Escatologia

As Escolas Milenaristas

Teologia Sistemática
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Analisaremos, neste estudo e no seguinte, as principais correntes sobre a interpretação do milênio. Elas diferem entre si quanto à relação da Segunda Vinda de Cristo com o reino milenar, mas também no que diz respeito à própria natureza do milênio. O “pós-milenismo” entende que Cristo voltará após o milênio, enquanto as escolas “pré-milenistas”, que voltará antes do milênio. O que se convencionou chamar de “amilenismo” será melhor observado no próximo estudo. Entretanto, vale destacar que os temas em torno das correntes escatológicas são secundários e não devem ser consideradas “heréticas” as posições que diferem das que adotamos. Ademais, que todos concordamos sobre as seguintes verdades: primeiro, que Cristo voltará; segundo, que Cristo ressuscitará todos os mortos; terceiro, que Cristo executará julgamento; e, quarto, que Cristo instalará o Estado Eterno.

Pós-milenismo: a escatologia “otimista”

Esta é uma das quatro correntes que disputam a crença dos evangélicos quanto ao significado do milênio, e quanto aos assuntos escatológicos em geral. O pós-milenismo crê que a presente dispensação é de progresso espiritual. O Reino de Deus está sendo estendido agora no mundo. Por isso, espera-se a conversão da grande maioria da humanidade, que é basicamente a promessa e o significado constantes da “grande comissão”.

Embora reconhecendo que períodos de avanços se alternam com períodos de declínio, os pós-milenistas estão prontos a asseverar que o mundo está progredindo espiritualmente. Para demonstrar sua crença, destacam os seguintes pontos: em primeiro lugar, o mundo como um todo está em um plano mais elevado. A escravidão e a poligamia praticamente desapareceram, e a situação social das mulheres e das crianças em muito progrediu. Em segundo lugar, há cooperação entre as nações no plano internacional. Isso inclui consenso quanto ao trato sobre os direitos humanos e o combate à macro-criminalidade. Em terceiro lugar, o avanço da atividade evangelística e missionária é evidente. A Bíblia está disponível inteira ou parcialmente nas línguas de 98% das pessoas do mundo. E o cristianismo, enquanto religião, cresce mais que qualquer outra no mundo. Em quarto lugar, há avanço tecnológico e prosperidade material.

Destarte, os pós-milenistas não têm dúvidas, esse progresso espiritual desembocará em um longo período de retidão e paz, chamado milênio. “Milênio”, portanto, designa um período indefinidamente longo, muito maior que mil anos simplesmente literais, no qual o mundo todo gozará de um estado de retidão até então só visto em grupos relativamente pequenos, tais como famílias, igrejas locais e vilas. Não significa que cada pessoa da terra será cristã, nem que o pecado será abolido, mas que o mal será reduzido a proporções mínimas. Com efeito, os princípios cristãos serão a regra, e o pecado, a exceção.

Vale anotar que, para o pós-milenismo, o milênio não começará repentinamente, numa data específica. Antes, sua chegada será gradual, imperceptível, progressiva, como a chegada de uma estação, até que, finalmente, sem que houvéssemos nos apercebido, estará plenamente instalado. Após o longo milênio de retidão e paz Cristo voltará, momento após o qual haverá uma ressurreição geral, um julgamento geral e a instalação do estado eterno.

Em síntese, o pós-milenismo defende a seguinte ordem para o fim dos tempos: a presente era é de progresso, inclusive missionário; ela é seguida pela chega gradual do “milênio”; após o “milênio” Cristo voltará, ressuscitará os mortos e instalará o estado eterno. Contra o pós-milenismo, convém perguntar se a presente era é de progresso em todas as áreas (embora certamente o seja quanto à expansão da pregação do evangelho) e se o “milênio” de Apocalipse 20.4-6 deve ser interpretado literalmente, tema sobre o que trataremos adiante.

Sigamos para analisarmos as posições pré-milenistas.

Pré-milenismo histórico: o milênio terreno após uma agenda enxuta

O pré-milenismo histórico não nega a realidade do reino espiritual de Cristo, hoje, presente. Mas consente que esse reino real e presente de hoje precisa manifestar-se visivelmente na história, na terra como ela é hoje, para que o mundo veja a glória e o poder do reinado de Cristo como os crentes conhecem. Ladd reconhece francamente que “o único lugar da Bíblia que fala de um milênio real é a passagem de Apocalipse 20.1-6” e que, portanto, “qualquer doutrina do milênio deve basear-se na exegese mais natural desta passagem”. Mas o que seria “a exegese mais natural desta (Ap 20:1-6) passagem” para Ladd? Basicamente isto: “que os acontecimentos de Apocalipse 20 seguem-se à visão da Segunda Vinda de Cristo, que é retratada em 19.11-16”. 

Destarte, para o pré-milenismo histórico, os eventos futuros serão assim desencadeados: primeiro, ocorre a Segunda Vinda de Cristo. Cristo virá como vencedor (Ap 19.11-16) e destruirá a besta e o falso profeta (Ap 19.17-21); nessa vinda, dá-se a ressurreição dos crentes. Ladd traduz a expressão grega ezesan como “tornaram a viver”, asseverando que tanto em 20.4 quanto em 20.5 “não há necessidade nem possibilidade contextual para interpretar qualquer dos ezesan espiritualmente a fim de dar sentido à passagem”; após a ressurreição, Cristo (com os crentes ressurretos) reina sobre a terra por mil anos; após os mil anos, há uma guerra final e o diabo é lançado no lago de fogo e enxofre; nesse passo, ocorre a segunda ressurreição, daqueles que não haviam sido ressurretos para o milênio, e que são lançados para dentro do lago de fogo; subjugados todos os poderes hostis, o cenário está preparado para o estado eterno: novos céus e nova terra.

Pré-milenismo dispensacionalista: o milênio terreno após uma agenda “movimentada”

O pré-milenismo dispensacionalista, por sua vez, arvora-se à posição de única corrente teológica a aplicar a interpretação literal da Bíblia. Afirma que, se interpretado literalmente, o Antigo Testamento exige um milênio literal e futuro, ainda não cumprido, e sequer iniciado. Desse modo, segundo a ótica dispensacionalista, analisado literalmente, o Antigo Testamento exigiria a manifestação de um reino com as seguintes características: em primeiro lugar, seria um reino literal, tão terreno e humano quanto qualquer outro reino já surgido na terra. Seu centro seria Jerusalém, de onde o Rei Messias governaria o mundo, em uma espécie de continuação do reino davídico histórico (Ob 12-21; Am 9.11; Is 2.3 e 24.23); em segundo lugar, seria um reino estabelecido repentinamente, introduzindo algo divino na ordem natural (Is 40.5; Jl 3.1; Mt 25.31-46); em terceiro lugar, a forma de governo desse reino seria uma monarquia literal (Sl 2.6; Is 33.17-24), cujo Rei governaria tanto com severidade quanto com ternura (Sl 2:7-12; Is 11:4 e 40:11); em quarto lugar, comporia a estrutura política desse reino uma nobreza espiritual, composta pela Igreja, pelos santos do Antigo Testamento e pelos mártires da “grande tribulação” (Is 32.1; Zc 14.6), entendendo-se por grande tribulação os sofrimentos experimentados por Israel e pelos gentios convertidos na segunda metade dos sete anos de intervalo entre o arrebatamento secreto da Igreja e a segunda vinda para a instalação do reino milenar; em quinto lugar, o reino seria basicamente centrado na nação de Israel, agora regenerada, redimida e comandando as nações da terra (Dt 18.1, 13; Is 41.8-16); em sexto lugar, esse reino literal ocorreria sob a direção do Espírito e o seu sistema de valores éticos seria inteiramente cristão, centrado na Bíblia (Is 40.4; Ml 4.4). A guerra seria completamente eliminada (Is 2.4) e a verdadeira religião, restaurada, incluindo-se a restauração de todo o cerimonial levítico, no templo reconstruído em Jerusalém; em sétimo lugar, a maldição seria parcialmente abolida, gerando profundas transformações físicas (Zc 14.3, 4; Is 32.15, 16).

Para o pré-milenismo dispensacionalista, um reino com estas mesmíssimas características foi pregado e prometido por João Batista, por Cristo e pelos apóstolos (Mt 3.1, 2; 4.17, 23; 10.5-7; Lc 10.11). Todavia, lamentavelmente, foi rejeitado pela nação de Israel. Enquanto rejeitava o Rei (Lc 4.28, 29; Jo 5.18, 43), o reino que Ele viria estabelecer estava sendo igualmente rejeitado. Assim, rejeitado o Rei e o Seu reino, Cristo revelaria aos discípulos uma “mudança de planos”. Um tal “plano B” entraria em ação, consistente no seguinte: Cristo adiaria a implantação do reino e, enquanto isso, edificaria a Igreja – um povo dentre os gentios para Si, inteiramente distinto de Israel. Portanto, na presente época, Cristo estaria formando a Igreja, uma espécie de aristocracia espiritual, para com ela reinar no milênio (1Co 4.8; 6.2; Hb 12.28). O reino, que deveria ter sido implantado há cerca de dois mil anos atrás, teria sido tão só “adiado”, “suspenso”.

Os textos bíblicos entre parênteses são usados pelos dispensacionalistas como a base bíblica da sua escatologia.

Ao final da era da Igreja, ela seria arrebatada e teria início um período de sete anos, cuja segunda metade (três anos e meio) seria marcada pelos julgamentos que constam dos selos, das trombetas e das taças. Vê-se que, para a corrente escatológica em comento, Apocalipse 4 a 19 referem-se a esses sete anos, mormente aos últimos três anos e meio de “grande tribulação”.

O “milênio” deve ser interpretado literalmente?

Colocadas as posições milenaristas, pode-se concluir que elas tem em comum a noção de um milênio terreno, mas diferem entre si no que diz respeito à ordem cronológica entre a Segunda Vinda e a presença do reino milenar. Para o “pós-milenismo”, Cristo voltará após o milênio; para os pré-milenistas, a Parousia ocorrerá antes do milênio. 

As correntes pré-milenistas, por sua vez, distinguem-se de diversas formas. O pré-milenismo histórico possui uma agenda mais concisa; o dispensacionalista, uma mais elaborada. Mas ambas as posições defendem um milênio terreno literal com características próprias de um reino terreno político, com Cristo reinando sobre o mundo, na terra e a partir de Jerusalém.  

No tópico seguinte, teceremos observações específicas sobre a escatologia dispensacionalista. Por ora, esclarecidos sucintamente os milenarismos, perguntamos se o “milênio” deve ser interpretado literalmente, ao que respondemos com um sonoro “não”, pelas razões, dentre outras, que passamos a expor.

Observe-se preliminarmente que Apocalipse 20 é a única passagem em toda a Bíblia que menciona um reino de mil anos. Não há detalhes na passagem, que diz pouco sobre qualquer assunto. Por isso é muito comum buscar interpretá-la com dados que se encontram fora dela (em uma verdadeira eisegese; não por meio de exegese). Verifique o leitor se há algo no texto sobre um reinado terreno em Jerusalém. E se há algo sobre uma era de prosperidade sobre a terra. E se há menção ao trono de Davi em Jerusalém, ou sobre o templo de Jerusalém com serviços levíticos restaurados. Nada há na passagem sobre esses temas. Eles são pressupostos, se não impostos, ao texto.

Seguem, pois, algumas razões pelas quais não devemos interpretar o “milênio” literalmente.

Em primeiro lugar, a interpretação que conduz ao milênio literal é mais baseada em Isaías 65.17-25 (e outras passagens do A. T., conforme destacamos supra), e não em Apocalipse 20. Mas, frise-se, nada disso se encontra em Apocalipse 20. O texto de Isaías não é sobre o milênio, mas sobre a criação de novos céus e nova terra, que é descrita em Apocalipse 21, e não no capítulo 20. É um equívoco tentar preencher Apocalipse 20 com um texto que nada fala sobre milênio.  

Em segundo lugar, Apocalipse 20, sem querer ser redundante, é um texto apocalíptico. É a única passagem em toda a Bíblia que menciona um reino de mil anos. Repito: não há detalhes. Por que deveria ser interpretado literalmente? O único lugar na Bíblia, fora de Apocalipse, onde o termo “mil anos” aparece é 2Pedro 3.8 (citação do Sl 90.4), onde não é interpretado literalmente. 

Em terceiro lugar, quando Jesus voltar, segundo o Novo Testamento, serão estabelecidos o Novo Céu e a Nova Terra, e não um reino milenar terreno intermediário. Esse é o ensino claro do Novo Testamento (2Pe 3.1-13; Mt 24; 1Ts 4; 2Ts 2; 1Co 15). Nada há nessas principais passagens sobre os tempos do fim a respeito de um reino milenar terreno literal. 2Pe 3.1-13 é importante porque é a única passagem do Novo Testamento que descreve o que acontece depois da vinda de Jesus. Se há um milênio literal terreno, Pedro o desconhecia completamente porque, segundo ele, o que acontece após a Parousia é a inauguração do Novo Céu e Nova Terra (Ap 21, e não Ap 20). A observação se torna ainda mais relevante quando se considera que é um texto que menciona “mil anos”, mas que interpreta o termo simbolicamente. 

Em quarto lugar, perguntamos: a ressurreição dos mortos põe fim ao reino de Cristo ou dá início a ele? Segundo a visão pré-milenista, a ressurreição dos mortos dá início ao reino milenar de Cristo. Mas Paulo fala exatamente o contrário em 1Co 15. A ressurreição, de fato, acontece em duas etapas (mas não conforme os pré-milenaristas): “Cristo, as primícias; depois, os que são de Cristo, na sua vinda”, no último dia (v. 23). Somente. Após a ressurreição dos mortos, virá o fim (v. 24). Quando os mortos ressuscitarem (o último inimigo a ser vencido), o Senhor devolve o reino ao Deus e Pai (vs. 25-28). Em síntese, o reino de Cristo começa na ressurreição e ascensão e termina com a ressurreição dos mortos. 

Em quinto lugar, por que se insiste na necessidade de um milênio para que se cumpra as promessas feitas a Davi se Pedro, em At 2.29-36, diz que isso já se cumpriu na ressurreição de Cristo? A profecia não dizia respeito a Davi, mas ao Messias. Esse Messias prometido se assentaria no trono por meio da ressurreição e ascensão. O reinado do Salmo 110 começou na ressurreição e ascensão de Cristo. O Novo Testamento também admite o cumprimento espiritual das profecias relacionadas a Davi e a Israel em At 15.15-18: nessa passagem, Tiago diz que Amós 9.11-12 já se cumpriu quando os gentios foram plenamente incluídos na comunidade da aliança sem necessidade de circuncisão. Em Atos 13.32-34, 38-39, as promessas feitas a Israel e com respeito a Davi se cumprem na pregação da Igreja. Devemos consentir que a interpretação final e autorizada do Antigo Testamento pertence ao Novo Testamento (Jo 16.15; Hb 1.1, 2).

Em sexto lugar, se as profecias precisam ter cumprimento literal, Deus precisaria fazer ressurgir nações sabidamente extintas, como moabitas, assírios, edomitas, amonitas (vide Is 11.14; Am 9.12; Jl 3.19; Mq 5.5, 6). Esses povos nem existem mais e só podem ser interpretados simbolicamente. Mas quem decide o que deve ser interpretado simbolicamente? Não por acaso, sobretudo no dispensacionalismo, a interpretação bíblica fica em muitos sentidos entregue ao subjetivismo do intérprete. 

Em sétimo lugar, como seria a “glória do milênio” se ele pressupusesse um mundo em que os glorificados (sem morte, sem doença) conviveriam em um mundo ainda caído e com pessoas caídas (sofrendo, morrendo, enlutadas)? O milênio como interpretado por qualquer forma de pré-milenismo é um mundo híbrido, no qual crentes ressurretos, em seu estado eterno e definitivo, convivem em um mundo caído e com homens em sua presente condição. Isso mesmo, homens imortais e impecáveis, com corpos glorificados, lado a lado com homens mortais e mortos em pecado. Para dizer o mínimo, tal condição é biblicamente improvável, se não inaceitável.

Observações adicionais sobre o dispensacionalismo

O dispensacionalismo, embora tenha se popularizado ao longo do século XX, é a escola de interpretação bíblica mais recente da História da Igreja. Sobre suas diferenças específicas em relação ao pré-milenismo histórico, proponho ao leitor as seguintes reflexões.

Em primeiro lugar, se é certo que a oferta do “reino” não foi aceita por todos, o que teria sido a causa de um “Plano B” divino consistente de buscar um povo para Si dentre os gentios, também é certo que nem todos a rejeitaram (1Co 15.6; Lc 12.32). Então, qual seria o quórum que teria supostamente ensejado a instalação de um reino milenar político e terreno há dois mil anos? Quando Paulo lidou com a incredulidade de Israel, não se referiu a um desvio de curso, mas afirmou que Deus cumpriu suas promessas ao reservar para Si, segundo a eleição da graça, o remanescente (Rm 9.8, 27-29; 11.2-7). Disse mais, que haveria uma plenitude de salvação para Israel no fim dos tempos (Rm 11.25-26). Mas jamais se referiu a um “Plano B”.

Em segundo lugar, como explicar tantos textos nos quais o Senhor Jesus afirma ter o reino chegado (Mt 12.28; Lc 11.20)? E o que fazer com o fato que Ele ensinou acerca de um reino de outra natureza (Lc 17.21; Jo 18.33-37)? O mesmo ensino encontra-se na doutrina paulina (1Co 4.19-20; Rm 14.17; Cl 1:13).

Em terceiro lugar, consentimos, noutro giro, que os textos veterotestamentários citados pelos pré-milenistas dispensacionalistas descrevem o estado eterno, e não um reino milenar terreno. Compare o leitor, v.g., Isaías 65.17-25 e Apocalipse 21, e responda como o Apocalipse de João interpreta a profecia de Isaías.

Em quarto lugar, o pré-milenismo insiste em uma separação entre Israel e Igreja, enquanto Efésios 2 e 3 ensinam que Deus derrubou a parede da separação e fez dos dois povos um só. Por que deveria haver agendas diferentes se Deus uniu em um só povo judeus e gentios? As escatologias pré-milenistas, sobretudo as dispensacionalistas, têm causado uma verdadeira fixação por Israel, pela Palestina, em parte baseada na suposta separação entre Israel e Igreja.

O dispensacionalismo, com efeito, elabora uma enorme lista de supostas diferenças entre Israel e a Igreja, desejando provar que são povos distintos nos planos de Deus. Dentre estas diferenças, alguns eruditos chegam ao ponto de afirmar que Israel ergue-se à base da justiça própria, enquanto que, a Igreja, sobre a justiça de Cristo. O leitor gostaria de fazer parte de Israel? 

Asseveramos ao contrário, que Igreja e Israel não são povos distintos, objetos de planos distintos e possuidores de futuros distintos (Gl 3.6-9; Ef 2.14, 16, 19; Rm 11.17-24; 1Pe 2.9; cf. Ex 19.5, 6). Dos dois povos, Deus fez um só. O fato de Deus ter planos de salvar mais pessoas dentre Israel no fim dos tempos não contradiz o fato. Se Deus planeja salvar mais indivíduos de uma nação, em dado período, do que de outra, no mesmo período, não implica afirmar que possui planos distintos para elas, nem tampouco que são povos distintos na agenda divina redentora.

Por fim, a noção dispensacionalista de uma Segunda Vinda em duas fases, sendo a primeira secreta, iminente, sem a necessidade de que nenhum sinal ocorre antes, apenas para arrebatar a Igreja e dá início a uma semana de anos, não pode ser confirmada por um único texto bíblico. Mas, ao contrário, todas as menções à vinda de Jesus falam em uma manifestação pública, visível a todos, com grande alarido e efeitos universais (Mt 24.27, 30-31; Ap 1.7; 6.15-17; At 1.9-11; 1Ts 4.16-17; 2Ts 2.7-8). Esse seria um fato relevante demais para simplesmente não ser mencionado. Mas não só. Ele é expressamente negado em 2Tessalonicenses 2 contra posições que acreditavam em uma volta de Cristo “iminente”.

Tampouco Daniel 9.24-27 pode fundamentar a noção dispensacionalista da “septuagésima semana”. Dessa passagem, o dispensacionalismo interpretou as 70 “semanas de anos” como literalmente divididas, concluiu que haveria um hiato entre as primeiras 69 e a 70ª e relacionou a 70ª semana futura com a grande tribulação e com a manifestação do Anticristo em um programa divino exclusivo para Israel, que teria início imediatamente após uma vinda secreta de Cristo para o arrebatamento da Igreja. O primeiro a propor noções aproximadas foi Edward Irving (1792-1834), mas o sistematizador do dispensacionalismo foi John Nelson Darby (1800-1882). Essas ideias foram popularizadas pela Scofield Reference Bible (1909).

Antes de considerarmos o texto, importa destacar que se trata de passagem complexa, com base na qual muitas ilações foram feitas a partir de pressupostos dos intérpretes. Observamos também que os “setenta setes” são números simbólicos, os quais dificilmente suportariam interpretação literal (cf. Mt 18.21, 22). Vamos a Daniel 9.

Ali, o anjo Gabriel revela ao profeta que “Setenta semanas [literalmente, setenta setes] estão determinadas sobre o teu povo e sobre a tua cidade santa…” (v. 24a). Essas “semanas” se estendem por setenta setes e correspondem ao plano completo da redenção de Deus, até a Segunda Vinda de Cristo: “para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expiar a iniquidade [expiação por meio de um único sacrifício, feito de uma vez por todas, na cruz], para trazer a justiça eterna, para selar a visão e a profecia [aqui temos elementos que apontam à consumação dos séculos e ao cumprimento de todo o plano de Deus] e para ungir o Santo dos Santos” (v. 24b). “Selar a visão e a profecia” diz respeito, portanto, a todo o plano de Deus. Aviva-se que a profecia do Antigo Testamento não fazia distinção entre as duas vindas. Então, todo o plano de Deus acontecerá nesses “setenta setes”. Isso quer significar que após a 70ª semana não haverá um milênio terreno, mas o Estado Eterno.

Os primeiros 69 setes (se forem 69 vezes 7 anos, isso equivale a 483 anos) levam (simbolicamente, considerando que os cálculos não são exatos) até a primeira vinda de Cristo (encarnação, vida, morte, ressurreição e ascensão): “desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém, até ao Ungido, ao Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas” (v. 25). Isso indica um período histórico até a vinda do Messias, no tempo determinado por Deus.

O período de 69 setes é dividido em 7 (o “tempo” para a reconstrução de Jerusalém e do templo, “mas em tempos angustiosos”) e 62 setes, período após o qual “será morto o Ungido e já não estará” (v. 26a).

O texto não menciona um hiato entre o último sete (a “70ª semana”) e os anteriores (os 69 setes), mas a continuidade entre eles, para fazer a septuagésima semana corresponder à era inaugurada pela primeira vinda de Cristo, que se estenderá à Segunda Vinda. Essa última “semana” começa com a ressurreição de Jesus (Jo 20.9 – o primeiro dia da “última semana”) e termina com a ressurreição da Igreja (Jo 6.44 – chamado de “último dia”). Esse é o período do reinado de Jesus: de uma ressurreição a outra (1Co 15.23-24).

Essa semana tem seu ponto inicial na primeira vinda, com a “aliança” referida no versículo 27, a nova aliança firmada por Deus em Cristo: “Ele fará [o Ungido] firme aliança com muitos, por uma semana”. Não se trata de uma aliança que o Anticristo fará no futuro. O “Ungido” a faz, não o “príncipe”, até porque o que foi mencionado no versículo anterior foi “o povo de um príncipe”, não o próprio príncipe. Essa aliança com muitos inclui a salvação e a evangelização dos eleitos.

O “Ungido” é que, após o avanço do evangelho e cumprida a missão da Igreja, “na metade da semana [três tempos e meio], fará cessar o sacrifício e a oferta de manjares”, permitindo os acontecimentos da segunda metade da semana. Então, “virá o assolador”: é a metade da “semana” da oposição do Anticristo. Mas a meia semana do Anticristo não terá a mesma duração da meia semana da aliança do Ungido, porque esses dias serão abreviados (Mt 24.22). Isto é, a última metade da semana não é temporalmente igual, porque esse período de perseguição e apostasia, sob a liderança do Anticristo, repita-se, será abreviado (Ap 11.3-11).

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