Não Dirás Falso Testemunho

Lição 14/15

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Introdução 

Um dos atributos comunicáveis de Deus apresentado na Escritura é a veracidade ou fidelidade. Por esse atributo, sabemos que é impossível que Deus minta (Hb 6.18; Nm 23.19), de modo que podemos ter certeza que sua revelação é inquebrantável e que Ele é completamente digno de confiança. Ele é, destarte, o “Deus fiel” (Dt 7.9), sendo absolutamente verdadeiro em tudo que fala (Ap 22.6; Rm 3.3,4), razão pela qual se pode afirmar com convicção que Deus é a personificação da verdade, o Deus da verdade e o Deus que é a verdade (Is 65.16; Jr 10.10; Jo 1.14; 14.6). 

Por outro lado, Satanás é apresentado como homicida e arquimentiroso(Jo 8.44). É “homicida desde o princípio”, porque suscitou a tentação que levou os primeiros pais à Queda. Que é “mentiroso e pai da mentira” percebe-se no primeiro registro de suas palavras, consistentes em uma aberta e direta negação da verdade de Deus revelada em Gênesis 2.17. Primeiro, ele o fez fomentando dúvidas quanto à bondade de Deus (Gn 3.1) para, em seguida, perverter afrontosamente a revelação (Gn 3.4). 

Observe-se que a verdade é tão natural para Deus quanto passou a ser a mentira para o Diabo. Assim, do modo como é impossível que Deus minta, é impossível que Satanás fale a verdade e, mesmo quando usa a Bíblia, o faz para distorcer seu sentido e provocar morte e destruição (Mt 4.5,6). Portanto, deve ficar de plano assentado que quem mente se alinha com o pai da mentira e não com Aquele que personifica a verdade.

Ainda à luz João 8.44, releva anotar que o nono e o sexto mandamentos estão intimamente relacionados. Satanás levou nossos primeiros pais à morte através da mentira, assim como a calúnia poderia provocar execuções capitais injustas na sociedade israelense, em cujos preceitos diversos pecados eram punidos com a morte. Por esse motivo, a testemunha deveria ser também o executor da pena, para que sobre o mentiroso pesasse também a culpa pelo assassinato do executado inocente (Dt 17.7). 

O que o nono mandamento nos proíbe?

Entendamos, no primeiro plano, quais as proibições ínsitas ao nono mandamento para, depois, dedicarmo-nos à compreensão de suas implicações positivas, na esteira do procedimento adotado na análise dos preceitos morais de Deus até aqui revisitados.

Em primeiro lugar, o nono mandamento nos proíbe de prestarmos falso testemunho perante tribunais, de modo a perverter a aplicação escorreita do direito (Hc 1.4; Pv 6.16-19; 19.5). O depoimento, sobretudo quando sob juramento, que conduz a justiça pública a inocentar o culpado ou a culpar o inocente é grande mal que nega a veracidade de Deus, induz o descrédito dos órgãos do Judiciário e gera situações injustas, prejudicando ou beneficiando pessoas com a negação da verdade (Ex 23.1; Lv 19.15). 

Em segundo lugar, não devemos calar quando o silêncio provoca situações injustas (Lv 5.1; 2Tm 4.16). A justiça e o direito podem ser pervertidos não apenas quando mentimos deliberadamente, mas, igualmente, quando deixamos de dizer a verdade necessária para estabelecê-los, o que em geral podemos fazer por indiferença, medo ou interesses escusos (Is 59.4).

Em terceiro lugar, a mentira eloquente e a verdade amordaçada não podem prevalecer mesmo fora dos tribunais, tampouco na comunidade da fé. O nono mandamento é estendido a todas as situações da vida e aplicado à mentira em geral (Lv 19.11; Pv 19.5) e ao mexerico (Lv 19.16). Segundo a história bastante exemplar de Ananias e Safira, a mentira é um propósito maligno que somos responsáveis por deixá-lo que se aloje no coração (At 5.1-11), uma marca do caráter do homem não regenerado (Cl 3.9; 1Tm 1.10), do homem ímpio (Sl 52.1-4; 50.16-21). 

Do mesmo modo, a omissão da verdade nos mais variados contextos da vida, não apenas nos tribunais, é deveras provocadora de pecados e injustiças. Segundo Levítico 19.17, não somos responsáveis pelo pecado do nosso próximo somente se nós o tivermos repreendido. Essa atitude positiva de reprender o pecador é um contraponto ao mexerico denunciado no versículo anterior (Lv 19.16), pelo que se deduz que o pecado deve tratado diretamente com o pecador, visando recuperá-lo, e não traiçoeiramente, às ocultas, com o propósito de prejudicá-lo. 

Em quarto lugar, também transgredimos o nono mandamento não apenas quando mentimos diretamente, mas também quando distorcemos o sentido da verdade, convertendo-a em mentira (Sl 56.5). Nesse sentido, as palavras verdadeiras dos Salmos 91.12 foram transformadas em mentira, segundo a interpretação satânica (Mt 4.6). As palavras de Jesus em João 2.19 foram desvirtuadas por duas testemunhas falsas (Mt 26.60,61), que tanto distorceram as palavras ditas, fazendo crer que Jesus afirmou que Ele mesmo iria destruir o Templo de Jerusalém, como também o sentido delas (cf. Jo 2.21). 

Em quinto lugar, o nono mandamento também nos proíbe falar a verdade em momento e da forma inadequados, como também precipitada e maliciosamente. A verdade deve ser dita em amor, de modo agradável e sábio (Ef 4.15; Cl 4.6), sem jamais confundirmos atrevimento, desrespeito e falta de gentileza com sinceridade. A sinceridade é boa e necessária, mas não deve ser arrogante, porque, ao fim e ao cabo, ninguém apreciará as verdades de uma pessoa estúpida ou inconveniente. Jesus Cristo, que é a Verdade, a Palavra, é manso e humilde de coração. Imitemos o gentil Salvador.

Finalmente, deixamos registrada a advertência que viola o nono mandamento a interpretação equivocada das intenções, palavras e ações dos outros (Ne 6.6-8). Eu sou mesmo tentado a achar que nunca pecamos tanto e tão costumeiramente contra Deus e o nosso próximo do que nesse específico pecado – o de tender sempre a concluir mal acerca dos motivos e intenções das outras pessoas. A maledicência é um pecado terrível. Para o maledicente, toda a intenção dos outros é espúria, ou, no mínimo, deve estar sob suspeita. 

O que o nono mandamento nos exige?

Passo seguinte, cumpre-nos entender as implicações positivas do nono mandamento, as quais passo a analisar.

Em primeiro lugar, é nosso dever manter a verdade em nossas palavras perante os tribunais e em todos os lugares e relacionamentos da vida. Conforme o ensino de nosso Senhor Jesus Cristo, nossa palavra deve ser “Sim, sim; Não, não” (Mt 5.37; Tg 5.12). É dizer, o nosso “sim” de fato deve corresponder a “sim”; o nosso “não”, a “não”. Os cristãos são chamados a serem pessoas da verdade e sempre “deveriam dizer o que pretendem e pretender o que dizem”, para que, no dizer de John Stott, nossos monossílabos sejam suficientes. 

Em segundo lugar, o “não dirás falso testemunho contra o teu próximo” exige-nos igualmente que lamentemos e encubramos as fraquezas dos nossos irmãos. Trata-se, com efeito, do oposto daquelas atitudes de escárnio, zombaria e propagação da notícia que pode macular o nome do nosso próximo, pelas quais se costuma dizer algo do tipo “Você não sabe o que Fulano fez?!” 

A atitude reclamada neste ponto é sobejamente demonstrada no lamento sincero do apóstolo Paulo pelos impenitentes de Corinto (2Co 2.4; 12.21). Além disso, é próprio do amor encobrir as fragilidades da pessoa amada (1Pe 4.8), visto que, apenas para exemplificar, dificilmente encontramos alguém a alardear levianamente as fraquezas dos próprios filhos, sendo certo que nesses casos as comentamos somente com muita discrição e escrúpulo, quando necessário e com pessoas que julgamos adequadas – isto é, confidentes e dispostas e capazes de auxiliar. Pois bem, essa mesma expressão de amor deve ser dispensada a todos, inclusive aos nossos inimigos. É exigência inarredável do nono mandamento.

Em terceiro lugar, o nono mandamento é cumprido quando lutamos por preservar a boa reputação do nosso próximo, como expressão de amor. Com efeito, a boa reputação daqueles que amamos é fonte de grande alegria, como percebemos nas palavras do apóstolo João (3Jo 1-4), e zelar por ela é uma eloquente expressão de amor (2Jo 4). João, ademais, tomou conhecimento do amor de Gaio pelos pregadores do evangelho através do testemunho de alguns irmãos perante a igreja (3Jo 5,6). O mesmo tipo de respeitabilidade se propagou a respeito de Demétrio (3Jo 12). Percebe-se que temos aqui a face positiva do nono mandamento – o zelo pela preservação do bom nome do nosso próximo -, em adição à proibição da maledicência praticada por Diótrefes (3Jo 10) – a face negativa.

Em quarto lugar, o nono mandamento também – se por um lado nos proíbe o mexerico e o repasse de boatos e falações pelas costas, por outro – nos impõe o dever de confrontação daquele que pecou. Leiamos, a propósito, o Catecismo Maior de Lutero, quando o reformador colheu lições valiosas de Mateus 18.15: “Essa é uma orientação excelente para se cuidar da língua que vale a pena guardar, para evitar abuso deplorável. Adote essa orientação, para não expor o próximo em outra parte, fazendo fofoca, mas fale com ele em segredo, para que ele se corrija” (com grifos nossos). É também a exortação apostólica em Gálatas 6.1, no sentido de que o faltoso seja corrigido “com espírito de brandura”.

Em quinto lugar, também o preceito em comento nos manda repreender energicamente palavras de mexerico, inverdades e bajulações que nos chegam, muita vez disfarçada de piedade e em forma de “pedidos de oração”. De plano, diz o sábio que não devemos nos fiar naquele que dissimula com palavras quando vem falar-nos suavemente (Pv 26.24,25), devendo o tal, ademais, ser veementemente dissuadido do falatório calunioso (Sl 101.5).

Em sexto lugar, devemos, com vistas à observância do nono mandamento, cumprir integralmente todas as nossas promessas lícitas para com todas as pessoas e nossos votos para com Deus (Mt 5.33). Isso significa que devemos pagar por um serviço ou mercadoria a quantia acordada previamente ou entregar um produto ou cumprir um serviço pelo preço e nos termos que antes acordamos. A fidelidade nas tratativas é uma marca dos redimidos, razão pela qual o salmista informa que aqueles que habitarão no tabernáculo do Senhor, que morarão no seu santo monte – os crentes, os cidadãos do Reino de Deus – são aqueles que, quando empenham a palavra, jamais se retratam, ainda que venham a perceber o dano que causaram a si (Sl 15.4).

Em sétimo lugar, pecam transgredindo o nono mandamento todos os mestres do erro religioso, os que distorcem a Palavra de Deus, dizendo que Deus disse o que não está escrito ou omitindo verdades reveladas. É necessário, portanto, que os ministros do evangelho sejam fieis (1Co 4.2; 1Ts 2.1-6) e não estejam além, nem aquém, daquilo que devem ensinar (At 20.20). Por outro lado, o mandamento em comento nos adverte também para que recebamos a Palavra de Deus pregada pelos ministros como de fato ela é, a Palavra de Deus, a fim de não dizermos ser mentirosa a sacra verdade divinamente revelada (At 17.11; 1Ts 2.13; 1Jo 4.6) e não fazermos o próprio Deus da verdade parecer mentiroso (1Jo 1.10).

Finalmente, se desejamos andar na verdade devemos viver de acordo com a confissão que fizemos. A afirmação de que andamos com Deus ao passo em que na prática vivemos em trevas é prova evidente de que somos mentirosos (1Jo 1.5-10). Deus é luz, diz o apóstolo (v. 5). Isto é, o ser de Deus é puro, límpido, e nada há em seu ser que não seja maravilhosamente digno de ser revelado. Aí vem algum confessor e professa a plenos pulmões que anda com Deus, que é luz etc., enquanto na verdade anda nas trevas, pecando deslavadamente (v. 6) e ainda dizendo que não comete pecado algum (v. 8). Com efeito, só seremos verdadeiros em nossa confissão de que temos comunhão com Deus se andarmos na luz, confessando nossos pecados e abandonando o erro (v. 7,10).

Conclusão

Calúnias, difamações e perjúrios podem macular a vida social das pessoas, razão pela qual toda e qualquer palavra que as fere em sua honra deve ser evitada a todo custo, mesmo que corresponda à verdade, salvo para a promoção do bem e de situações justas. Por isso mesmo, Jesus incluiu o insulto como uma das formas de violação do sexto mandamento (Mt 5.22). Resta claro, portanto, o elo entre o “não matarás” e o “não dirás falso testemunho”, que nada mais é do que provocar a infelicidade, a vida menos digna, do próximo com o uso pecaminoso da língua. 

Não apenas com o sexto mandamento, o nono guarda estreita relação com o oitavo (“não furtarás”), visto que a mentira está necessariamente associada a fraudes (Lv 6.2,3). É dizer, há mentiras cujo objetivo é defraudar o próximo. Isso quer significar que a mentira está na raiz de atitudes e palavras que trazem prejuízo à vida (protegida pelo “não matarás”) e/ou aos bens (protegidos pelo “não furtarás”) de outrem. Assim, do modo como o sexto e o oitavo mandamentos, negativamente, nos proíbem toda e qualquer prática que prejudique o próximo ou atente contra seus bens e, positivamente, nos exigem que promovamos maximamente sua felicidade e conforto, o nono consiste em evitarmos o mal e fomentarmos o bem do nosso próximo através do uso apropriado da linguagem.

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