse 8-11 (as sete trombetas). As trombetas são avisos divinos, fornecidos antes do derramamento total do juízo de Deus, objeto das sete taças. Nessa seção, a Igreja é protegida, vingada e finalmente triunfa. 

(4) Apocalipse 12-14 (o dragão perseguidor e as sete vozes). A seção retorna ao primeiro advento de Cristo, seguido da perseguição do dragão a Cristo e Sua Igreja, teminando com uma nova cena do juízo final.  

(5) Apocalipse 15-16 (as sete taças). As sete taças representam a visitação última da ira de Deus sobre os que permanecem impenitentes. Há uma cena celestial que retrata Cristo com o seu povo e outra descrição do juízo final. 

(6) Apocalipse 17-19 (a queda da Babilônia e as sete cenas de julgamento). A seção descreve a destruição do aliados do dragão, a besta e seus seguidores, o falso profeta e a meretriz. Enquanto a meretriz é destruída, a Igreja é apresentada como a esposa de Cristo, no momento da festa das núpcias. A seção termina com o juízo final e uma descrição da Segunda Vinda de Cristo. 

Observe-se que os seis primeiros ciclos recapitulam toda a presente era, entre a primeira vinda e a Parousia, e terminam com um anúncio do fim ((1) Ap 1.7; (2) 6.12-17; (3) 11.15-19; (4) 14.14-20; (5) 16.12-21; (6) 19.1-21).

(7) Apocalipse 20-22 (as sete cenas finais da grande consumação). A última seção não foge à regra. No capítulo 20, a História é recontada para explicar a derrota final de Satanás, a fim de que todos os detalhes fiquem completos. Esse ciclo retorna ao início da era cristã, que é apresentada em termos de um reio milenar que teve início na primeira vinda de Cristo, e termina com a descrição do juízo final (20.7-10) e dos Novos Céus e Nova Terra. 

Uma leitura linear de Apocalipse pressuporia que o mundo acabaria inúmeras vezes e que haveria inúmeros juízos. Portanto, é um equívoco interpretar Apocalipse 20 como a continuação cronológica do capítulo 19. Na verdade, em Apocalipse 19 todos já morreram (as nações, os ímpios), houve ali um encerramento da História. Não faz sentido ver Satanás enganando as nações em Apocalipse 20 se elas já tivessem sido esmagadas no capítulo 19. Em Apocalipse 20, ao contrário, a História é recapitulada.

O evidente simbolismo de Apocalipse 20.1-10

Neste tópico, analisaremos de forma mais detida Apocalpse 20.1-10. 

Os versículos 1-3 trazem o aprisionamento de Satanás por mil anos, uma descrição espiritual da derrota que Jesus lhe impôs na primeira vinda. Essa prisão de Satanás tem relação com a expulsão de Satanás do céu. Satanás é o deus deste século e cega o entendimento dos incrédulos (2Co 4.3, 4). Além disso, faz constante oposição ao avanço missionário da Igreja (1Ts 2.18; Mt 13.4, 19). Nada obstante, ele está “preso” no sentido de não poder mais manter as nações na completa escuridão, distantes da luz do evangelho (2Tm 2.9). 

Era nessa condição que as nações se encontravam na época do Antigo Testamento. Só havia salvação em Israel, à exceção de Jonas em Nínive, quando Deus usou o episódio para dar uma demonstração a Israel de que sua posição privilegiada se devia tão somente à livre escolha divina. Não havia comunidades de salvos em qualquer outra nação. Eventuais gentios salvos existiram, mas sempre em função do contato permanente com Israel (vide os casos de Raabe e Rute). Essa condição perdura até a ressurreição de Jesus.

Israel não mandava missionários para levar a luz do conhecimento de Deus às nações, e não o fazia por rebeldia, mas porque não havia mandato (nem mandado). Mesmo Jesus não recebeu os gregos, não evangelizou ordinariamente os estrangeiros (Jo 12.20-32; Mt 10.6; 15.24), porque só poderia fazer isso oficialmente após sua morte, ressurreição e ascensão.

Após a primeira vinda, algo extreordinário aconteceu. Uma etapa necessária, jurídica e legal, foi cumprida e Satanás, acusador dos irmãos no céu e o enganador de todo o mundo na terra, foi deposto da sua função (Ap 12.9; Cl 2.14, 15). A palavra usada em Apocalipse 12.9 (sedutor) é correlata do verbo “enganar”, de 20.3. A profecia de Isaías 60 se cumpre em grande medida na primeira vinda de Jesus. 

Observemos que Satanás perde a autoridade (Lc 4.6) para manter as nações sob seu engano quando expulso do céu, que decorre da morte, ressurreição e ascensão de Cristo, quando o reino de Deus foi estabelecido, bem como a autoridade do Rei (Ap 12.10, 11; Mt 28.18). Essa “autoridade” de Satanás, ressalte-se, implicava a sua condição legal de poder manter as nações sob a sua sedução, sem o conhecimento do evangelho. Ela foi perdida porque Cristo tomou essa autoridade de forma legítima, abrindo o caminho do evangelho às nações. 

A relação de Apocalipse 20 com a primeira vinda se revela inconteste também quando observamos os termos usados por Jesus para se referir ao processo que Ele havia iniciado e que culminaria na morte, ressurreição e ascensão. Mateus 12.29, por exemplo, informa que Jesus estava no processo de aprisionamento de Satanás, limitando seu poder. A palavra “amarrar” é a mesma de Apocalipse 20.2. Em Lucas 10.17-18, Jesus teve uma visão de Satanás caindo do céu como um relâmpago, enquanto os discípulos expulsavam demônios (cf. Jo 12.31-32). Nessa derrota final e definitiva, Satanás é “amarrado” para não mais enganar as nações (Hb 2.14; Cl 2.13-15; Mt 18.18-20).

A conclusão é que Apocalipse 20 esta recontando a História, ao voltar ao momento crucial em que Satanás perde a condição legal de manter as nações distantes da luz do evangelho. Isso explica o avanço do evangelho às nações, a despeito de toda a perseguição sofrida pelos missionários. A cena de Apocalipse 20.1-3, portanto, não é literal, mas apenas uma descrição dos atos poderosos de Cristo na primeira vinda e o modo como Ele restringiu Satanás. Nada na cena pode ser interpretado literalmente, nem o dragão, nem o abismo, nem a corrente,, nem o ato de amarrar, nem o selo. 

Como não é possível interpretar tudo literalmente, a escolha do que se deve interpretar literal ou espiritualmente ficaria ao arbítrio do intérprete, o que não pode ser consentido. Assim, a chave interpretativa de Apocalipse 20 é o que o Novo Testamento diz sobre a derrota que Jesus imprimiu a Satanás na sua primeira vinda. Nada é literal na passagem. Tudo é simbólico. 

Feita essa breve introdução, as seguintes proposições sobre a passagem podem ser expostas:

Em primeiro lugar, o aprisionamento de Satanás tem apenas um objetivo: impedir que ele engane as nações. E isso foi uma conquista da cruz! As demais coisas, o texto não diz que Satanás não possa fazer (Tg 4.7; 1Pe 5.8-9; Ef 6.11, 16). Satanás pode nos atacar individualmente, mas não retomar o poder que outrora possuiu sobre as nações: a “autoridade” para enganá-las. “Enganar” é termo que Paulo usa para descrever o que Satanás fez com Eva (2Co 11.3). Isso se torna termo técnico para descrever a atividade satânica – o sedutor/enganador de todo o mundo (Ap 12.9). 

Ele fica restrito pelo poder de Jesus até que lhe seja permitido agir outra vez (“Depois disto, é necessário que ele seja solto pouco tempo”), quando surgirá o anticristo (2Ts 2). Que o objetivo do aprisionamento de Satanás é impedi-lo de enganar as nações, fica evidente também quando se diz que após a sua soltura ele voltará a “seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra” (vs. 7, 8). Estando preso, não poderia fazê-lo; uma vez solto, voltará a fazer. 

Em segundo lugar, o versículo 4 menciona o reinado das almas dos decapitados por mil anos. João disse que viu almas sentadas em tronos. Não disse que estariam na terra. Onde estão essas almas? Onde estão esses tronos? A passagem não menciona, porque se trata de uma cena celestial. Essas almas estão no céu, onde já reinam com Cristo. Sempre que “tronos” aparecem em Apocalipse, eles estão no céu.

Os tronos estão postos no céu, onde os crentes mortos reinam com Cristo. No livro de Apocalipse a palavra “trono” é utilizada 47 vezes, das quais todas, à exceção de três – que se referem ao trono de Satanás (2.13; 13.2; 16.10) -, parecem estar nos céus. Se acrescentarmos a esta consideração o fato de João ver “as almas dos decapitados”, somo levados à conclusão de que o local da visão de João foi agora transferido para o céu. Podemos então dizer que, embora os mil anos, descritos nesses seis versículos, sejam os mesmíssimos, os versos 1 a 3 descrevem o que se passa na terra durante esta época, enquanto os versículos 4 a 6 retratam o que acontece no céu.  

João já tinha visto essas almas antes, no quinto selo – elas estão no céu e querem vingança “dos que habitam sobre a terra” (Ap 6.9-11). Mas em Apocalipse 20 não há apenas a recapitulação dessa cena, há também informações novas, quando somente então ficamos sabendo que essas almas não estão apenas descansando (cf. 14.13), mas reinando e julgando com Cristo (Ap 3.21). Mas João viu somente os mártires, porque seu interesse é dizer o que acontece com aqueles que morrem pelo testemunho de Jesus e pela Palavra de Deus. 

Em terceiro lugar, as almas dos decapitados “viveram e reinaram com Cristo por mil anos (v. 4). O versículo 5 diz que essa é a primeira ressurreição. Isso não tem a ver com a ressurreição dos corpos, evento que será descrito nos versículos 11 e seguintes como algo diverso do que se dá aqui. Esta “primeira ressurreição”, portanto, é o partir e estar com Cristo (Fp 1.23). Segundo Hendriksen, “é a trasladação da alma da terra pecaminosa para o céu glorioso de Deus. É seguida, na segunda vinda de Cristo, pela segunda ressureição, quando o corpo, também, será glorificado”. Sobre os que participam da primeira ressurreição, a segunda morte não tem autoridade (vs. 6, 14).

Sobre isso, Hoekema esclarece: “(…) entendemos que a palavra ezesan (viveram, ou vieram à vida) no verso 4, descreve o fato de que as almas dos crentes que morreram estão agora vivendo com Cristo no céu e compartilhando de seu reinado durante o estado intermediário entre morte e ressurreição (…) estamos agora no milênio, e o reinado de Cristo com os crentes durante este milênio não é terreno, mas sim celestial”. 

Em quarto lugar, se a passagem for interpretada literalmente, somente os mártires ressuscitarão para o milênio. Os restantes, salvos e perdidos, não ressuscitarão (Ap 20.4-5). Nesse ponto, os pré-milenistas são obrigados a interpretar a passagem simbolicamente, para evitar a conclusão que ninguém aceita. Na verdade, João tem interesse em demonstrar na passagem a recompensa dos mártires, sem excluir os demais crentes (Ap 14.13), e não falar sobre um reinado terreno na terra, em Jerusalém.

Em quinto lugar, a situação dos incrédulos é descrita no vfersículo 5: “Mas os outros mortos [a menção é sempre a pessoas mortas] não reviveram, até que os mil anos se acabaram”. Quanto ao descrentes mortos, nada têm a compartilhar da vida e do reinado com Cristo. Deles, não se pode dizer que morrer é partir e estar com Cristo (Fp 1.23) ou deixar o corpo e habitar com o Senhor (2Co 5.8). O verbo “reviveram” traduz o grego exesan, que não a força que a tradução portuguesa empresta a palavra. João diz apenas que “os restantes dos mortos não viveram” (tradução minha). 

Em sexto lugar, os versículos 7-9 falam da soltura se Satanás para seduzir as nações e congregar Gogue e Magogue para a batalha final. Gogue foi um rei de Magogue, da Síria – um personagem e uma nação que não mais existem. Seria mais um caso de interpretação simbólica da passagem? Esse simbolismo não pode ser preenchido com nações contemporâneas (China, Rússia etc.), sob pena de cair-se em inaceitável subjetivismo.

Essa soltura de Satanás será por pouco tempo (vs. 3, 7). Ele voltará a “seduzir as nações que há nos quatro cantos da terra” (v. 8). Esse período coincide com os sinais que guardam relação de proximidade com a Parousia: a revelação do homem da iniquidade, a grande tribulação e a apostasia final.  

Indubitavelmente, temos deste modo descrita a última e mais atroz perseguição de Satanás contra a Igreja, sob o governo do Anticristo. Em Ezequel, Gogue é um tipo da perseguição perpetrada contra os judeus sob Antíoco Epifânio, governador da Síria. O símbolo é adequado por ter esse odiado rei assolado o povo judeu sob horrenda crueldade, mas por breve tempo. Destarte, a Igreja será, por fim, assolada pela totalidade do mundo em uma perseguição mundial, mas, igualmente, por breve tempo. A Igreja é aqui descrita como a cidade amada e acampamento dos santos.

Observe o leitor que não há uma guerra literal: “desceu, porém, fogo do céu e os consumiu”. Os santos não têm que pelejar com espadas. Tampouco podemos falar em termos de nações cristãs e nações pagãs, em uma guerra literal. A Igreja de Deus é constituída de um povo internacional. O que temos aqui é a descrição da destruição repentina que abaterá o mundo perseguidor da Igreja. “Quando andarem dizendo: Paz e segurança, eis que lhes sobrevirá repentina destruição, como vêm as dores de parto à que está para dar à luz; e de nenhum modo escaparão” (2Ts 5.3).

Como sabemos disso? A regra áurea de interpretação da Escritura é que ela elucida a si mesma. Esse simbolismo deve ser buscado na Escritura, portanto. E, de fato, Ezequiel 39.11, onde aperece a batalha de Gogue e Magogue, é a fonte do pensamento de João. Observando-se, no entanto, Ezequiel 39.17-20, vê-se que a batalha de Gogue e Magogue é a das aves e, em Apocalipse, a mesma batalha é descrita em Ap 19.17-18. Isso nos leva à conclusão que Apocalipse 20 não é a sequência cronológica do capítulo 19, mas que a mesma História desse está sendo recapitulada naquele, embora com detalhes não contemplados antes. 

No próximo estudo, focaremos os eventos do dia do Senhor e a instalação do Estado Eterno.

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