Introdução
O mandamento “não furtarás” se relaciona diretamente com os anteriores. Junto com os mandamentos quinto, sexto e sétimo, o oitavo reforça o conjunto de provisões divinas todo suficiente ao nosso pleno desenvolvimento físico e espiritual. A vida deve ter a existência garantida (“não matarás”), ser santificada na fonte (“não adulterarás”) e orientada para o serviço de Deus em um ambiente familiar estável (“honrar pai e mãe”), além de ser plenamente suprida (“não furtarás”).
Assim, o oitavo mandamento é mais uma expressão do cuidado divino para com a vida, do que decorrem duas noções básicas. A primeira é que todas as vezes que nos apossamos de algo que pertence a outrem, causamos-lhe em certo sentido uma ameaça à sua existência (digna, no mínimo). Por outro lado, como o oitavo mandamento é uma retumbante proclamação da providência de Deus, não precisamos tomar o que pertence a outrem porque Deus tem cuidado de cada um de nós. Quando nos apossamos daquilo que não nos pertence, negamos a verdade de que Deus é o provedor da nossa existência – de que o homem não vive só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus (Mt 4.4; Dt 8.3) -, tentação que nos cerca quase que ininterruptamente.
Por isso podemos afirmar que o oitavo mandamento implica a necessidade de tamanha confiança na providência de Deus a ponto de não sequer desejarmos reter ou apossar aquilo que pertence a outrem, sem que seja de forma legítima, justa e consentida.
O que o oitavo mandamento nos proíbe?
Dediquemo-nos agora a aplicar à nossa alma as restrições impostas pelo oitavo mandamento. Nesse ponto, destacaremos os modos (proibidos) que, se praticados, implicam na violação do mandamento em exame.
Em primeiro lugar, o oitavo mandamento já é violado quando nutrimos atitude errada para com bens materiais. Paulo chamou a avareza de idolatria (Cl 3.5) e exortou a que pensássemos nas coisas lá do alto, não nas daqui da terra (Cl 3.2), e que víssemos como grande fonte de lucro piedade com contentamento (1Tm 6.6). Disse que o amor ao dinheiro é raiz de todos os males (1Tm 6.10). Exortou aos ricos que não fossem orgulhosos nem pusessem a esperança na instabilidade das riquezas (1Tm 6.17).
Esse ensino apostólico está na esteira do que já havia estabelecido o Senhor Jesus quanto a atitudes erradas para com o dinheiro. Nosso Senhor já havia dito que onde está o nosso tesouro aí está nosso coração (Mt 6.19-21; cf. Sl 62.10), posto que não é possível servir a Deus e as riquezas (Mt 6.24); que a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui (Lc 12.15) e que é uma grande estultice entesourar para si e não ser rico para com Deus (Lc 12.21).
Observa-se que sempre que colocamos o dinheiro em um lugar que não lhe pertence, ou tributamos-lhe uma prerrogativa que não é sua ou alguma forma de devoção, caracterizada está nossa relação defeituosa com ele. Portanto, o dinheiro está seguramente no lugar errado quando vivemos para adquiri-lo em medida insaciável, quando pomos em mente que nossa segurança e estabilidade vêm dele e quando concluímos segundo a velha parêmia de que “o homem vale o que tem”. Todos os pecados relacionados ao oitavo mandamento nascem aqui.
Em segundo lugar, também violamos o oitavo mandamento quando nutrimos orgulho em função do que temos e inveja do que os outros têm, bem como cobiçamos o que não temos. Orgulho, inveja e cobiça são faces do mesmo pecado, filhos de uma atitude equivocada para com o dinheiro, tal qual expomos anterioriormente. O orgulho mencionado em 1Timóteo 6.17 foi expresso pelo verbo grego hupselofronein, que significa pensar altivamente sobre si mesmo, daí as ideias de arrogância e orgulho. A inveja é a obra da carne consistente de insatisfação pessoal pelo que os outros têm. Foi por uma atitude invejosa que por pouco o salmista Asafe não foi levado à ruína espiritual (Sl 73.2,3). Nesse sentido, pertinentes são as exortações de Davi: “Não te indignes por causa dos malfeitores, nem tenhas inveja dos que praticam iniquidade… Descansa no Senhor e espera nele, não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios” (Sl 37.1,7).
A cobiça desordenada não tem melhor destino. Assim como a soberba precede a queda (Pv 16.18) e a inveja arruína a alma, a sede desenfreada por riquezas conduz invariavelmente à perdição. Segundo o apóstolo Paulo, a avidez por riquezas é sempre acompanhada de tentação, laço e paixões desgovernadas e lesivas (1Tm 6.9). Assim, porque tão mal acompanhada, a cobiça não poderia produzir resultados além de “lançar” os homens cobiçosos ao mar da “ruína” e da “perdição”, palavras que denotam, segundo Guthrie, “destruição” e “perda irrecuperável”. Quando os homens vivem para tentar ganhar riquezas, perdem tudo!
Em terceiro lugar, viola o oitavo mandamento, também quase sempre como subproduto de uma atitude equivocada para com o dinheiro, a ansiedade. Não são poucas as vezes que a Escritura nos exorta a abandonar a ansiedade. Não devemos andar ansiosos por nada – é dizer, por nenhuma necessidade (Fp 4.6; Mt 6.25,28,31) -, porque a ansiedade é uma negação da provisão do Criador (Mt 6.26,28-30,34), uma completa inutilidade (Mt 6.27) e uma característica da vida espiritualmente pagã (Mt 6.32). Antes, devemos lançar toda a nossa ansiedade àquele que tem cuidado de nós (1Pe 5.7).
Em quarto lugar, semelhantemente transgredimos o oitavo mandamento quando exercemos atividades ilícitas ou desonestas e lidamos displicente ou desonestamente em trabalhos lícitos e honestos. Como exemplos de trabalhos ilícitos, citamos a prática de artes mágicas (At 19.19), a feitura de imagens para o culto idólatra (At 19.24) e a prostituição. Aqui se encontram igualmente o tráfico de drogas e a receptação de produtos roubados, sendo esta uma forma ímpia de associação com ladrões, proibida na Escritura (Sl 50.16-18).
Mas além das atividades ilícitas em si mesmas, lidar desonesta ou relaxadamente com trabalhos lícitos e honestos é também uma transgressão do oitavo mandamento. Pelo mandamento, ficamos proibidos de receber subornos e donativos que não sejam legalmente permitidos e que extrapolam o nosso devido soldo (Lc 3.14; Sl 26.10), de usar pesos e medidas fraudulentos (Lv 19.35-37; Dt 25.13-16; Pv 11.1; 20.10), de reter mercadorias para propiciar lucros exorbitantes (Pv 11.26), tanto quanto de não agir com a devida honestidade, diligência, eficiência e economicidade (Pv 18.9). Lembramos, a propósito, que são pecaminosos a preguiça, tão condenada na Escritura (Pv 6.6-11), o serviço deficiente e desatento quando às ocultas do empregador, o uso de insumos além do necessário e o deliberado desperdício de materiais, atrasos e mau uso do tempo com atividades não pertinentes ao objeto do contrato de trabalho, erros propositais ou falta de diligência que geram prejuízos etc.
Em quinto lugar, a prodigalidade é também proibida no oitavo mandamento. Ela se manifesta como uma compulsão desesperada por mais e mais aquisições, espécie de prodigalidade chamada oniomania. Alguns pródigos dilapidam o patrimônio em jogos de azar – a cibomania -, e outros, com gastos excessivos em prostituições e imoralidades. O filho mais moço da conhecida parábola do Senhor Jesus era um pródigo dessa última espécie (Lc 15.30). O sábio possui vários provérbios instrutivos sobre a prodigalidade, como este: “Quem ama os prazeres empobrecerá, quem ama o vinho e o azeite jamais enriquecerá” (Pv 21.17). O vício dos dilapidadores e a preguiça, juntas, são causa de muita pobreza (Pv 23.20,21).
Em sexto lugar, o oitavo mandamento nos proíbe de nos apossarmos daquilo que não é nosso por quaisquer formas de ardil ou opressão (Pv 21.6). Por isso, a remoção de marcos de modo a alargar a própria possessão é um tipo real do furto condenado no mandamento em comento (Pv 23.10; Dt 19.14), tanto quanto a retenção do salário do trabalhador (Tg 5.4) – e, por implicação lógica, os direitos trabalhistas – e o ato de pedir emprestado e não pagar (Sl 37.21). Ademais, toda sorte de opressão – pela qual se tenta levar vantagem sobre o hipossuficiente e o vulnerável – tem que ser denunciada como pecaminosa (Lv 25.17; Jó 20.19), inclusive a perpetrada por meio de usura e lucros excessivos (Ez 22.12). Para o salmista, o homem que habitará o tabernáculo e o santo monte do Senhor é o que não empresta o seu dinheiro com usura, nem aceita suborno contra o inocente (Sl 15.5).
Em sétimo lugar, e de maneira mais evidente, violam o oitavo mandamento os furtos e roubos diretos (Ef 4.18), inclusive por meio de sequestros (1Tm 1.10). Os exemplos mais destacados de furtos no Antigo Testamento são os de Raquel (Gn 31.19,30) e Acã (Js 7). Na lei mosaica, a passagem mais detalhada é Êxodo 22.1-15
No Novo Testamento, o oitavo mandamento é repetido pelo Senhor Jesus (Mt 19.18) e pelo apóstolo Paulo (Rm 13.9). Há uma ordem no sentido de que quem furtava não furte mais (Ef 4.28; Tt 2.10), e que jamais venhamos nós, os cristãos, a sofrer como ladrões (1Pe 4.15). A origem do furto e o destino dos ladrões também estão escritos para que nos alertemos: os furtos procedem do coração (Mt 15.19) e os ladrões não herdam o reino de Deus (1Co 6.10).
Há no Novo Testamento pelo menos três ladrões famosos, cujo registro é imperioso. Um deles, sem dúvida, é Judas Iscariotes (Jo 12.6). Os outros foram os dois ladrões crucificados ao lado do Senhor (Mt 27.38,44; Mc 15.27), embora a palavra usada em Mateus e Marcos (grego lestés) possa ser traduzida também por “revolucionários”. Em Lucas 23.32,33,39, os ladrões são chamados de “malfeitores” (ou “criminosos”), palavra que traduz o grego kakourgos. Também não esquecemos a parábola do “bom samaritano”, na qual um caso de roubo extremamente violento é narrado (Lc 10.30), nem tampouco os riscos de morte, em mãos de salteadores, enfrentados por Paulo em sua missão de espalhar o evangelho (2Co 11.26).
O que o oitavo mandamento nos impõe?
Agora estamos prontos a refletir as formas pelas quais cumprimos positivamente o oitavo mandamento, destacando o que o “não furtarás” nos exige. Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, começamos a observar o oitavo mandamento quando nos sentimos gratos a Deus, contentes pelo que somos e temos e sempre dependentes dEle em nossas necessidades. É dizer, a versão positiva do oitavo mandamento tem como ponto de partida a confiança na providência de Deus, ao lado da certeza de que em sua soberana vontade tudo quanto Ele destacou para ser nosso está ou estará em nossa posse (Sl 138.8; Mt 6.33).
Em segundo lugar, o oitavo mandamento impõe que nos ocupemos em atividades lícitas, de maneira honesta e diligente. O cristão é aquele que tanto está satisfeito com o que tem como diligentemente empenhado em atividades produtivas, lucrativas e geradoras de riquezas. A suficiência de Cristo não o torna funcionalmente inútil, nem lhe retira a capacidade de nutrir ambições legítimas, na medida certa e com motivações certas. Noutras palavras, o cristão nunca diz: “Estou tão contente com o que possuo e nas condições em que me encontro que não tenho mais planos, não faço mais projetos, não desejo aprender mais nada nem conquistar mais coisa alguma”.
Ao contrário, a “ambição cristã” deve estar constantemente fomentando a criatividade do cristão, que deve sempre, ao longo de toda a sua existência terrena, estar perguntando de que novas e mais relevantes formas ele pode ser ainda mais útil aos interesses do reino de Deus. Nesse sentido, não raro vemos na Escritura exemplos de homens e mulheres cujos feitos e conquistas mais relevantes realizaram na velhice. É o caso de Abraão e Sara, que geraram o filho da promessa na velhice (Gn 21.2). Moisés, de seu turno, iniciou seu grande ministério aos oitenta anos (At 7.23,30) e Calebe herdou a terra que o Senhor o havia prometido aos oitenta e cinco anos (Js 14.6-15).
No Novo Testamento, lemos que Paulo poderia ter se dado por satisfeito ao perceber que já havia percorrido todas as regiões desde Jerusalém, o ponto ao sul mais oriental de suas andanças, até os Balcãs (o Ilírico), fazendo discípulos de Cristo e plantando igrejas. Mas, ao contrário, o incansável obreiro do Senhor Jesus, talvez quase um sexagenário, nutria ambições de evangelizar em Roma e de lá ser enviado à Espanha (Rm 15.19-28).
Finalmente, o trabalho lícito é claramente indicado por Paulo como a versão positiva do “não furtarás”, em Efésios 4.28 (“Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é bom…”). Alguns irmãos da igreja de Tessalônica foram exortados a não andarem desordenadamente, uma conduta consistente em viver à custa do suor dos demais. Paulo os exortou a trabalhar e a comer o pão ganho com seu próprio suor, pois “se alguém não quer trabalhar, também não coma” (2Ts 3.6-12). O trabalho, ademais, deve ser exercido com diligência (Pv 10.4) e lealdade, devendo ser entendido como um serviço a Deus (Ef 6.5-7; Cl 3.22-25). Em Tito 2.9,10, a fidelidade no trabalho é a face positiva do oitavo mandamento.
Em terceiro lugar, o oitavo mandamento exige de nós o dever de parcimônia. Por dever de parcimônia entende-se a exigência da fé cristã quanto à frugalidade, à simplicidade, ao dever de poupar e evitar desperdícios. Há uma farta teologia bíblica da parcimônia na Escritura. O cordeiro pascal, por exemplo, deveria ser imolado na proporção de um para cada família. Se uma família, por ser pequena, não comesse um cordeiro inteiro, que o partilhasse com vizinhos, para que nada fosse deixado (Ex 12.3,4,10). O maná, semelhantemente, deveria ser apanhado somente na medida necessária para cada dia e, no sexto dia, uma porção dobrada seria colhida para que não houvesse trabalho no sábado (Ex 16.4,5). Quanto aos pães e peixes multiplicados pelo Senhor Jesus, sua ordem foi que se recolhessem as sobras “para que nada se perca” (Jo 6.12). O sábio tem o desperdiçador na conta dos insensatos (Pv 21.20).
Em quarto lugar, as atividades lícitas e a parcimônia devem estar a serviço de nosso próprio sustento, e da nossa família (1Tm 5:8), como também dos necessitados. No ensino inspirado de Paulo, o furto deve ser trocado por um trabalho lícito que ainda não é um fim em si mesmo, mas “para que tenha com que acudir o necessitado” (Ef 4.28). O mesmo se colhe nos Salmos 37.21: “O ímpio pede emprestado e não paga; o justo, porém, se compadece e dá”. Os ricos foram exortados por Paulo a abandonar o orgulho e a não depositar a esperança na incerteza das riquezas; antes, que fossem “ricos de boas obras, generosos em dar e protos a repartir” (1Tm 6.17-19). No ensino do Senhor Jesus, o homem que trabalha muito, acumula muito, mas somente para si e para os seus, é um insensato: “Assim é o que entesoura para si mesmo e não é rico para com Deus” (Lc 12.13-21). Na história do rico e do mendigo, o rico foi retratado como um ensimesmado que, vivendo em sua vida luxuosa, não tinha olhos para ver a miséria que o cercava (Lc 16.19-31).
Em quinto lugar, o oitavo mandamento exige que demos a cada um o que é devido (Rm 13.7). Devemos estar prontos a pagar nossas dívidas para com as pessoas, nossos impostos ao Estado (Mt 22.21) e nossos dízimos à Igreja de Deus (Ml 3.8-10). Devemos, com a mesma rapidez, restituir o que pedimos emprestado e o que viermos a achar fortuitamente (Ex 23.4,5; Lv 6.2-5; Dt 22.1-4), tanto quanto o que adquirimos desonestamente (Lc 19.8).
Conclusão
Em suma, a violação do oitavo mandamento constitui, a um só tempo, um atentado à vida digna da vítima e a negação da suficiência da providência, para não mencionar a afronta à soberania de Deus na distribuição das Suas dádivas.