Não Farás Imagem de Escultura

Lição 5/15

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Introdução 

O segundo mandamento proclama em tom altissonante os atributos inerentes, de forma exclusiva, ao Ser de Deus, sobretudo a sua incompreensibilidade e a sua espiritualidade, como também a sua transcendência em relação à criação, aspectos que merecem a nossa máxima atenção.

A incompreensibilidade, a espiritualidade e a transcendência de Deus 

Afirmamos que Deus pode ser conhecido. É dizer, Ele revelou diversas e suficientes facetas do seu Ser, pelas quais podemos afirmar com justiça que conhecemos e continuamos a conhecer o Deus verdadeiro, na medida em que vamos nos apropriando da sua autorrevelação. Por outro lado, é necessário também lembrar que o Deus que pode ser conhecido não pode ser compreendido ou conhecido exaustivamente, porque Ele é incompreensível! 

Com efeito, a distância que há entre a criatura e o Criador é de tal ordem instransponível que não somos nem jamais seremos capazes de apreender tudo que Deus é, porquanto jamais o infinito caberá no finito. É nesse sentido que a Bíblia ensina que a profundidade da riqueza de Deus não pode ser sondada (Is 55.8,9; Rm 11.33,34), nem o seu entendimento esquadrinhado (Is 40.28). Somente o Espírito de Deus perscruta a profundidade de Deus (1Co 2.10,11; Rm 8.27).

Noutro giro, precisamente por sua essência espiritual, Deus é um ser incorpóreo e invisível (Lc 24.30; 1Tm 1.17), razão pela qual não pode ser contemplado por olhos humanos. Existem diversos modos de existência espiritual. A título de exemplos, observe-se os homens têm “espírito” (Ec 12.7), que Jesus Cristo adquiriu espírito humano na encarnação (Jo 19.30) e os anjos são espíritos (Sl 104.4; Mc 1.17; Hb 1.13,14). Entretanto, a espiritualidade de Deus excede à dos demais seres espirituais. “Deus é espírito” (Jo 4.24) de uma maneira totalmente exclusiva. 

A consequência da espiritualidade de Deus é a ordem insculpida no segundo mandamento, segundo a qual o homem fica proibido de atribuir qualquer forma a Deus em representações mentais ou palpáveis. O Senhor Deus pretendeu curar e prevenir a nação de Israel quanto a tal pecado desde o meio pelo qual se lhe revelou, podendo lembrar-lhe mais tarde que seu povo apenas ouviu a voz do meio do fogo, quando diante do Sinai, mas não viu aparência alguma. O propósito do modus operandi divino foi claro: “… para que não vos corrompais e vos façais alguma imagem esculpida na forma de ídolo…” (Dt 4.10-20).

Finalmente, a transcendência de Deus traduz a noção que Deus é totalmente independente e separado da criação, e que está para além dela (Is 55.8,9; Jó 11.7). Segundo lições de Kierkegaard, a distinção entre Deus e a criatura, sobretudo entre Deus e os homens, não é apenas em termos de grau. Na verdade, Deus não é apenas maior do que o homem. Deus não possui apenas qualidades humanas amplificadas. Deus não é um super-homem. Deus e os homens são em essência e qualidades totalmente diferentes. 

Porque Deus é transcendente, Ele não possui qualquer nível de dependência para com quem quer que seja, nem tampouco necessita de algo. Assim, qualquer tentativa de atribuição de formas a Deus equivale a uma maneira odiosa de humanizá-lo, de torná-lo menos divino e, por isso mesmo, de o vermos como necessitando das suas criaturas (At 17.24,25).

O que o segundo mandamento nos proíbe?

Estamos prontos a pensar agora sobre o que o segundo mandamento nos proíbe. Vejamos.

Segundo o Antigo Testamento, somos proibidos de fazer “imagens de escultura”. O hebraico dá a ideia de “algo talhado ou esculpido à semelhança de alguma outra coisa”, feito normalmente em madeira ou pedra. Em Êxodo 34.17, temos a vedação de fazer imagem de “fundição”, a exemplo do bezerro de ouro fundido por Israel (Ex 32.4; Lv 19.4). Levítico 26.1 refere-se a diversas formas de imagens: ídolos, imagem de escultura, coluna e pedra com figuras. Em Deuteronômio 16.21,22, somos informados que Deus odeia a obra dos idólatras e, em Deuteronômio 27.15, insere-se a maldição proferida sobre o violador do segundo mandamento. O povo de Deus o incitava à ira com suas imagens de escultura (Sl 78.58).

Em Deuteronômio 4.19,20, lemos sobre a proibição de adorar o exército dos céus: o sol, a lua e as estrelas. A prática da astrologia, adivinhação por meio de astros, fica, portanto, proibida ao povo de Deus, não devendo este tampouco temer aqueles que a exercem (Is 44.25; Jr 10.2).

O segundo mandamento, entretanto, não nos proíbe apena de fazer imagens de falsos deuses. Somos por ele igualmente proibidos de fazer qualquer representação do Deus verdadeiro, do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Ex 20.23; Dt 4.15-19). Este foi o terrível pecado de Israel na feitura do “bezerro de ouro” (Ex 32.4,5): pretender representar o Deus verdadeiro através de um touro.

No Novo Testamento, o padrão anicônico permanece. Para Paulo, um ídolo nada é (1Co 8.4), embora aqueles que lhe sacrificam participam do culto a demônios (1Co 10.20). A conversão cristã, portanto, implica no abandono radical dos ídolos e das artes mágicas para o serviço do Deus vivo e verdadeiro (1Ts 1.9; At 19.18,19), porque não pode haver comunhão entre o povo de Deus, que é seu santuário, e os ídolos (2Co 6.14-18).

Os apóstolos de Jesus Cristo jamais aceitaram receber qualquer tipo de veneração, como demonstra o episódio ocorrido em Listra (At 14.8-20). Nessa ocasião, Barnabé e Paulo, após a cura de um coxo, só não foram adorados como se fossem os deuses Júpiter e Mercúrio porque anunciaram o evangelho e sua implicação: “… Nós também somos homens como vós, sujeitos aos mesmos sentimentos, e vos anunciamos o evangelho para que destas coisas vãs vos convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há” (v. 15).

O que o segundo mandamento nos ordena?

Voltemo-nos à versão positiva do segundo mandamento.

Em primeiro lugar, o segundo mandamento exige que nos convertamos a Deus. Conversão bíblica, como deixamos antever acima (1Ts 1.9,10), é a mudança radical da idolatria para a adoração do Deus vivo e verdadeiro (At 14.15). Indubitavelmente, cumprimos o segundo mandamento quando nos convertemos a Deus, abandonando a superstição e a dedicação pagã inclusive ao dinheiro (Mt 6.24) para nos consagrarmos ao Senhor.

Em segundo lugar, o segundo mandamento exige a destruição dos objetos de idolatria, tais como altares e imagens (Dt 7.5; Is 30.22). Quando uma família se converte, é obrigação dos convertidos realizar a remoção dos instrumentos utilizados no falso culto que predominava na residência. Entretanto, vale acrescentar que tais mudanças devem ocorrer sabiamente e conforme a autoridade que a pessoa convertida exerce na casa. Dentre os 19 reis do reino do Norte, Israel, todos seguiram a prática idólatra de Jeroboão. Dentre os 17 reis de Judá, oito foram bons reis, mas somente dois deles, Ezequias (2Rs 18.1-4) e Josias (2Rs 21.1,2), reformaram o culto conforme a Palavra de Deus e derrubaram os lugares altos.

Em terceiro lugar, o segundo mandamento exige a separação moral do povo de Deus. A proibição de fazer imagens de Deus tem como contrapartida o dever de nos conformarmos à imagem de Deus, conforme se pode concluir das palavras de Deuteronômio 4.20, ditas após a severa advertência contra a feitura de imagens (Dt 4.15-19). Enquanto os homens que forjam uma imagem de escultura se tornam iguais a ela (Is 44.12-20), os que servem a Deus crescem na semelhança com Ele (Cl 3.10).

Em quarto lugar, o segundo mandamento exige primordialmente que observemos o culto a Deus conforme Ele estabeleceu em sua Palavra. Para Calvino, “o fim desse preceito é que o legítimo culto d’Ele não seja profanado por ritos supersticiosos”. Com efeito, se quando concebemos a Deus equivocadamente somos levados à feitura de objetos de culto, compreendermos a Deus conforme Ele se nos apresenta tem profundas implicações em relação à forma como o adoramos (Jo 4.24). 

Os dois primeiros mandamentos estão estreitamente relacionados, mas não se confundem. Enquanto o primeiro pretende reprimir a tendência do coração humano de adorar falsos deuses, o segundo, a tendência humana de forjar novas formas de adoração, mesmo quando adora o Deus Trindade que se revela na Escritura. Já registramos a observação de que a feitura do bezerro de ouro por Israel foi uma tentativa de adorar o Deus verdadeiro por meios não ordenados por Ele. Não foi, a princípio, uma violação do primeiro mandamento (“Não terás outros deuses…”) como o foi do segundo (“Não farás para ti imagens de escultura…”).

Conclusão

À luz do exposto, a conclusão a que se pode chegar é que ficamos proibidos de fazer quaisquer objetos de culto. É dizer, não há proibição quanto às diversas possibilidades de expressões artísticas legítimas, desde que, frisemos, não estejam relacionadas a Deus, o Pai, o Filho e o Espírito, nem sejam para fins devocionais. 

Questão mais controversa dentre as igrejas reformadas diz respeito às figuras do Salvador Jesus Cristo, usadas como recursos visuais às histórias bíblicas contadas às crianças na Escola Dominical. Deveríamos ou não as utilizar? Seu uso constitui ou não uma violação ao segundo mandamento?

Na resposta à pergunta 109 do Catecismo Maior de Westminster (“Quais são os pecados proibidos no segundo mandamento?”), inclui-se o seguinte: “… o fazer qualquer representação de Deus, de todas ou de qualquer das três Pessoas quer interiormente em nosso espírito, quer exteriormente em qualquer forma de imagem ou semelhança de alguma criatura…”.

Segundo o Dr. Johannes Geerhardus Vos, os reformadores e os seus sucessores, nos trezentos anos seguintes, abstiveram-se de sancionar e utilizar quadros de Jesus Cristo. Acrescentou que a representação moderna típica de Jesus é produto do liberalismo teológico do século XIX e concluiu que “seria errado fazer representações de Jesus Cristo sob qualquer pretexto”, elencando os seguintes argumentos: 

  • primeiro, a Bíblia não apresenta a mínima informação sobre o aspecto físico de Jesus Cristo, e nos estimula a pensar nEle na Sua glória celestial e em seu estado de exaltação (2Co 5.16); 
  • segundo, como não há qualquer relato sobre a aparência física de Jesus, todas as representações artísticas são totalmente imaginativas; 
  • terceiro, como as representações de Jesus são produto do liberalismo teológico, elas só enfatizam um “Jesus dócil” e a paternidade de Deus, sem que nada tenham a dizer sobre pecado e punição; 
  • quarto, o resultado invariável das representações de Jesus talvez seja o de apresentarmos excessiva e exclusivamente a sua humanidade, com a consequente negligência da sua deidade.

Para o Dr. Vos, há, sim, uma diferença entre usar figuras de Jesus para ilustrar histórias bíblicas que são contadas às crianças e usar figuras de Jesus para a adoração, como fazem os católicos romanos. Entretanto, vaticina: “há bons motivos para se afirmar que os nossos ancestrais da Reforma estavam certos ao se oporem a toda representação pictórica do Salvador”.  

1 CAMPOS, Héber Carlos de. O Ser de Deus e Os Seus Atributos. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999. p. 21, 22
2 COLE, R. Alan. Êxodo: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1990. p. 148
3 CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo 1. Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008. p. 364
4 GEERHARDUS VOS, Johannes. Catecismo Maior de Westminster Comentado. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2007. p. 344, 345
5 OP. Cit.

*Somos uma marca de teologia reformada comprometida em transmitir a mensagem da fé de forma clara, direta e eficaz para um mundo que precisa do amor e da graça de Deus.

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