Introdução
Por tudo o que temos visto até aqui, Deus, por pura e inexplicável graça, interpôs uma inimizade entre dois povos: a semente da mulher e a semente de Satanás. Decidiu em cada momento da história, antes e depois da Queda, no contexto do Pacto das Obras como no Pacto da Graça, separar para si um povo constituído de famílias no seio das quais sua revelação seria comunicada de uma geração a outra e das quais retiraria para si uma semente piedosa.
Já pontuamos igualmente que esse modelo foi protegido de diversas maneiras, notadamente por meio da proibição de casamentos mistos, da multiplicação de filhos no contexto do casamento, da preservação da autoridade dos pais e da proteção do próprio casamento.
Ditas essas coisas, convém, neste passo dos nossos estudos, ressaltar que o modelo divino de tomar um povo santo para si por meio de famílias não poderia se tornar em uma presunção absoluta de pertencimento a Deus, como decorrência pura e simples do pertencimento ao Israel étnico. Quero dizer que mesmo lá, no Antigo Testamento, sob a égide da Antiga Aliança, do fato de ser filho de Abraão não decorria, por si só, a certeza da posse da salvação eterna.
É certo que Deus concedeu a Israel preciosos e inumeráveis privilégios. Há, sim, no dizer do apóstolo Paulo, vantagem em ser judeu e utilidade na circuncisão, “Principalmente porque aos judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Rm 3.1,2). Acrescentou que aos israelitas “Pertence-lhes a adoração e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém!” (Rm 9.4,5). Todavia, conquanto estivessem todos os membros do Israel étnico na posse de muitos privilégios, nem todos pertenciam ao verdadeiro povo de Deus, realidade que se pode verificar tanto no Antigo como no Novo Testamento, e que destacaremos a partir das seguintes considerações.
Gentios foram contados com o povo de Deus
Embora em menor número, gentios eram inseridos no contexto do povo do pacto definitivamente, sendo este os casos de Raabe e Rute, que se tornaram ascendentes dos reis de Judá e, por fim, do Messias (Mt 1.5). Raabe inclusive recebeu lugar de destaque na galeria dos heróis da fé, em Hebreus (Hb 11.31).
Verdadeiros e falsos judeus
O Novo Testamento faz nítida separação entre verdadeiros e falsos judeus. Leiamos Paulo a respeito: “Não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus” (Rm 2.28,29). Noutro lugar, escreveu: “nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendência de Abraão são todos seus filhos” (Rm 9.6,7). Disse também que a verdadeira descendência de Abraão é composta dos “filhos da promessa” (Rm 9.8). Essas realidades foram ilustradas em Romanos fazendo-se distinção entre os descendentes por meio de Isaque, filho de Sara, e os filhos de Quetura (Rm 8.9; Gn 25.1-6), e mesmo entre os filhos gêmeos de Isaque e Rebeca (Rm 9.10-13). Numa sentença: “os da fé é que são filhos de Abraão” (Gl 3.7).
Filhos incrédulos de Israel
Dentre os filhos do povo de Israel, houve não apenas aqueles que se revelaram como incrédulos incorrigíveis, mas que muitos deles trouxeram enormes prejuízos, descrédito e ruína à Igreja de Deus daqueles dias. Nadabe e Abiú, os dois filhos mais velhos de Arão, foram consumidos pelo Senhor no primeiro dia do exercício do ofício sacerdotal, por terem levado “fogo estranho” ao altar do incenso (Lv 10.1,2). Talvez tenham tirado fogo de fora do santuário, e não do altar, como lhes fora ordenado (Lv 16.12), em uma atitude indiferente, não meramente descuidada, do tipo “qualquer fogo serve”.
A atitude dos filhos do sacerdote Eli é igualmente denunciada. Hofni e Fineias eram sacerdotes em Siló (1Sm 1.3), embora fossem “filhos de Belial”, que “não se importavam com o Senhor” (1Sm 2.12). O escritor sagrado diz que era “mui grande o pecado destes moços perante o Senhor, porquanto eles desprezavam a oferta do Senhor” (1Sm 2.17).
Dentre seus pecados, incluíam-se a cobiça e a violência (1Sm 2.13-16) e a baixíssima moral sexual dos homens (1Sm 2.22), vista em suas práticas sexuais ilícitas com as “mulheres que se reuniam para ministrar” (Ex 38.8), havendo quem pense que Hofni e Fineias introduziram a prostituição cultual própria dos cananeus no templo de Siló. O povo deplorava a atitude dos homens e o sacerdócio caía em descrédito (1Sm 2.23).
Eli repreendia seus filhos (1Sm 2.24,25), mas tolerava que oficiassem no altar daquele modo e com aquela conduta desprezíveis. Essa transigência de Eli foi alvo da reprimenda de um profeta anônimo (1Sm 2.29), que previu o fim do sacerdócio da sua casa (1Sm 2.30-36).
Os filhos de Deus nascem de Deus somente
A verdade para todos os tempos é que meios meramente naturais não podem gerar rebentos que sejam mais que meramente naturais. Em todos os tempos, somente Deus pode tomar nossos humildes esforços para formar filhos para Ele em suas mãos e gerar a partir desses labores diários e incansáveis rebentos espirituais, verdadeiros filhos de Deus. Na conversa com Nicodemos, Jesus disse a esse líder dos judeus a respeito da sua absoluta necessidade de nascer de novo, como a dos seus compatriotas (Jo 3.3-7), precisamente porque, conforme o versículo 6 da passagem, “O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do espírito é espírito”.
O novo nascimento não é algo que a natureza humana possa realizar em qualquer medida, ou para ela concorrer, nem minimamente. O texto transcrito fala sobre dois tipos de vida e duas fontes de vida. Uma fonte de vida só pode produzir um tipo de vida, nunca o outro: da carne nasce a carne; do Espírito, o espírito. Não é o Espírito que propaga a espécie humana, nem, por outro lado, a natureza humana que produz a geração espiritual. Ou seja, aquilo que é natural não pode produzir nada que não seja apenas natural (“o que é nascido da carne, é carne”). Por outro lado, somente o Espírito de Deus pode produzir geração espiritual (“o que é nascido do Espírito, é espírito”).
Para aquilo que nos interessa, a hereditariedade não é a causa automática da geração de filhos para Deus. Jesus Cristo, no mesmo sentido, reconhecendo que falava com judeus, descendência de Abraão (Jo 8.37,56), conforme propalavam (Jo 8.33,39), disse a respeito de muitos deles que eram filhos não de Deus, mas do Diabo (Jo 8.41-44,47). Os judeus diziam: somos filhos de Abraão; logo, somos filhos de Deus. Jesus disse: sim, vocês são filhos de Abraão, mas não são filhos de Deus, mas do Diabo.
Que os filhos de Deus são os crentes, João o disse em 1.12, acrescentando que os tais “não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem” (1.13), isto é, que Deus não toma filhos para si a partir da herança genética, pelo menos não automaticamente.
Conclusão
Ante todo o exposto, a quais conclusões devemos chegar?
Primeiro, que, sim, havia transmissão automática de certos deveres, sanções e privilégios relacionados aos Pactos com Abraão, com Moisés e com Davi, dentre os quais a permanência ou não na terra prometida e a fruição ou não de bênçãos nessa terra. Esse elo hereditário automático era simbolizado e selado pela circuncisão ao oitavo dia do menino recém-menino.
Segundo, que essa transmissão automática de condição de povo dos pactos não significava necessariamente a obtenção dos benefícios espirituais relativos à posse da vida eterna, dos novos céus e nova terra. Os pactos não poderiam ser interpretados como salvo-condutos para uma vida ímpia, nem justificavam presunções espirituais absolutas, como se todos os elementos da linhagem natural de Abraão já nascessem na posse das bênçãos eternas de Deus.
A mensagem do Batista foi uma eloquente advertência sobre o que ora observamos: “Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura?
Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão. E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo” (Lc 3.7-9).
“Ter por pai a Abraão” não pode ser condição utilizada como escape do juízo divino e não impede ninguém de se defrontar com o corte da lâmina afiada do Justo Juiz e o lançamento ao fogo. A confiança na descendência de Abraão seria inútil, porque, como o Batista adverte, ficamos diante de Deus, ao fim e ao cabo, como indivíduos e, como tais, devemos nos arrepender e crer para fruirmos as bênçãos da aliança.
O que os filhos étnicos de Abraão deveriam fazer? Eles também precisariam produzir frutos dignos de arrependimento, por meio de uma vida amorosa para com os semelhantes, honesta no trabalho, verdadeira na fala e cheia de contentamento com o que possui (Lc 3.10-14). Nas palavras de Jesus, “se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (Lc 13.3,5).
Em resumo, na Antiga Aliança, nada obstante houvesse um trato divino corporativo com o povo da aliança, o aspecto individual de cada crente era especialmente relevante. Os crentes do Antigo Testamento eram também responsáveis por manifestar fé pessoal, os pais eram responsáveis por ensinar a revelação aos filhos da aliança e os filhos da aliança eram responsáveis por corresponder a esse ensino e viver de acordo com ele. Há, pois, que se observar um equilíbrio entre os aspectos corporativo e individual na antiga dispensação.