Introdução ao estudo
Nunca foi tão necessário compreender o tema da criação de filhos, de acordo com a perspectiva bíblica. Isso porque o Estado tem, de forma crescente, invadido esferas de atuação até então próprias do ambiente privado e da autonomia familiar. Ensinos contrários às Escrituras têm alcançado as nossas crianças, por iniciativa sobretudo das escolas públicas, quando ainda em tenra idade e de forma mais aberta possível. Nesse quadrante, entender o modo como Deus se relaciona com o seu povo no pacto da graça é fundamental.
Não olvidamos que o tema é “sensível”, visto que tangencia interesses estatais ao mesmo tempo em que é caro para a fé cristã. É assunto do tipo fronteiriço, digamos, que sempre foi objeto de atenção especial da Igreja e, mais recentemente, e de maneira crescente, do Estado.
A “criação de filhos”, pois, é tema de primeiríssima grandeza para a Igreja e sobre o qual o Estado tem empreendido um avanço sem precedentes na história moderna. Apenas para ilustrar o ponto, a Revista Oeste noticiou que o Canadá criminalizou a conduta de pais e mães que vierem a reprimir a “identidade de gênero de uma pessoa não cisgênero” ou “a expressão de gênero que não esteja em conformidade com o sexo designado de uma pessoa ao nascer”. Imaginemos a atitude de uma mãe em não permitir que seu filho menino use vestido ou adote um nome social feminino. Pois bem, essa prática estaria enquadrada no crime de “repressão da identidade de gênero”.
Em nossa jornada sobre Criação de Filhos Segundo a Bíblia: Dos Fundamentos Teológicas à Prática, exporemos o que a Palavra de Deus ensina a respeito. Veremos, em 13 lições, o que diz a Escritura sobre criação de filhos na criação e no período patriarcal, na aliança mosaica e no Novo Testamento.
Vamos à primeira.
A Criação e o Período Patriarcal
Introdução
Quando nos debruçamos sobre a obra divina da Criação, encontramos ali pelo menos três “mandamentos criacionais”,referentes ao culto, ao trabalho e ao casamento. Esses mandados criacionais são ordens divinas definitivas para como o homem deveria viver de modo a agradá-lo. De fato, trabalho, casamento e culto são instituições permanentes, presentes na atualidade como no Éden, e se esses mandados são constantemente alvos de ataques, distorções e questionamentos, isso apenas reflete quão distante está a humanidade do Criador.
O culto é o propósito último da criação e inclui o dever de fazer tudo acontecer para a glória do Criador. O trabalho, expresso na ordem de sujeitar a criação (Gn 1.28), deveria ser feito como expressão de piedade e com regularidade, como um serviço a Deus.
Por fim, vale lembrar o mandamento criacional referente ao casamento. “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2.18) é a constatação divina que abre a cena da criação da mulher e da instituição do casamento. O homem e a mulher tornados, os dois, uma só carne (Gn 2.24) é a maneira como Deus uniu Adão e Eva para que por meio do casamento multiplicassem e enchessem a terra (Gn 1.28).
Essas ordenanças antigas e sempre tão novas devem ser ouvidas pelos jovens (sobretudo nesses tempos em que as instituições divinas estão sob críticas e enfrentam resistência mais cerrada): casem, tenham filhos e criem filhos para a glória de Deus! É assim que tudo começa, com trabalho e culto no seio de uma família.
A Queda
O homem foi criado naturalmente capaz de cumprir todas as ordens criacionais referentes ao culto, ao casamento e ao trabalho, não consistindo em tentação desobedecê-las. Adão estava disposto a trabalhar no jardim, ter muitos filhos com Eva e consagrar tudo a Deus, porque dotado de santidade, de predisposição positiva para tudo isso. Não por outra razão, o teste consistiu – não em uma ocasião de adultério, nem foi uma tentação para evitar o trabalho -, mas em obedecer a um mandamento pelo simples fato de ter ele emanado de Deus.
Adão agiria como representante da raça, da sua família, da família humana. Como tal, ele deveria demonstrar que se submeteria a Deus como o Soberano Legislador, confessando-se dependente do Criador, aquele que o criou e o sustentaria. Que Adão não era o soberano e que a fonte e a preservação da sua vida não residiam nele mesmo, essa era a confissão que faria se, obedecendo, fosse aprovado no teste probatório.
O teste foi este: Adão teria livre acesso a todas as árvores, menos à “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2.17). Não havia nada de especialmente malévolo naquela árvore. Ela era a árvore com acesso proibido pelo simples fato de Deus haver decidido que assim seria, sem nenhuma outra razão.
O nome da árvore é significativo (“árvore do conhecimento do bem e do mal”): pelo teste, o homem demonstraria se permaneceria dependente do julgamento de Deus quanto ao certo e ao errado, ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, ou se tomaria para si a prerrogativa de fazer esse juízo. Ao comer do fruto da árvore proibida, o homem estaria dizendo o seguinte: a decisão quanto ao bem e ao mal, quanto ao que é certo e errado, é minha. De todo modo, a decisão de Adão traria consequências para ele e para a família humana (Rm 5.12ss).
Adão desobedeceu! A morte espiritual, a alienação de Deus, foi de logo colhida. A morte física foi adiada, porque sua aplicação imediata seria contrária ao propósito gracioso maior do Criador e, sendo Deus gracioso, comprometeu-se nos termos de Gênesis 3.14-19. De acordo com essa passagem, Deus faria inimizade entre a mulher e Satanás e entre a descendência dela e a dele. Essa inimizade, que foi de iniciativa divina, desembocaria em um conflito entre dois indivíduos: o descendente da mulher e Satanás. A mulher daria à luz, mas em dor e sofrimento; o homem comeria alimento que sustenta a vida, mas a partir do suor do seu rosto, com trabalho excessivo; e, por fim, voltaria ao pó. Observemos os dilemas da humanidade: busca por alimento mediante trabalho árduo, ter filhos com dores e morte.
Deus iniciou uma inimizade entre a mulher e Satanás e entre as descendências de ambos. Se Deus não tivesse intervido graciosamente, haveria apenas um povo, uma descendência, a de Satanás. Mas Deus interferiu interpondo uma inimizade entre a mulher e Satanás e entre a semente dela e a dele. Nascem dois povos ainda no Éden!
A semente de Satanás é resistente e degenerada; a da mulher é suscitada, regenerada e preservada por Deus. O primeiro filho de Adão foi um homicida (Gn 4.8). João diz que Caim “era do maligno” (da semente de Satanás) e que assassinou seu irmão “porque suas obras eram más e as de seu irmão, justas” (1Jo 3.12). Vejamos como as duas sementes são representadas já entre os primeiros filhos de Adão.
Da linhagem de Caim aparece Lameque, o homem com duas esposas e assassino, que fala arrogantemente contra todo aquele que tomar vingança das suas vítimas (Gn 4.23,24). Por outro lado, “Sete” (que significa “colocado”) foi colocado por Deus no lugar do irmão assassinado (Gn 4.25). Da linhagem Sete vem Enos, quando se começou a invocar o nome do Senhor (Gn 4.26), Enoque, que andou com Deus em um mundo alienado do Criador (Gn 5.22,24; Hb 11.5), e outro Lameque que, cansado de trabalhos e fadigas na terra que Deus amaldiçoou, deu ao filho o nome de “Noé” (que significa “descanso”), talvez pensando fosse essa a semente prometida que traria alívio ao mundo da maldição (Gn 5.28,29).
A aliança com Noé
Notemos que há em curso o desenvolvimento de duas sementes, dois povos, no seio do qual surgem Noé e sua geração.
Naquele momento, a semente de Satanás se tornou bem numerosa, quase tomando a totalidade da humanidade, porque as duas sementes (os filhos de Deus e as filhas dos homens) se misturaram (Gn 6.1,2). A maldade resultante é dita pelo escritor: “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau o desígnio do seu coração” (Gn 6.5).
Mas Deus permaneceu comprometido em seu projeto gracioso de tomar um povo para Si. E, dentre a massa da humanidade arruinada, Deus separou Noé e sua família para receberem os benefícios da salvação. Foi essa graça que impediu Noé e sua família de descerem aos níveis de corrupção de seus contemporâneos. Noé encontrou graça aos olhos do Senhor (Gn 6.8) e, por graça somente, foi separado da sua geração para ser um homem justo (Gn 6.9).
Na aliança com Noé, é dito repetidas vezes que Deus lida com ele e sua família: “Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos” (Gn 6.18); “Disse o Senhor a Noé: Entra na arca, tu e toda a tua casa…” (Gn 7.1); “Por causa das águas do dilúvio, entrou Noé na arca, ele com seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos (Gn 7.7); “Nesse mesmo dia entraram na arca Noé, seus filhos Sem, Cam e Jafé, sua mulher e as mulheres de seus filhos” (Gn 7.13); “Assim, foram exterminados todos os seres que havia sobre a face da terra; o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus foram extintos da terra; ficou somente Noé e os que com ele estavam na arca” (Gn 7.23); “Sai da arca, e, contigo, tua mulher, e teus filhos, e as mulheres de teus filhos” (Gn 8.16); “Saiu, pois, Noé, com seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos” (Gn 8.18).
O pacto de Deus com Noé inclui a descendência desse patriarca: “Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência” (Gn 9.9); “Disse Deus: Este é o sinal da minha aliança que faço entre mim e vós e entre todos os seres viventes que estão convosco, para perpétuas gerações” (Gn 9.12).
A aliança com Abraão
Após o dilúvio, a semente de Satanás voltou a multiplicar e se congregou em uma rebelião contra Deus em Babel (Gn 11.1-9). É nesse contexto que Deus chama Abraão para sair da sua terra e da sua parentela (Gn 12.1) e promete que daria a terra de Canaã à sua descendência (Gn 12.7).
Os anos passavam e o patriarca não tinha filhos. Todavia, Deus o informou que o herdeiro não seria o damasceno Eliézer, mas que um filho seria gerado de Abraão e que sua descendência seria numerosíssima (Gn 15.4,5). Quando Abraão creu em Deus (Gn 15.6), isso significou que ele esperava que dele mesmo Deus suscitaria a semente prometida em Gênesis 3.15, que esmagaria a cabeça da serpente.
Como Abraão poderia ter certeza de que Deus cumpriria suas promessas (Gn 15.8)? Naquele mesmo dia Deus fez um pacto com Abraão (Gn 15.9-18). Notemos a grandeza desse momento! O Deus Eterno se comprometeu com Abraão como se fosse um mortal e, porque não há nada ou ninguém maior do que Ele mesmo, jurou por si, assumindo um compromisso de morte, caso faltasse com uma única promessa que fizera ao patriarca. Sim, Deus passou por entre as partes de animais mortos dizendo, em linguagem que Abraão compreendeu perfeitamente, que destruiria a si mesmo caso não cumprisse sua promessa.
Em Gênesis 17 Deus instituiu um sinal e um selo para o pacto com Abraão: a circuncisão (versículos 10 a 12). A aliança e o selo da aliança são de tal modo próximos que se diz que “Esta é a minha aliança… será isso por sinal de aliança” (v. 10,11). “O que tem oito dias será circuncidado entre vós…” (v. 12): eis o sinal formal de membresia do povo da aliança. Quanto ao “incircunciso”, “essa vida será eliminada do seu povo” (v. 14).
Observe-se que Deus mais uma vez lida com famílias. Isso não quer significar que devemos “confiar na descendência natural como base de redenção… Contudo, um crente em Cristo deveria confiar nas promessas de Deus acerca da redenção dos descendentes” (Palmer, p. 44). A circuncisão significava não apenas uma identificação nacional, mas a inclusão na comunidade da aliança: “aliança perpétua, para ser o teu Deus e da tua descendência” (Gn 17.7).
É verdade que a realidade em volta pode não parecer animadora. Filhos descrentes. Famílias partidas. Abraão viveu esse tipo de realidade nada animadora e creu contra a esperança: Deus prometeu uma terra que manava leite e mel, mas ele nunca a possuiu; Deus prometeu a Abraão que ele seria uma bênção para todas as nações, mas ele foi a causa de pragas que vieram sobre o Egito por conta da sua mentira; Deus prometeu que sua descendência seria numerosa, mas os muitos anos se passaram e ele não tinha um único filho. Ele apenas creu em Deus!
Conclusão
Em síntese, tudo começou com um casamento e com uma ordem para ter filhos. A decisão de Adão no teste probatório, por sua vez, afetaria a ele e a sua família, a família humana. Após a Queda, fica claro que Deus faria um povo para si dentre a humanidade caída – um povo constituído de famílias -, e que sempre haveria duas sementes coexistindo paralelamente, a da mulher e a da serpente.
Quando as sementes da mulher e de Satanás se misturaram, a maldade aumentou e Deus separou um homem, Noé, para com ele fazer um pacto que incluía sua família. Aos líderes das respectivas famílias é dito que as conduzam e o que eles fazem repercute no destino delas. Foi o caso de Adão e, guardadas as devidas proporções, dos demais.
Após o dilúvio, quando novamente numerosa a semente da serpente, Deus chamou Abraão e lhe prometeu uma numerosa descendência, dando um sinal e um selo dessa aliança – a circuncisão -, querendo isso significar que a aliança incluiria não apenas Abraão, como também sua descendência.
À luz do exposto, é suficiente para os nossos estudos assentarmos esta síntese provisória: Deus se deleita em salvar e separar para si famílias e o pacto de Deus envolve a descendência, os filhos, motivos pelos quais os cristãos bíblicos deveriam nutrir uma firme confiança que sua descendência pertence a Ele!